O cinema nacional passa por uma
fase curiosa. Com apetite para o lucro “fácil”, o universo blockbuster
tupiniquim segue preso ao lugar comum, ao marasmo das descartáveis comédias da
“família brasileira”. Diante das falhas lei de incentivo e da ausência de um ‘modus
operandi’ mais “industrial”, realizadores, distribuidores e exibidores cultivaram
um “apetite” voraz pelo humor pastelão tipicamente televisivo, um formato datado
que, com raríssimas exceções, segue nivelando as nossas produções por baixo. Em
contrapartida, uma nova “safra” de diretores tem investido pesado na qualidade,
no conteúdo, mostrando que é possível valorizar o entretenimento sem
necessariamente subestimar a inteligência (e o bom gosto) do espectador.
Infelizmente, porém, a maioria destes “pequenos grandes” filmes não tem
conseguido o alcance merecido. Um dos últimos memoráveis produtos do nosso
cinema, o fantástico Bingo: O Rei das Manhãs (2017), por exemplo, não passou
despercebido, mas, mesmo com o selo de representante brasileiro no Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro, levou “apenas” cerca de 238 mil pessoas às salas ao
redor do país. Outro título que não ganhou a atenção devida por aqui foi o
esnobado Gabriel e a Montanha (2017). Inspirado numa comovente história real, o
refinado longa estrelado por João Pedro Zappa levou pouco menos de 40 mil
pessoas aos cinemas, mesmo com uma premissa extremamente agradável aos olhos do
público. “Escondido” no claustrofóbico circuito artístico, a produção com
padrão hollywoodiano passou praticamente despercebida pelos olhos do grande
público, um pecado que, a meu ver, parece explicar o porquê de muitos
espectadores tratarem as obras nacionais como um subproduto, como algo inferior
e\ou de má qualidade. Neste artigo, portanto, tentarei realçar os predicados do
cinema nacional numa lista com dez “novos” filmes brasileiros que não mereciam passar
em branco. Dito isso, começamos com...
Uma produção brasileira com um pé
(e meio) no cinema europeu, O Filme da Minha Vida é em sua essência mais pura
um exercício estético poderosíssimo. Sob a refinada batuta de Selton Mello (O
Palhaço), o longa atesta o fortalecimento visual das produções nacionais ao se
revelar uma obra capaz de falar através das suas sensíveis imagens. Embora
narrativamente falho, o afetuoso drama estrelado pelo talentoso Johnny Massaro
encanta ao realçar os símbolos por trás de uma típica jornada de
amadurecimento, reforçando a universalidade (e o viés cinematográfico) da trama
ao nos brindar com uma poesia imagética, humana e indiscutivelmente
bela. Um filme sobre amor, sobre amadurecimento, sobre um jovem disposto a
encontrar a verdade por trás de uma ausência sentida. E isso com um visual de
fazer inveja a qualquer grande produção europeia. Leia a nossa opinião completa aqui.
- Ponte Aérea (2015)
Seguindo um caminho aberto por
longas como Encontros e Desencontros (2003), 500 Dias com Ela (2009) e o
recente Os Dois Lados do Amor (2014), Ponte Aérea exala personalidade ao
ressaltar a disfuncionalidade de uma relação nada convencional. Recorrendo a
reconhecida rivalidade cultural entre RJ e SP, a habilidosa diretora Júlia
Rezende é extremamente eficaz ao construir um romance com cara de filme pipoca,
mas com alma de cinema autoral. Um oásis de vigor em meio ao deserto de
qualidade presente em boa parte dos blockbusters nacionais. Um romance que
conquista não só pela invejável química do casal Caio Blat (Entre Nós) e
Letícia Colin (Não Pare na Pista), mas também pela caprichada direção de arte e
pelo qualificado argumento. Leia a nossa opinião completa aqui.
