domingo, 8 de abril de 2018

Minha Primeira Luta

As batalhas da vida real

Algumas pessoas não precisam subir num tatame ou num ringue para entender o real sentido da palavra lutar. Impecável ao mostrar o quão tênue pode de ser a linha entre a vitória e a derrota, entre o sucesso e o fracasso, Minha Primeira Luta é incisivo ao mostrar as desventuras de uma promissora lutadora num ambiente abusivo e desigual. Recebido com elogios no descolado festival Sound by South West, o longa dirigido e estreado pela novata Olivia Newman se distancia dos clichês dos filmes esportivos ao se concentrar nos verdadeiros obstáculos desta lutadora, ao tratar a realidade como o principal oponente de uma jovem pobre e negra num contexto essencialmente urbano. Embora siga uma linha reconhecível aos olhos dos fãs de títulos do porte de Rocky: O Lutador, O Vencedor e o recente Creed, a promissora realizadora o faz com enorme sinceridade, realçando as falhas, os excessos e as virtudes da sua protagonista enquanto revela o impacto do desamparo na rotina de alguém que precisou aprender a lutar desde cedo para conquistar as suas oportunidades. Uma abordagem humana potencializada pela poderosa performance da expressiva Elvire Emanuelle, que, num trabalho recheado de nuances sentimentais, reforça a importância da diversidade em Hollywood. 


Mesmo diante de algumas soluções convenientes, daquelas que já podem ser pressentidas há léguas de distância, o roteiro assinado pela própria Olivia Newman coloca o dedo na ferida ao sintetizar na figura de Mo (Elvire Emanuelle) os problemas de muitos jovens afro-americanos. Impecável ao tratar o esporte como um dos raros instrumentos democráticos de ascensão social, a diretora esbanja propriedade ao se debruçar sobre os conflitos da sua complexa protagonista, uma precoce adolescente adotada que, pulando de lar em lar, criou uma casca para tentar sobreviver aos obstáculos do dia a dia. Trazendo no sangue o talento para a luta livre, herança do seu querido pai, o presidiário Darrel (Yahya Abdul-Mateen II), ela virou a típica garota problema, uma estudante relapsa que, convivendo com as incertezas da vida adulta, abdicou do seu talento para ganhar dinheiro “fácil” às custas de homens mais velhos e pequenos “delitos”. A sua face mais frágil e sincera, porém, Mo só mostrava para o seu amigo de infância Omari (Jharrel Jerome), um lutador esforçado que cresceu ao seu lado na periferia. Após ser expulsa de casa pela enésima vez, a estudante vê a sua situação ganhar uma nova perspectiva ao descobrir que o seu pai havia deixado a prisão. Disposta a se reaproximar dele, ela decide voltar a lutar no seu colégio, acreditando que o Wrestling poderia fazer o ex-lutador lembrar dos tempos passados. Convivendo com a esperança de dias melhores, Mo não demora muito para descobrir os sacrifícios da vida adulta, principalmente quando se vê dividida entre os sonhos esportivos e a chance de “prosperar” ao lado do seu pai. 


Com a coragem necessária para expor a realidade de muitos adolescentes, Olivia Newman é cuidadosa ao universalizar a situação da sua indomável personagem, ao evidenciar, através dela, o peso da ausência paterna, da falta de oportunidades e da desigualdade social na rotina de uma jovem da periferia. A diferença é que, aqui, ao contrário da maioria dos filmes do segmento, a protagonista é uma mulher. Uma opção que, de certa forma, só adiciona mais relevância ao longa. Isso porque, numa época em o mundo do cinema clama por igualdade de gêneros e pela diversidade, tipos como o da resiliente Mo surgem como um sopro de esperança. Enquanto se concentra na jornada de amadurecimento da protagonista, aliás, Minha Primeira Luta se revela uma obra significativa. Num verossímil estudo de personagem, Newman envolve ao acompanhar os altos e baixos da personagem, ao se encantar tanto pela jovem raivosa capaz de atitudes sorrateiras, quanto pela integridade emocional da talentosa lutadora. Exalando realismo, o argumento é habilidoso ao investigar os seus conflitos mais íntimos, ao justificar as suas melhores e piores decisões. Sob um prisma intimista, a diretora, num primeiro momento, realça a casca “criada” por Mo, a mulher bela e ofensiva que, para sobreviver nas ruas, parecia estar próxima do círculo vicioso que a colocou naquela situação. Não demora muito, porém, para que conhecemos a verdadeira Monique. Por trás dos apliques avermelhados e da postura “desregrada” existia uma jovem com sonhos. Uma amiga fiel. Um atleta determinada. Uma filha zelosa. Uma garota obstinada. Um viés humano e emotivo que, ao longo das fluídas 1 h e 40 min de trama, é brilhantemente desenvolvido nas mãos de Newman. Vide, por exemplo, a sua afetuosa relação com o sincero Omari. É através deste arco fraternal que enxergamos a face mais vulnerável de Mo, a moleca imatura e provocadora que não relutava em exaltar os seus dons atléticos. Um predicado, diga-se de passagem, valorizado pela performance do carismático Jharrel Jerome, intenso seja como o compreensivo “ombro amigo”, seja como um revoltado enciumado. 


Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira astuta com que Olivia Newman introduz o ‘plot’ esportivo. Sem recorrer a temas batidos dentro do segmento, a questão de gênero, acertadamente, passa longe de ser o problema. Esqueça, portanto, a vela rixa entre homens e mulheres. Mo conquista o seu espaço de maneira rápida e compreensível aos olhos do público, mostrando por a + b que o clichê do sexo frágil é coisa do passado. Ao invés de perder tempo com situações requentadas, o roteiro é sutil ao construir não só o gradativo vínculo entre ela e os seus companheiros de equipe (todos homens), como também a sua honesta relação com o seu técnico, o compreensivo Castille (Colman Domingo, competente como de costume). Sem um pingo de julgamento, tal qual o longa como um todo, o professor surge como a voz da razão, um homem consciente e nada condescendente que sabia que a luta livre poderia salvar aquele talento de uma dura realidade. O foco, aqui, não está nas conquistas, nem nas medalhas, mas no esporte como uma peça chave dentro desta jornada de amadurecimento. No momento em que Minha Primeira Luta poderia subir de patamar, entretanto, Newman peca ao não tratar a dúbia figura paterna com a mesma tridimensionalidade da sua filha. Por mais que a complicada relação entre Darrel e Mo sirva satisfatoriamente para o desenrolar da história, principalmente quando o assunto é a influência do pai sobre ela e o desenvolvimento das suas motivações, a realizadora patina ao se concentrar demasiadamente no ponto de vista da jovem. Impulsionado pela densa performance Yahya Abdul-Mateen II, convincente seja como um pai orgulhoso, seja como um ex-presidiário instável relutante quanto ao destino da sua filha, Darren se revela uma figura contraditória, um homem capaz de tomar decisões perigosas, mas de realmente sentir as consequências dos seus atos. Na verdade, ele é o produto final do círculo vicioso que cercava a protagonista. O fruto da desigualdade, da falta de oportunidade e das peças que a vida costuma pregar. Este instigante ‘background’, porém, é subaproveitado pelo roteiro que, descuidadamente, prefere apostar no poder da sugestão, esvaziar este promissor contraponto e “reduzir” um personagem tão multifacetado quanto a protagonista. O mesmo, aliás, acontece com a subtrama envolvendo a zelosa mãe adotiva interpretada por Kim Ramirez, uma personagem intensa que, felizmente, ganha a relevância devida dentro do emotivo último ato. 


A força de Minha Primeira Luta, entretanto, em nenhum momento é abalada devido a comovente entrega de Elvire Emanuelle. Com uma personagem recheada de camadas, a talentosa jovem atriz é cuidadosa ao capturar os conflitos de um jovem comum. Indo da amante ardilosa à adolescente fragilizada, a norte-americana explora todas as nuances da sua Mo com peso dramático, transitando por sentimentos contrastantes enquanto constrói esta resiliente personagem. Ela chora, ri, enfrenta, foge, mostra autoconfiança, sucumbe a pressão. Estamos diante de uma personagem humana, que realmente pertence a este mundo complexo e desigual em que vivemos. E isso, indiscutivelmente, é o pré-requisito máximo para qualquer produção disposta a expor a verdade que nos cerca. Em suma, conduzido com simplicidade e energia de Olivia Newman, Minha Primeira Luta é o tipo de produção que me faz valorizar (e rotineiramente defender) a iniciativa de companhia como a Netflix. Mais do que simplesmente valorizar (e amplificar) o trabalho de novos realizadores, a gigante do streaming tem dado voz a personagens como Mo, tipos plurais, modernos e independentes que, aos poucos, têm conquistado o espaço (e o alcance) merecido. E melhor quando isso acontece numa produção acima da média.

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