quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Cinco Filmes | Fernanda Montenegro



Em qualquer país que prezasse pela arte, Fernanda Montenegro seria um símbolo. Um monumento cultural. Com extrema devoção à sua profissão, a legendária atriz sempre se entregou de corpo e alma ao Teatro, ao Cinema e também a TV. Sua carreira fala por si só. São anos de serviços prestados, de grandes obras, de performances memoráveis. Nos últimos dias, porém, o que vimos foram ataques de uma crueldade sem tamanho. Por motivos toscos, Montenegro teve que ouvir ofensas inconcebíveis. Não vale nem as replicar aqui. E de um homem que, teoricamente, deveria representar a arte brasileira. Esse é o mundo em que vivemos... Mas Fernanda Montenegro é maior do que tudo isso. Uma verdadeira dama da arte não se rebaixaria a este tipo de acusação. Volto a frisar, a sua história é incontestável. Nada mais justo, portanto, do que reverenciar o trabalho desta gigantesca atriz. No dia em que Fernanda Montenegro completa 90 anos, neste Cinco Filmes preparei uma lista com alguns dos melhores longas estrelados por esta rainha da arte brasileira. 

- A Falecida (1965)


Subúrbio do Rio de Janeiro. No tempo em que Ademir era Pelé, uma mulher insegura procura uma cartomante e ouve que precisa tomar cuidado com uma loira. Diante desta “informação”, ela mergulha numa espiral de angústia, raiva e loucura, deixando transparecer a tristeza que sempre escondeu tão bem. Mais do que um grande filme, A Falecida pinta um retrato precioso sobre a desconfortável posição de uma mulher numa sociedade machista. Inspirado no conto de Nelson Rodrigues, o longa dirigido por um então iniciante Leon Hirszman invade a rotina de uma protagonista frustrada. No seu primeiro grande papel no cinema, Fernanda Montenegro esbanja intensidade ao dar vida a um tipo complexo, cansada de se submeter ao crivo alheio. A Falecida é, em sua essência mais pura, uma crônica sobre o efeito da repressão na identidade de uma mulher. Com um senso de humor um tanto quanto mórbido, Zulmira encontra na morte uma espécie de fuga. A liberdade. Sob o olhar dela percebemos a raiz de tudo isso. A frieza do seu marido. O peso do conservadorismo. O olhar de condenação daquelas que deveriam compreendê-la. Uma explosiva combinação de sentimentos que cresce à medida que o argumento se debruça sobre os seus conflitos mais íntimos. Investiga a culpa que a culpa que corrói. Após anos brilhando nos palcos, Montenegro interioriza o turbilhão de emoções que consume a protagonista com naturalidade, criando um retrato extremamente reconhecível. Num tempo em que o conservadorismo social volta a falar alto, a tentar estabelecer regras e padrões, títulos como A Falecida se tornam indispensáveis. Somado a isso, impulsionado pelo elenco de primeira (Hugo Carvana, Nelson Xavier, Paulo Gracindo, Ivân Candido), Hirzman captura o senso de ironia de Nelson Rodriguez com enorme perícia, preenchendo a trama com um humor em muitos casos incorretos, recheado de misoginia e comentários ácidos. O que, sob a óptica masculina da época, infelizmente fazia (ou ainda faz ?) todo o sentido.


- Eles Não Usam Black-Tie (1981)


