Me arrisco a dizer que, desde a
década de 1980, Hollywood não valorizava tanto os filmes sobre a juventude. Se
no passado, graças a nomes como John Hughes, Cameron Crowe, Amy Heckerling, Rob
Reiner e Howard Deutch, a garotada se viu representada através de filmes como
Picardias Estudantis (1982), Gatinhas e Gatões (1984), Clube dos Cinco (1985),
A Garota de Rosa Schoking (1986), Curtindo a Vida Adoidado (1986), Conta Comigo
(1986) e Digam o que Quiserem (1989), nos últimos dez anos o que temos
acompanhado é o resgate dos populares ‘coming of age movie’. E que grande safra
de filmes. Indo além do escapismo típico dos anos 80, o subgênero passou a ser
tratado com grande importância, conseguindo não só conquistar a atenção do
público, mas principalmente a da crítica. Títulos como o cult Juno (2007), o
denso Educação (2009), o irresistível A Mentira (2010), o profundo As Vantagens
de ser Invisível (2012), o sentimental O Espetacular Agora (2013), o aclamado
Boyhood (2014), o tupiniquim Califórnia (2015), o subestimado Cidades de Papel (2015), o encantador Eu, Você e a Garota que Vai Morrer (2015) o descolado Quase 18 (2016), o musical Sing Street (2016)
e o arredio Lady Bird (2017) conseguiram dar ênfase aos anseios da juventude
atual, reforçando o status de um segmento que tem se revelado extremamente
fértil. O que fica bem claro, por exemplo, quando nos deparamos com os
lançamentos de Sierra Burgess é uma Loser pela Netflix e o sucesso do ‘hit’ Com
Amor, Simon, dois filmes que, ao irem além dos clichês, reaquecem o mercado dos
romances ‘teen’ com delicadeza, inteligência e bom humor. Confira a nossa
opinião sobre estas duas cativantes obras no Cinemaniac.
- Sierra Burgess é uma Loser
Ao que parece a Netflix tem um
novo gênero “queridinho”. Após despejar tempo e dinheiro na tentativa de se
tornar a “casa” do Sci-Fi no ‘streaming’, uma iniciativa um tanto quanto
desastrada que rendeu poucos frutos de verdadeira qualidade, a companhia
resolveu apostar num segmento que caiu em desuso em Hollywood: as comédias
românticas ‘teens’. Com A Barraca do Beijo e Alex Stangelove, a companhia deu
os seus primeiros passos sem grandes pretensões, conquistando a audiência do
público alvo com filmes básicos e ingênuos. Logo em seguida veio o adorável
Para Todos os Garotos que Já Amei, uma obra cativante que, embora se sinta
obrigada a requentar alguns velhos clichês do gênero, o faz com energia,
carisma e uma descolada identidade própria. É com Sierra Burguess é uma Loser,
porém, que a Netflix mostra que está no caminho certo. Por mais que, num
primeiro momento, a premissa nem pareça tão inovadora assim, o longa dirigido
por Ian Samuels encanta ao ir além dos arquétipos dos filmes ‘high-school’, ao,
a partir dos clichês, propor um realístico estudo de personagens. Trazendo a
radiante Shannon Purser (a Barbara de Stranger Things) no papel da deslocada\incoerente Sierra,
o realizador é astuto ao olhar por trás da “casca”, rompendo pouco a pouco com
os estereótipos do gênero ao tratar os anseios dos multidimensionais
protagonistas com profundidade e peso narrativo. Com uma abordagem
indiscutivelmente universal, a película acompanha os passos de Sierra, uma
jovem simpática e inteligente que, devido a sua estrutura física fora dos padrões,
era alvo constante de bullying, principalmente por parte da popular megera ‘teen’
Verônica (Kristine Froseth). Convivendo com a sombra do sucesso do seu pai, um influente
escritor (Alan Ruck), ela parecia lidar bem com as provocações, se destacando
entre as demais na busca por uma vaga numa faculdade de prestígio. A sua
rotina, entretanto, ganha um novo rumo quando, por um gesto maldoso de
Verônica, ela passa a receber mensagens do popular Jamie (Noah Centineo).
Encantada por ele, Sierra decide seguir alimentando uma mentira, se passando
por Verônica enquanto tenta encontrar uma forma para revelar a verdade. Uma
opção que ganha contornos ao mesmo tempo arriscados e surpreendentes, principalmente
por expor não só a face mais virtuosa daqueles que ela aprendeu a detestar, mas
também as suas próprias falhas, fraquezas e temores.
