Em busca de independência
Manana era uma mulher frustrada. Seu casamento era tão frio quanto um geleira. Sua rotina doméstica era caótica. Dividindo o seu apertado apartamento
com outras seis pessoas, ela precisava conviver diariamente com o desdém dos
seus dois filhos, com o distanciamento do seu marido e os desmandos da sua conservadora mãe. Manana
deixa de se tornar uma pessoa "invisível", no entanto, quando decide romper com
a sua própria prole, se distanciar da sua cansativa rotina e se mudar sozinha
para um novo apartamento. Da Geórgia para o mundo graças ao faro apurado da
Netflix, Minha Família Feliz - que titulo irônico - escancara os dilemas
femininos numa sociedade patriarcal com intensidade e um pontual senso de
humor. Embora se passe num contexto bem particular, uma tradicionalista família
georgiana, o longa dirigido por Nana Ekvtimishvili e Simon Groß mostra
universalidade ao tratar de tabus bem comuns ao universo feminino, expondo a
realidade de uma mulher infeliz sob um prisma introspectivo, maduro e indiscutivelmente
crítico.
Com roteiro assinado pela própria Nana Ekvtimishvili, My Happy Family
(no original) é narrativamente comedido ao desvendar os conflitos da sua
instigante protagonista. Ao contrário da sua expansiva família, Manana
"fala" através do seu olhar, da sua expressão corporal. No embalo da
humana performance de Ia Shugliashvili, intensa ao reproduzir a apatia, a
angústia e a coragem de uma mulher disposta a romper vínculos tão
estreitos, a dupla de realizadores mostra inspiração ao, num primeiro momento,
propor um profundo estudo de personagem. Numa abordagem bem naturalista, Nana e
Simon são astutos ao traduzir a confusa rotina da protagonista, ao
estabelecer a problemática relação entre ela e os seus familiares, usando este
cenário como o ponto de partida para que possamos entender os seus dilemas mais
íntimos. Embora opte por não verbalizar os sentimentos de Manana, o argumento é
cuidadoso ao expor a sua solidão, a sua falta de voz e a sua inércia dentro
desta disfuncional estrutura familiar. Num 'mise en scene' ágil e
sofisticadamente irônico, os diretores permitem que o público compreenda os
motivos por trás de tamanha ruptura, transformando o envolvente primeiro ato
numa espécie mais densa (e georgiana) de A Grande Família. Sem querer revelar
muito, da relação entre ela e a sua mãe, a impositiva Lamara (Berta Khapava),
nascem os momentos mais engraçados do longa, muito em função da maneira
retrógrada com que a dramática matriarca enxergava a decisão da sua filha.
Impecável ao introduzir os conflitos desta mãe em busca de
independência, My Happy Family é igualmente habilidoso ao acompanhar a jornada
de redescoberta de Manana. Ao se distanciar da sua sufocante rotina, ela passa
a reencontrar a sua identidade, a se renovar enquanto mulher, uma transformação
sutil brilhantemente traduzida por Ia Shugliashvili. Numa criativa solução
visual, inclusive, Nana e Simon substituem os caóticos planos sequências do
primeiro ato por enquadramentos mais amplos e estáticos, capturando as mudanças
da protagonista com suavidade e beleza. Nas entrelinhas, porém, os realizadores
não se contentam em se concentrar somente no silencioso grito de liberdade de
Manana. Ao longo do intenso segundo ato, a dupla amplia o escopo da trama ao, a
partir da situação dela, refletir sobre a realidade feminina dentro de um
cenário conservador. Com uma desconfortável naturalidade, o argumento evidencia
os tabus enraizados na sociedade georgiana, expondo não só o paternalismo
masculino, como também o conservador discurso feminino. A decisão de Manana
gera ruidosas discussões, culminando em diálogos retrógrados, mas completamente
francos. Além disso, é interessante ver o esmero de Nana e Simon ao pintar uma
espécie de círculo vicioso, ao mostrar a precocidade dos mais jovens, os
"erros" sendo repetido, um olhar crítico sobre uma parcela da
sociedade da Geórgia. Na transição para o último ato, porém, a introspecção da
protagonista se torna cansativa, principalmente diante da reviravolta
matrimonial proposta pelo roteiro. Embora renda duas das melhores sequências do
longa, vide a contundente última cena, a reação da personagem a este fato novo
é tratada com certa redundância, travando o andamento da trama durante parte do
último ato.
Nada que reduza o peso e a relevância de My Happy Family\Minha Família
Feliz, um drama reflexivo que, guardada as devidas perspectivas culturais, se
insurge contra os retrógrados padrões envolvendo a idealização da felicidade
matrimonial. Com universalidade e inventivas soluções narrativas, Nana
Ekvtimishvili e Simon Groß conseguem também pintar um revelador relato sobre o
estilo de vida na sociedade georgiana, encontrando na Netflix o holofote
necessário para propor uma importante discussão em torno de conflitos
genuinamente femininos.
5 comentários:
Esse filme é belo,mas não qualquer beleza,é uma beleza que nos angustia. Após o filme me senti estranhamente tocada.
Destaque a parte musical do filme, notadamente na festa de encontro dos colegas.
Sem dúvidas Simone. Durante o filme, inclusive, pensei justamente que o filme deveria funcionar ainda melhor junto as mulheres. Bem lembrado Andre. Essa cena, em especial, é muito interessante. Valeu pela visita.
Gostei! Fora da caixinha de "roliudi". Parecia ate um filme brasileiro. A versão drama do "A grande família. Embora os personagens principais não tenham nada a ver com Lineu e Nene. Interessante ver que em qualquer lugar do mundo os seres humanos são controladores, preguiçosos e que a família é o "peso" mais importante.
Vardade!
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