Um país sem memória está fadado a repetir os erros do passado. Um fato que fica bem claro quando nos deparamos com a pérola do cinema nacional chamada Eles Não Usam Black-Tie. Num momento em que indivíduos vão às ruas para defender o autoritarismo, evocar um dos períodos mais sombrios da nossa história recente, o longa dirigido por Leon Hiszrman escancara a realidade enfrentada por muitos ao invadir a intimidade de uma família da classe operária. Um panorama ainda hoje extremamente reconhecível. Sem medo de colocar os pingos nos is, o cineasta usa o choque de mentalidades entre um idealista pai (Gianfrancesco Guarnieri) e o seu arredio filho (Carlos Alberto Riccelli) como a ponte para uma discussão muito mais ampla. Sob a óptica deles enxergamos a diferença na perspectiva daqueles que cresceram com liberdade e a geração que nasceu na repressão. Com uma forte veia social e um olhar genuinamente humano, Hiszrman pinta um retrato profundo sobre como era a vida num regime como a Ditadura Militar. Sobre o estrago que a opressão, a desigualdade e a falta de direitos básicos poderia causar num ambiente de união e cumplicidade. Impulsionado pelas performances maiúsculas de todo o elenco, o realizador não se furta ao expandir o objeto de discussão. Do conflito causado pela iminência de uma greve enxergamos o melhor e o pior destes homens. Tanta a sua face mais corajosa, quanto a mais inconsequente. Por mais que o filme opte pelo julgamento em alguns momentos, o que, diante do contexto, soa compreensível, é fácil entender os dois lados desta moeda. Enquanto o pai, o sindicalista experiente, não aceitava ver os seus companheiros isolados no embate contra os patrões, o filho, um jovem receoso e ambicioso prestes a ser pai, sabia o quão infrutífero poderia ser esse confronto. Ambos têm falhas e virtudes. Hiszrman, porém, não tolera aquele que deixa de olhar para a sua gente. Recheado de diálogos antológicos, o realizador não titubeia em colocar em cheque àqueles que se esquecem das suas origens, que decidem falar em nomes de pessoas que não os representam. Somado a isso, Eles não Usam Black-Tie vai bem além da crítica política ao refletir também sobre o machismo enraizado neste núcleo. Sob a óptica das extraordinárias personagens femininas, entre elas a independente jovem vivida por Bete Mendes (uma atriz que sentiu na pele as "chagas" da ditadura) e a calejada matriarca interpretada por uma soberba Fernanda Montenegro, Hiszrman encontra a sua verdadeira bússola moral dentro da história. Estamos diante de duas mulheres de ação, cansadas da submissão, cansadas de não serem ouvidas, cansadas de terem o mínimo repentinamente tirado. Na verdade, Eles não Usam Black-Tie clama por reação. A violência, o preconceito e a desigualdade surgem como o agente catalisador de uma obra inflamada por natureza, um relato realístico sobre os homens e mulheres trabalhadores que ajudariam a mudar o rumo do país nos anos seguintes. Uma pena que o idealismo de figuras como Otávio tenha se perdido em meio a corrupção e a ilusão de um país mais justo e igual.

- Central do Brasil (1998)


Eu costumo dizer que Central do Brasil foi uma porta de entrada para o cinema brasileiro para uma geração. Numa época em que “vivíamos” de filmes dos Trapalhões, da Xuxa e reprises das chanchadas\pornochanchadas, o aclamado longa dirigido por Walter Salles resgatou de certa forma a imagem das produções nacionais aos olhos do grande público com uma história de amizade singela, realista e absolutamente tocante. Ali estava o Brasil que conhecíamos. O pais em que vivíamos. Um cenário desigual, injusto, caótico, hostil. Neste ambiente corrosivo nasce a relação de companheirismo entre uma insensível professora e um pequeno órfão. Central do Brasil encanta ao enxergar além das sombras que pairava sobre o mundo em que os personagens estavam inseridos. Num momento de extrema tristeza, a empatia surge de onde menos esperávamos. Ao se deparar com a vulnerabilidade de uma criança, o esperto Josué (Vinicius de Oliveira), Isadora (Fernanda Montenegro) resolve voltar a dialogar com o seu lado mais humano. Sob a perspectiva desta complexa personagem, uma mulher capaz ora de enganar, ora de proteger, Salles aponta a sua câmera para um Brasil esquecido. O Brasil dos migrantes, dos analfabetos, dos humildes, dos desprotegidos. A partir da perspectiva desta professora, uma mulher produto da frieza dos grandes centros urbanos, o longa invade um Brasil que permanecia à margem. Como se não bastasse o drama em torno da tortuosa\espirituosa relação entre Isadora e Josué, o ‘road-movie’ tupiniquim surge como um precioso retrato do seu tempo, um relato potencializado pela monumental performance de Fernanda Montenegro. Responsável por dar vida a grande interlocutora da história, a atriz nos brinda com uma performance tridimensional. Montenegro cria uma mulher cheia de nuances, solitária, frustrada, irônica e resiliente. Vítima aos olhos de uns, parte do problema aos olhos dos outros. Um trabalho antológico que, para a surpresa de muitos, a levou a lista de indicadas ao Oscar de Melhor Atriz. E com chances reais de vitória. Indicado também ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, Central do Brasil se tornou um dos maiores triunfos do cinema nacional. Uma obra decisiva no processo de retomada e ainda hoje extremamente atual.