Leve e descolado, o grande trunfo
de Sierra Burguess é uma Loser está na maneira com que o argumento assinado por
Lindsey Beer consegue entender a essência das suas personagens. Indo de
encontro a maioria dos filmes do gênero recentes, que não conseguem ir muito
além dos arquétipos típicos do ‘high-school’, Ian Samuels usa os estereótipos
apenas como um ponto de partida, uma porta de entrada para a intimidade de duas
garotas separadas por uma predatória “cadeia alimentar social”. Mais do que
simplesmente questionar os padrões de beleza e de comportamento, o realizador é
cuidadoso ao ampliar o escopo da trama, ao usa a baixa autoestima das duas como
um inteligente elo. Enquanto a bela Verônica esconde no seu status popular as
suas inseguranças, os seus medos e a sua disfuncional estrutura familiar, a cativante
Sierra esconde numa “casca” resiliente a sua frustração, o seu descontentamento
quanto a sua inércia e as pressões em trazer no sobrenome o status do seu
bem-sucedido pai. Embora o longa funcione muito bem como um romance ‘teen’, as
peripécias de Sierra para manter o seu segredo, em especial, rendem uma série
de situações divertidas, o grande mérito de Samuels está na maneira delicada
com que a obra investiga as nuances sentimentais das suas personagens. Através
de diálogos honestos, o diretor mostra propriedade ao tentar entender o que as
assombrava, transitando por temas reconhecíveis dentro do imaginário
adolescente feminino enquanto realça as semelhanças entre Sierra e Verônica. É
legal ver, por exemplo, como o argumento explora a busca das duas pela aprovação
masculina, expondo a face mais vulnerável delas ao questionar os perigos da
idealização. Sem querer revelar muito, o diretor é perspicaz ao fazer uma
pontual referência ao clássico O Retrato de Dorian Gray, criando um
interessante paralelo entre o personagem de Oscar Wilde e as duas jovens ao se
preocupar com a maneira com que elas (de certa forma) optaram por “sacrificar”
as suas virtudes em prol da aceitação popular. Somado a isso, Samuels é
igualmente perspicaz ao se debruçar sobre a relação das protagonistas com os
seus respectivos pais, refletindo sobre a influência parental na construção da
identidade de uma jovem com sutileza e fluidez narrativa.
Um predicado, indiscutivelmente,
valorizado pelas magnéticas atuações. Após roubar a cena em Stranger Things,
Shannon Purser encanta como a expansiva Sierra, uma jovem cansada de ser esnobada
que decide embarcar num frágil plano na busca pelo amor de um popular
adolescente. Impecável ao explorar as camadas da sua personagem, ela é astuta
ao descortinar a face mais incoerente e errática da deslocada estudante,
valorizando a naturalidade do texto numa performance sincera e sentimental. O
mesmo acontece com a promissora Kristine Forseth (olho nela). Na pele da
popular maléfica e provocadora, a jovem descontrói os estereótipos com enorme
categoria, comovendo ao mostrar que por trás daquela imagem existia uma jovem
insegura à procura de compreensão. Sem nunca forçar a barra, Ian Samuels consegue
tornar o crescente elo entre Verônica e Sierra totalmente crível aos olhos do
público, um vínculo potencializado pelo entrosamento entre as duas atrizes.
Quem mais uma vez rouba a cena, porém, é o talentoso Noah Centineo. Assim como
já havia feito em Para Todos os Garotos que Já Amei, a “descoberta” da Netflix
consegue criar um galã ‘teen’ com camadas, um cara boa praça e com um ‘background’
complexo que ajuda o longa na crítica à idealização feminina. Já o carismático
R.J Cyler completa o elenco como um engraçadíssimo alívio cômico, o irônico
melhor amigo de Sierra. Um personagem que, inclusive, merecia mais tempo de
tela. Por fim, com um visual moderno, uma belíssima trilha sonora sintetizada e
uma dinâmica estrutura narrativa, Sierra Burguess é uma Loser surpreende ao
reciclar os clichês do gênero com profundidade e coração. Por mais que, no
último ato, o longa invista em apressadas soluções formulaicas, as justificativas
em torno do esperado ponto de ruptura, em especial, são mais tolas que o
roteiro tenta sugerir, Ian Samuels compensa ao entender que os (verdadeiros)
elos de amizade previamente construídos eram mais fortes do que qualquer “briguinha”,
culminando numa sequência final simples e ao mesmo tempo acolhedora. Uma
reconfortante resposta ao frequentemente tóxico ambiente escolar.
