quarta-feira, 19 de junho de 2019

Com Leave no Trace e Galveston, Ben Foster se coloca de vez como o ator mais subestimado de Hollywood na atualidade


Poucos atores em atividade tem o alcance dramático de Ben Foster. Isso é um fato. Reconhecido pelas suas intensas performances, algumas indiscutivelmente viscerais, o expressivo ator norte-americano construiu uma carreira recheada de pequenos grandes filmes. Embora não tenha dado sorte quando decidiu se arriscar no universo ‘mainstream’, ele tem se sentido muito à vontade no revigorado cinema ‘indie’, encontrando nas mãos de cineastas autorais o tipo de papel desafiador que o colocou entre os grandes da sua função na atualidade. Um status que, sabe lá o porquê, ainda não se refletiu em Hollywood. Mesmo reconhecido pela crítica e por parte do público, Ben Foster segue “relegado” a uma espécie de segundo escalão dentro da indústria. O que, a meu ver, é um verdadeiro pecado, especialmente quando nos deparamos com os seus magníficos últimos trabalhos, o drama familiar Leave no Trace (2018) e o realístico thriller Galveston (2018). Lançados diretamente nos serviços de streaming no Brasil, os dois filmes até entraram no radar da temporada de premiações, Foster chegou a ser tratado como um postulantes a uma indicação, mas nada de muito concreto. Em constante amadurecimento enquanto artista, ele mostrou nestas duas sólidas produções a sua face mais contida, elevando o patamar da sua filmografia ao abraçar a fragilidade dos seus personagens, o senso de humanidade dos dois longas. O tipo de excelência que só comprova a minha tese que estamos diante do ator mais subestimado em Hollywood na atualidade. 



Um sentimento que, verdade seja dita, não vem de hoje. Lá atrás, em 2013, eu já colocava Ben Foster entre os atores mais subestimados da sua geração naquele momento. Diante do elevado nível dos seus últimos trabalhos, entretanto, é duro perceber que o seu status pouco mudou desde então. Dono de uma presença ímpar, o que o transformou num grande ladrão de cenas em projetos que não foram pensados para ele brilhar, Foster começou como muitos na televisão. Após alguns trabalhos ainda jovens, ele estreou na tela grande no final do século passado com o elogiado Ruas da Liberdade (1999). Sob a batuta do experiente Barry Levinson, Foster deixou a sua marca e conseguiu garantir novas chances em títulos como a comédia ‘teen’ Volta por Cima (2001), o suspense ‘cult’ 11:14 (2003) e a subestimada adaptação de O Justiceiro (2004). Foram os seus dois próximos projetos, porém, que me fizeram enxergar o seu verdadeiro talento. No papel, Refém (2005) tinha tudo para ser um filme B policial estrelado por um Bruce Willis no piloto automático. Um derivado que nasceu para surfar na onda “claustrofóbica” do bem-sucedido O Quarto do Pânico (2002). Uma abordagem requentada que, verdadeiramente, foi refrescada pela insana performance de Ben Foster. Na pele de um perverso adolescente, ele se transforma naturalmente no grande antagonista do longa, exibindo o seu domínio sobre o ‘overacting’ em alguns dos mais nervosos momentos da produção. Uma veia expansiva que se fez presente no seu trabalho seguinte, o desconcertante Alpha Dog (2006). Num thriller inspirado em fatos, Foster, sob a batuta do então promissor Nick Cassavetes, atraiu os holofotes ao viver o raivoso irmão do protagonista (foto acima), um jovem amargurado disposto a tudo para encontrar o paradeiro do sequestrado. Vociferando em cena, ele precisou de poucas sequências para se destacar, explodindo sempre que necessário numa performance física digna dos mais variados elogios.


Dois trabalhos que, coincidentemente ou não, abriram as portas para a primeira megaprodução da sua carreira, o desastrado X-Men: O Confronto Final (2006). O que era para ser a sua chance de alçar voos mais altos, entretanto, se tornou uma frustração para Ben Foster quando ele mais uma vez se viu relegado a posição de coadjuvante. No caso o inexpressivo Anjo, um mutante com bem pouco a acrescentar à trama. Sem espaço para brilhar aqui, Foster teve sorte melhor no projeto seguinte, o excepcional (e subestimado) faroeste Os Indomáveis (2007). Dirigido por James Mangold (Logan), o longa estrelado por Russel Crowe e Christian Bale deu a chance que ele precisava para se destacar. E Foster não se intimidou. Mesmo diante de nomes tão talentosos, o ator “engoliu” os seus parceiros de cena ao encarar o verdadeiro antagonista da produção (foto acima), dando vida a um tipo instável, passional e genuinamente ameaçador. Uma performance bem superior àquilo que o texto parecia exigir do seu personagem. Nos anos seguintes, aliás, Ben Foster se acostumou a elevar o nível das suas produções, entregando muito mais do que esperado em títulos como 30 Dias de Noite (2007) e Assassino a Preço Fixo (2011). Neste meio tempo, no entanto, o ator norte-americano conquistou o primeiro grande papel da sua carreira enquanto protagonista no denso drama O Mensageiro (2009). Indicado a duas estatuetas do Oscar, uma delas para o coadjuvante Woody Harrelson, o longa dirigido por Oren Moverman investigou as feridas causadas pela guerra do Afeganistão sob uma nova perspectiva ao narrar as desventuras de dois militares obrigados a informar as famílias que seus filhos foram mortos em território estrangeiro. Na pele de um novato na função, Foster exibiu o seu lado mais contido ao interpretar um homem em crise moral após se envolver com uma resignada viúva. Muito mais do que um romance em tempos turbulentos, o drama é cuidadoso ao se debruçar sobre a dor dos seus personagens dentro de um contexto particular, refletindo sobre a natureza da guerra, a família e a perspectiva dos envolvidos com rara sutileza. Um baita filme!