- O Redentor (2004)


Fernanda Montenegro é mestre em fazer personagens dúbias. Genuinamente humanas. Frutos do meio em que vivemos. Algo que fica mais uma vez claro em O Redentor, um dos filmes mais subestimados do cinema nacional. Numa crônica fantástica extremamente atual, com direito a empreiteiras corruptas, obra superfaturadas e promessas não cumpridas, o diretor Cláudio Torres usa e abusa da tragicomédia ao narrar as desventuras de um laranja (Pedro Cardoso) que, após ver os seus pais (o casal da vida real Fernando Torres e Fernanda Montenegro) terem o sonho da casa própria ceifado por um velho amigo de infância (Miguel Falabella), entra em crise de consciência ao ouvir o chamado divino. O que vemos a partir daí é uma impagável comédia de erros envolvendo um grupo de invasores, um prédio não finalizado e uma promessa de redenção. Tudo funciona muito bem aqui. As atuações são fantásticas. O roteiro é ferino e engraçadíssimo. Os efeitos visuais, para a época do lançamento, se revelaram impressionante. Ganância, ambição e sede por justiçam guiam a trama a um lugar totalmente surpreendente. Embora com um menor tempo de tela aqui, Montenegro surge como um agente catalisador da obra, uma mulher cansada de apanhar iludida pelo sonho de sair ganhando uma primeira vez. Dirigida pelo seu próprio filho, a atriz ajuda a conferir uma tridimensionalidade a obra, em especial por mostrar o efeito subversivo da corrupção. Com Pedro Cardoso inspiradíssimo, Redentor é cinema brasileiro em sua máxima potência. Um retrato satírico\fantástico sobre uma realidade que anos mais tarde viria a tomar conta dos nossos telejornais.


- Casa de Areia (2005)


Com mãe e filha atuando lado a lado, Casa de Areia reflete sobre a relatividade do tempo de forma poética, íntima e genuinamente feminina. Sob a corajosa batuta de Andrucha Waddington, que, num trabalho visualmente imponente, conseguiu imprimir em tela todos os obstáculos impostos pelo arenoso cenário em questão, o longa invade a jornada hercúlea de três gerações de mulheres “unidas” pelo abandono. Embora situado basicamente num único cenário, o poderoso drama passeia por cinco décadas da nossa história escancarando os tabus enfrentados pelo sexo feminino e a luta delas por liberdade, respeito e independência. A partir do choque de ideias entre mãe (Fernanda Montenegro) e filha (Fernanda Torres), Waddington toca em questões complexas ao investigar as conflitantes perspectivas das duas personagens. O que para a veterana era um Oásis, um lugar em que “nenhum homem mandava”, um espaço em que o tempo as “respeitava”, para a sua herdeira era um inferno inóspito e incivilizado, uma herança maldita de um homem vil. Enquanto uma fugia do seu passado, outra tentava fugir do seu presente. O tempo, no entanto, é capaz de mudar tudo, até mesmo as suas respectivas visões de mundo. Numa analogia brilhante, Waddington usa a relação do homem com o espaço\tempo como um agente catalisador da trama. Enquanto mãe e filha se veem presas num ciclo sem fim, o mundo lá fora segue girando. Mudando. Se transformando. Um sentimento potencializado com o amadurecimento de Maria, a “selvagem” neta da matriarca, e pelas magníficas performances de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. Responsáveis por viver as três protagonistas em diversos momentos da história, mãe e filha mergulham no turbilhão de emoções enfrentados por elas com peso e profundidade, escancarando a influência do tempo na identidade delas com maestria. Montenegro e Torres se transformam em cena sem sacrificar a essência de cada uma das personagens. Existe um claro senso de jornada aqui. No fim, a viagem de duas mulheres rumo ao desconhecido, em busca da tão preciosa autonomia, da independência, pode ser tão intrépida quanto a ida do homem à lua.

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