- Com Amor, Simon
O mundo precisa de mais filmes como Com Amor, Simon. Numa época em que algumas pessoas parecem preocupadas demais com opção sexual de terceiros, que a repressão e a intolerância se “escondem” num conveniente discurso conservador, o revigorante longa dirigido por Greg Berlanti é impecável ao tratar a jornada de aceitação de um jovem homossexual com uma naturalidade fascinante. Uma abordagem simples e ao mesmo tempo profunda que parece reaquecer um dos gêneros mais populares de Hollywood, os ‘high-school movies’. Na verdade, o cinema também precisava de um filme como Com Amor, Simon. Isso porque, por mais que os personagens LGBT venham ganhando cada vez mais espaço dentro do segmento, aqui, talvez pela primeira vez, um blockbuster decidiu tratar o tema de maneira descomplicada, sem grandes dramas ou clichês, entregando assim um romance tipicamente ‘teen’ que evita se prender a nichos. Com roteiro assinado por Elizabeth Berger e Isaac Aptaker, é interessante ver como o longa não se prende demasiadamente a questão da sexualidade do protagonista, o carismático Simon (Nick Robinson). Por mais que a trama gire em torno do “segredo” do personagem, respeitando os temores e os anseios do mesmo quanto a iminente revelação, Berlanti é astuto ao criar uma obra universal, que funcionaria muito bem seja com um(a) hétero, seja com um(a) gay. Estamos diante de uma simpática história de amor virtual entre duas pessoas que, por seus motivos, preferiram manter os seus nomes em segredos. Alimentando um bem-vindo mistério quanto a identidade do pretendente, o realizador esbanja bom humor ao traduzir o misto de empolgação e nervosismo de Simon, brincando com as suas idealizadas suspeitas enquanto estreita os laços entre os dois. Com personagens extremamente cativantes em mãos, uma montagem dinâmica e um inteligente uso narrativo do ‘voice-over’, Berlanti permite que o público experimente os sentimentos de Simon, entenda tanto a sua insegurança, quanto a sua euforia, valorizando a dinâmica (e os arquétipos) dos filmes ‘high-school’ sem nunca recorrer aos clichês. Ao invés de se prender a figura de Simon, o argumento é cuidadoso ao dar espaço para os coadjuvantes, os seus expressivos amigos Leah (Katherine Langford), Nick (Jorge Lendeborg Jr.) e a recém-chegada Abby (Alexandra Shipp), ampliando o escopo do arco central ao torna-los mais do que meros “ombros amigos”. O quarteto está intimamente ligado, um vínculo sincero e bem estabelecido que passa a ser colocado em cheque no momento em que o segredo de Simon é exposto.
É aqui, aliás, que Com Amor, Simon se descola de vez da previsibilidade. Embora as soluções encontradas pelo roteiro para “aquecer” a trama não sejam propriamente novas, Greg Berlantti é inteligente ao não se render a típica unidimensionalidade oitentista. Eis que surge o simpático e falastrão Martin (Logan Miller, excelente), um jovem apaixonado que, na tentativa de conquistar a garota dos seus sonhos, decide chantagear Simon na busca por ajuda. Assim, falando, Martin deveria soar como um tipo detestável. O realizador, porém, acerta ao não tratá-lo assim. O grande ladrão de cenas da película, o aspirante à antagonista ajuda a reforçar ainda mais o arco do personagem título, uma relação inusitada marcada por diálogos divertidos e situações impagáveis. Mais do que um simples agente catalisador da história, Martin se torna um perspicaz ponto de virada da trama, aquele típico momento em que vida do protagonista desmorona bem diante dos olhos do espectador. Ao contrário da maior parte dos filmes recentes do gênero, entretanto, a repentina mudança de status de Simon é muito bem construída. Os conflitos, por exemplo, são bem sustentados pela história, tornando a reação de alguns personagens perfeitamente justificáveis. Além disso, quando necessário, Greg Berlantti esbanja sutileza ao solidificar a jornada de aceitação\revelação do protagonista. Sem querer revelar muito, o realizador é particularmente habilidoso ao traduzir o impacto desta descoberta no ambiente familiar, nos presenteando com (pelo menos) uma grande sequência densa, comovente e naturalmente intimista. Um predicado, diga-se de passagem, potencializado pelas presenças dos experientes Josh Duhamel e Jennifer Garner, que, apesar do menor tempo de tela, tornam a reação dos seus personagens extremamente crível aos olhos do público. Indo além do drama pelo drama, é legal ver que, mesmo nestes momentos mais delicados, Berlantti não se sente seduzido pelo teor melodramático, preenchendo a trama com diálogos irônicos e positivamente afirmativos. As reflexões de Simon sobre a homossexualidade, em especial, são inteligentes e ao mesmo tempo impagáveis, dando ao diretor a possibilidade de ampliar o leque cômico da película. Somado a isso, Berlantti entrega uma obra visualmente descolada, com cenários habitáveis, uma fotografia vibrante, uma montagem esperta e inebriante trilha sonora com riffs sintetizados de Rob Simonsen (Tully).
Absorvendo o otimismo dos ‘feel
good movie’ (os populares filmes para se sentir bem) e a profundidade temática
dos ‘coming of age movie’ (os filmes sobre amadurecimento) com energia e emoção,
Com Amor, Simon não é um filme perfeito. Alguns personagens, por vezes, soam
exagerados (vide o diretor vivido por Tony Hale), a falta de disfuncionalidade
é nítida, algumas soluções se revelam um tanto quanto convenientes. Uma
combinação de pequenos deslizes que em nada, repito, em nada, prejudicam o
nível deste cativante romance ‘teen’, uma obra sincera e envolvente que
consegue levar a diversidade para os geralmente “corrosivos” corredores dos
filmes ‘high-school’ sem sacrificar a essência escapista deste popular
subgênero. Já estava na hora do público adolescente ganhar um filme LGBT à altura
dos clássicos de John Hughes.
Um comentário:
Não diga se é bom ou ruim, porque não fiz parte dessa geração da década de 80 em assistir esses filmes de jovens, mas se estão falando que foi boa, eu acredito.
Postar um comentário