- As Duas Irenes (2017)
Delicado e essencialmente
familiar, As Duas Irenes usa a traição como o ponto de partida para a
construção de um drama íntimo sobre o florescer da independência feminina. Com
sutileza e refinamento estético, o promissor diretor Fabio Meira propõe um
terno estudo de personagem ao narrar as desventuras de Irene (Priscila
Bittencourt), uma adolescente introspectiva e inteligente que vê a sua rotina
ruir no momento em que descobre que o seu querido pai (Marco Ricca) tinha uma
outra família e uma outra Irene (Isabela Torres). Sem saber o que fazer com
esta informação, ela decide se aproximar da sua meia-irmã, iniciando uma
relação de amizade que mudaria de vez o seu modo de pensar\agir. Ambientado numa
cidade do interior em uma década indefinida, a direção de arte sugere a segunda
metade dos anos 1970, Meira encontra nesta instigante premissa os ingredientes
necessários para expor a mudança no comportamento feminino durante este
período. Através do olhar curioso das duas Irenes, o argumento expõe não só a
(subentendida) inércia feminina das duas figuras maternas, como também o
amadurecimento de duas adolescentes dispostas a não repetir os erros das suas
progenitoras. No ritmo das extraordinárias performances da intensa Priscila
Bittencourt e da radiante Isabela Torres, o realizador enche a tela de
sentimento ao construir o crescente vínculo entre as personagens, ao mostrar a
troca de experiências e o impacto desta revelação na realidade das duas. Com
enquadramentos de rara beleza e revigorantes sequências, Meira esbanja
intimismo ao revelar as descobertas das Irenes, ao tentar entender os seus
anseios e as suas frustrações. A dinâmica entre as irmãs, na verdade, está
entre os pontos altos do filme, principalmente pela sensibilidade com que o
diretor traduz a interação entre elas, as reveladoras trocas de olhares, as
brincadeiras e o sincero elo. Tudo soa extremamente verossímil para o público,
como se estivéssemos, realmente, diante de uma família prestes a ter o seu
‘status quo’ alterado. Sem a intenção de julgar os seus personagens,
principalmente o afetuoso\egoísta pai vivido pelo talentoso Marco Ricca, As
Duas Irenes é um ‘coming age movie’ exemplar, um filme original, feminino e
visualmente belíssimo - ponto para ensolarada fotografia campestre de Daniela
Cajías – que encanta ao nos brindar com duas preciosas personagens femininas.
- Entre Abelhas (2014)
Abrindo mão do humor ácido e
escrachado da trupe Porta dos Fundos, o diretor Ian SBF (Teste de Elenco) faz
de Entre Abelhas uma das obras mais particulares dentro da nova safra de filmes
nacionais. Um dos idealizadores por trás deste fenômeno 'viral' da comédia
brasileira, o realizador mostra nesta nova empreitada um rigor estético
absolutamente atraente, fugindo das amarras do cinema comercial ao dar
contornos extremamente ousados a uma trama inesperadamente convencional.
Contando com o impecável desempenho de Fábio Porchat (Meu Passado me Condena),
que surpreende ao conceber um personagem intenso e completamente distante da
sua zona de conforto, Ian encontra um caminho original e ligeiramente esquisito
para narrar o impacto da depressão na rotina de um homem acometido pela dor da
separação. Construindo uma espécie de drama com toques de suspense e comédia, o
longa se aprofunda na complexidade humana ao contar a absurda história de um
sujeito que deixou de enxergar as pessoas. Um filme com um criativo
subtexto que causa reflexão sem abdicar do entretenimento. Leia a nossa opinião completa aqui.
- O Último Cine Drive-In (2014)
Muito mais do que uma versão
tupiniquim do clássico Cinema Paradiso, O Último Cine Drive-In mistura ficção e
realidade numa verdadeira carta de amor à Sétima Arte. Consciente do domínio
das grandes redes de exibição, o diretor e roteirista Iberê Carvalho encanta ao
sair em defesa dos pequenos exibidores, daqueles que, mesmo asfixiado pelos
lucrativos multiplex, insistem em tratar o cinema como parte de uma experiência
única. Rodado num dos últimos drive-in’s do Brasil, um sobrevivente localizado
em Brasília, o realizador enche a tela de sentimento ao nos brindar com uma
película nostálgica, melancólica, mas levemente otimista, um filme recheado de
predicados técnicos que resiste em ser encarado como um mero produto. Um
envolvente drama familiar que, indiscutivelmente, não merece cair no
esquecimento, principalmente pela delicadeza com que narra jornada de um
desamparado jovem obrigado a se reaproximar do seu distante pai. Um belo
trabalho da dupla Othon Bastos e Breno Nina. Leia a nossa opinião completa aqui.