Ao contrário do que costuma acontecer com muitos, porém, a temporada de premiações não trouxe frutos para Ben Foster. Embora reconhecido pelo público e pela indústria, ele seguiu sem espaço entre os gigantes. Nos anos seguintes, na verdade, ele colecionou papéis menores em produções periféricas. Foi assim no cult espacial Sequestro no Espaço (2009), no drama 360 (2011), no policial Um Tira Acima da Lei (2011), no thriller Contrabando (2012) e no suspense Versos de Um Crime (2012). Um status incompatível com um ator que havia estrelado um drama recém-indicado ao Oscar. O que, felizmente, nunca parece ter sido um problema para Foster. Em entrevista recente ao The Playlist, ele admitiu que sempre esteve aberto a tudo, principalmente quando a história lhe atrai. “Eu vou fazer teatro. Eu vou fazer TV. Eu vou fazer um filme. Eu faria um maldito show de marionetes no estacionamento se eu gostasse das pessoas com quem estou trabalhando. É tudo sobre história e eu estou no jogo para qualquer coisa. ”, disse o ator se referindo a possibilidade de atuar em outras mídias e também em produções menores. Por mais que nunca tenha fechado as portas para o mercado blockbuster, nos últimos anos ele participou de projetos como o impactante O Grande Herói (2013), o subestimado Horas Decisivas (2016), o incompreendido Warcraft (2016) e o esquecível Inferno (2016), ao que parece Foster decidiu dar prioridade aos projetos mais independentes. O que, de fato, explica a subida do nível de qualidade dos seus últimos trabalhos. A começar pelo extraordinário A Qualquer Custo (2016). Livre das amarras do ‘mainstream’, o talentoso diretor David Mackenzie reuniu um elenco de peso para contar a jornada de dois irmãos vítimas do sistema (foto acima) obrigados a fazer de tudo para recuperar o rancho da sua família. Dividindo a tela com o igualmente talentoso Chris Pine, Foster causou um misto de sensações ao criar um personagem único, um anti-herói com tendências sociopatas incapaz de enxergar o quão tênue pode ser a linha que separa a justiça da vingança. Um trabalho memorável que, merecidamente, rendeu a Foster o Spirit Award (o Oscar do cinema ‘indie’) de Melhor Ator Coadjuvante.


Faltava a Ben Foster, porém, assumir o protagonismo das suas produções. Após (mais uma vez) roubar a cena em uma participação pontual no competente western revisionista Hostis (2017), o ator decidiu redefinir o patamar da sua carreira por conta própria ao estrelar o drama familiar Leave no Trace (Sem Rastros, no Brasil). Dando vida a um tipo novo em sua filmografia, um errático pai de família disposto a criar a sua filha longe do tumultuado estilo de vida urbano, Foster abraçou a complexidade do seu personagem com louvor, reforçando o potencial dramático da obra ao tornar tudo o mais intenso possível. Sob a sensível batuta de Debra Ganik, do igualmente denso Inverno da Alma (2010), o ator entregou uma atuação de uma introspecção absurda, fazendo jus a qualidade do texto ao nos permitir enxergar o sofrimento de um homem quebrado pela guerra. Dividindo a tela com a promissora Thomasin McKenzie (foto acima), numa performance igualmente primorosa, Foster viu o filme ser lançado e aclamado em festivais como Sundance e Cannes, o que causou certa esperança quanto ao futuro da obra. Infelizmente, no entanto, Leave no Trace não conquistou dentro da indústria o sucesso conseguido junto à crítica. Esnobado na temporada das grandes premiações, esta pequena pérola ganhou um lançamento reduzido ao redor do mundo e só não caiu no esquecimento graças ao fortalecimento dos serviços de streaming. Algo semelhante, aliás, aconteceu com o mais recente trabalho de Foster, o corajoso Galveston. Outra vez na pele de uma improvável figura paterna, o ator, que se tornou pai na vida em real em 2017, emplacou uma nova performance memorável ao interpretar um criminoso em fuga relutante em abandonar uma jovem prostituta que cruzou o seu caminho. Conduzido pela também atriz Melánie Laurent (Bastardos Inglórios), Foster, ao lado da força da natureza chamada Elle Fanning (foto abaixo), entrega uma película de difícil digestão, um thriller dramático robusto, com lampejos de visceralidade, que não parece interessado em iludir o seu público. Uma produção totalmente subestimada que, como de costume na carreira do ator norte-americano, passou longe de conquistar a atenção merecida.


Um daqueles raros atores que, como bem definiu o crítico Matt Zoller Seits, do site Roger Ebert, fazem um filme ruim valer a pena, Ben Foster é um caso que merece ser melhor estudado. Embora um grande realizador não precise necessariamente se tornar uma estrela do cinema (ou ganhar prêmios) para prosperar, é complicado perceber que, no ano em que um empolgado Rami Malek ganhou o Oscar, o SAG e o Globo de Ouro de Melhor Atuação pelo seu esforçado trabalho no questionável Bohemian Rhapsody, uma performance tão profunda quanto a de Foster em Leave no Trace foi sumariamente esnobada. Tem algo muito errado nisso. Menos mal que, reconhecido por Hollywood ou não, ele segue enfileirando performances de rara intensidade, escrevendo a sua particular história sem depender dos holofotes do sucesso.

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