- Comeback (2016)
Último trabalho do versátil e
talentoso Nelson Xavier, Comeback se apropria do ‘western’ revisionista num
recorte crítico sobre a onda de violência que assola a nossa rotina. Numa obra
capaz de fazer inveja a nomes como dos irmãos Coen e Quentin Tarantino, o longa
dirigido e roteirizado por Erico Rossi flerta com o humor negro e a banalidade
da violência do segundo ao narrar a jornada de um assassino decadente disposto
a deixar o ostracismo dentro do mundo do crime. Numa obra esteticamente
refinada, o contraluz, em especial, é explorado com requinte em planos
memoráveis, o realizador extrai o máximo do saudoso ator ao construir um
protagonista sereno e amoral, um homem orgulhoso do seu legado movido pelo ego
e pelo desdém daqueles que o cercavam. Consciente da realidade que nos cerca,
Rossi se distancia do teor condescendente ao tratar a rotina do personagem com
fidelidade aos fatos, evidenciando a frieza em detrimento da exaltação. Não
espere, portanto, um típico thriller de vingança no estilo Drive (2011) ou John
Wick (2015). Em Comeback a violência é nua, crua e não poupa inocentes. Embora
o arco do inquieto protagonista seja denso e envolvente, o grande trunfo do
longa está na sagacidade com que o roteiro questiona a violência urbana dentro
das periferias. Indo além dos populares arquétipos e dos assuntos recorrentes
nos principais telejornais, Rossi é astuto ao usar a situação do pistoleiro
para refletir sobre questões mais complexas, entre elas o desemprego, a solidão
e o desamparo na terceira idade, preenchendo a trama com diálogos irônicos e
contextualizados. Um reflexivo viés crítico que culmina num reflexivo clímax,
um desfecho corajoso principalmente por escancarar o círculo vicioso que segue
ceifando vidas na maior parte das regiões brasileiras.
- Califórnia (2014)
Se Comeback poderia dividir
prateleira com filmes de nomes como os de Quentin Tarantino e os irmãos Coen,
Califórnia é o tipo de obra que poderia deixar John Hughes (Clube dos Cinco)
orgulhoso. Um prato cheio para os fãs da cultura pop\musical oitentista, o
revigorante longa dirigido pela ex-VJ Marina Person esbanja intimismo ao narrar
a jornada de amadurecimento de uma introspectiva jovem (Clara Gallo) diante de
uma triste notícia envolvendo o seu querido tio (Caio Blat). No melhor estilo
‘coming age movie’, a realizadora é cuidadosa ao se debruçar sobre temas
tipicamente juvenis, realçando os anseios de uma geração que começava a
respirar “ares libertários” após a repressão. Embora o longa faça um imersivo
uso da atmosfera oitentista, graças ao minucioso trabalho da equipe de direção
de arte todos os habitáveis cenários dizem muito sobre os personagens e a época
em que eles estão inseridos, Person mostra astúcia ao tratar os dilemas da
magnética Estela sob um prisma universal, o que torna o argumento reconhecível (e
honesto) aos olhos do público. Entre as idas e vindas sentimentais da
protagonista, a diretora é particularmente cuidadosa ao construir o vínculo
entre sobrinha e tio, ao estabelecer a troca de experiências entre os dois, uma
relação sutil e reverencial que, explorada na medida certa, ajuda a compor esta
humana personagem. Com aversão ao sentimentalismo, Person consegue explorar os
dolorosos problemas em torno de Estela sem tirar o foco dela, sem se prender a
temas batidos, preenchendo a trama com diálogos espertos sobre música,
literatura, política e as idiossincrasias desta complexa faixa etária. A
sequência do sorvete, em especial, atesta a maturidade de Person, uma cena
forte em que o silêncio é mais revelador do que qualquer palavra. Além disso, a
realizadora mostra bom gosto estético ao capturar a vibe colorida dos anos 80,
investindo em engenhosos planos médios e íntimos planos fechados na tentativa
de capturar o fervor cultural (e hormonal) que cerca o arco da protagonista. Um
filme sobre sonhos e realidades, Califórnia encanta ao, mesmo sem reinventar a
roda, mostrar as descobertas de uma jovem obrigada a encarar as frustrações, as
decepções, as surpresas e as peças que só a vida é capaz de pregar. E que
trilha sonora!
- Meninos de Kichute (2014)
“Existem dois tipos de pessoas:
os que têm medo e os que não têm”. Um relato leve, universal e naturalmente
nostálgico, Meninos do Kichute esbanja simplicidade ao acompanhar as peripécias
de um garoto peralta e sonhador. Numa aventura com alma tupiniquim, o longa
dirigido por Luca Amberg encanta ao nos levar para uma época que não volta
mais: a infância. Mesmo ambientado no final da década de 1970, o filme
estrelado pelo carismático Lucas Alexandre investe num viés universal ao
revelar os anseios do pequeno Beto, um garoto esperto que sonhava em ser
goleiro de futebol. Um prato cheio para àqueles que cresceram nas décadas de
1970, 80 e 90, o longa revigora ao tornar tudo reconhecível aos olhos do público,
ao estabelecer as relações de amizade, as brincadeiras, os conflitos familiares
e os amores juvenis. Na verdade, o adorável longa funciona como uma espécie de
máquina do tempo, principalmente pela maneira descomplicada com que traduz a
rotina do protagonista enquanto constrói a sua terna jornada de amadurecimento.
Embora peque pela unidimensionalidade quanto a retrógrada\hipócrita figura
paterna vivida por Werner Schunemann, Meninos do Kichute envolve ao apostar as
suas fichar no elemento lúdico, valorizando a importância das experiências
infantis numa obra delicada e comovente.
- Mundo Cão (2015)
Um filme de gênero essencialmente
brasileiro, Mundo Cão investe pesado no humor negro ao colocar em cheque a
irracionalidade do ser-humano diante das hostilidades enfrentadas no dia a dia
das grandes cidades. Impulsionado pelo instigante argumento, o diretor Marcos
Jorge (do aclamado Estômago) esbanja acidez ao construir um suspense pulsante,
um relato inteligente marcado por bem arquitetadas reviravoltas e por voláteis
personagens. Mesmo com alguns pequenos problemas narrativos, a maioria deles
refletidos no uso da deslocada trilha sonora e no flerte com os melodramas, o
longa é perspicaz ao provocar a expectativa do público, investindo na
imprevisibilidade ao acompanhar a jornada de vingança iniciada com o sacrifício
de um estimado cão. E isso sem falar da absurda performance de Lázaro Ramos,
que, num tipo sarcástico e naturalmente assustador, dá completo sentido a esta
moderna e urbana sátira social. Leia a nossa opinião completa aqui.
- O Roubo da Taça (2017)
Inspirado em títulos do quilate
de Fargo (1996) e Snatch: Porcos e Diamantes (2000), O Roubo da Taça é uma
comédia de erros com um tempero tipicamente tupiniquim. Sob a cômica batuta de
Caito Ortiz, da divertida série FDP, o longa estrelado pela dupla Paulo
Tiefenthaler e Tais Araujo é sagaz ao reproduzir os bastidores do vexatório
roubo da taça Jules Rimet. Entre fatos e ficção, o realizador mostra
irreverência ao utilizar o caótico contexto sócio-político da época em prol da
trama, brincando com os nossos estereótipos ao realçar a falta de organização,
as bravatas dos políticos e o popular "jeitinho" brasileiro. Embora
perca força no momento em que decide reinterpretar a história, O Roubo da Taça
é um competente exemplar da comédia nacional, um longa bem escrito, com um
entrosado elenco e uma afiada veia cômica genuinamente brasileira. Leia a nossa
opinião completa aqui.
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