"Nenhuma outra forma de arte vai além da consciência ordinária como o cinema, que vai direto nas nossas emoções, fundo no crepúsculo da alma." Ingmar Bergman
Um dos realizadores mais influentes do cinema europeu, Ingmar Bergman viu a sua obra ganhar um status inacessível junto ao grande público. O que é uma pena. Nascido pouco meses antes do término da Primeira Guerra Mundial, o realizador sueco se tornou uma das vozes mais enfáticas sobre o período de turbulência que tomou conta do velho continente nas décadas seguintes. Dono de uma eclética filmografia, o legendário diretor se acostumou a transitar por temas recorrentes, entre eles a solidão, a morte, o luto, a culpa, a desilusão, a religião, realçando os conflitos mais íntimos dos seus tipos em obras plurais, universais e ainda hoje atuais. Um dos precursores no movimento de renovação da linguagem cinematográfica que se espalhou pelo mundo a partir da década de 1960, Bergman, de mãos dadas com o crescente Neorealismo Italiano, ajudou a moldar correntes como a Nouvelle Vague, a Nova Hollywood e o Cinema Novo. E a influenciar nomes do porte de François Truffaut, Andrey Tarkovski, Stanley Kubrick, Woody Allen, Martin Scorsese entre outros. Ainda na década de 1940, com longas como Crise (1945), Música na Noite (1947) e Prisão (1949), ele mostrou o seu apreço por uma temática mais mundana, fazendo um precioso uso do subtexto em filmes modernos. Com personagens e dilemas reconhecíveis. Curiosamente, entretanto, o apreço de Bergman pelos projetos mais desafiadores parece ter o transformado num “gosto adquirido”. Títulos complexos como o fantástico O Sétimo Selo (1957), o instigante Persona (1966), o chato Gritos e Sussurros (1972) e o nervoso A Hora do Lobo (1968) ajudaram, de fato, a reforçar esta impressão, mas, numa análise mais profunda, até destas próprias obras, é possível perceber o quão acessíveis e contemporâneas são essas películas. Para celebrar o centenário de Ingmar Bergman, que, se fosse vivo, completaria 100 anos neste dia 14 de Julho, no Cinemaniac uma lista com cinco dos filmes mais universais deste influente realizador.
- Juventude (1951)
"Andamos em círculos, tão limitados por nossas próprias ansiedades, que não podemos mais distinguir entre o verdadeiro e o falso, entre o capricho do gângster e o mais puro ideal." Ingmar Bergman
Um mestre na arte da construção
de personagens femininas, Juventude sintetiza o apreço de Ingmar Bergman pelo
aspecto íntimo das suas histórias. Entusiasta da complexidade humana, o
realizador sueco enche a tela de sentimento ao refletir sobre as frustrações da
vida adulta, sobre os perigos da idealização e a tênue linha entre a
expectativa e a realidade. Dividido em dois arcos temporais distintos, o longa
estrelado pela radiante Maj-Britt Nilsson reflete sobre a árdua missão que é
amadurecer ao narrar as desventuras de uma errática bailarina obrigada a enfrentar
os fantasmas do passado durante uma inesperada tarde de folga. Com o seu
precioso texto, Bergman brilha ao explorar os contrastes em torno da vida da
protagonista, colocando o passado e o presente em perspectiva numa obra que tem
muito a dizer. Como de costume na sua filmografia, a solidão, o peso do luto e
as desilusões permeiam a trama com delicadeza, uma abordagem condizente com o
pueril ponto de vista da sua personagem. Num vaivém temporal brilhantemente
concebido, Bergman envolve ao desconstruir a multifacetada protagonista, ao
mostrar o antes e o depois de uma jovem adulta transformada por um
acontecimento inesperado.
Através deste tipo singular, o
diretor é criativo ao conferir uma dose de imaturidade ao texto, ao transitar
por temas inicialmente fúteis e joviais, preparando o terreno para uma virada com
a sua reflexiva assinatura. A partir de expressivos planos detalhes e
inventivos planos conjuntos (vide a imagem acima), Bergman esbanja sutileza ao traduzir tanto a
revigorante história de amor de uma jovem bailarina, quanto a sua dolorosa
tentativa de se reconectar com o seu antigo eu, presenteando o espectador com
um ‘mise en scene’ denso, sincero e esteticamente elegante. Um predicado,
indiscutivelmente, valorizado pela magnética performance de Maj-Britt Nilson. Enérgica
ao imprimir as memórias da sua personagem em tela, a belíssima atriz sueca
cativa seja como uma adolescente espevitada embebecida pelo primeiro amor, seja
como uma amargurada artista experiente, criando o tipo de protagonista que dá
gosto de se assistir. Uma mulher independente com dilemas mundanos que, na
ânsia de supera-los, esqueceu de enfrentá-los. Sem querer revelar muito, a
sequência em que ela é confrontada por um velho companheiro de set é magnífica,
uma aula de cinema que só um gênio da Sétima Arte poderia tirar do papel. Um relato
profundo e agridoce envolvendo um passado que não volta mais, Juventude provoca
um misto de sensações ao refletir sobre a algumas lacunas que nem o tempo é
capaz de curar.
- Morangos Silvestres (1957)
"Filmes são sonhos, filmes são música. Nenhuma arte passa a nossa consciência na forma como o filme passa, e vai diretamente para os nossos sentimentos, no fundo escuro salas de nossas almas." Ingmar Bergman
Se eu precisasse definir a obra
de Ingmar Bergman em um filme, por mais difícil que essa missão seja, esse
seria o triunfante Morangos Silvestres. Numa magistral aula de cinema, o
realizador sueco utiliza alguns dos mais complexos recursos cinematográficos para
narrar a singela e profunda história de redenção de um idoso em busca de afeto.
Impulsionado pela soberba performance de Victor Sjöström, Bergman transforma o
nobre doutor Isak Borg num dos personagens mais humanos e multifacetados da
sua laureada filmografia. Num revigorante ‘road-movie’, o diretor cativa ao
construir\desconstruir um protagonista cansado do seu ‘status-quo’. Um tipo
que, diante da crescente presença da morte, encontra o combustível necessário
para olhar para si próprio, para deixar a bolha fria e solitária que se tornou
uma espécie de refúgio. Um lugar seguro após uma série de escolhas cerebrais.
Sem um pingo de julgamento, Bergman nos brinda com um estudo de personagem
exemplar, se apropriando das possibilidades deste segmento ao permitir que
pouco a pouco conhecemos melhor este senhor rígido e aparentemente egoísta. Ao
colocar Isak na estrada, numa jornada em busca de uma honraria sem sentido,
Bergman expõe o seu protagonista. Primeiro sob a perspectiva da sua nora, a
independente Marianne (Ingrid Thulin, soberba). Através do olhar desta sincera
mulher percebemos o misto de repúdio e admiração causado por Isak. Com diálogos
preciosos, a troca de farpas entre os dois é de uma franqueza encantadora,
realçando a maturidade da dupla na relação com os seus conflitos afetivos.
Mais tarde surge o trio de jovens
encabeçados pela radiante Sara (Bibi Anderson, fenomenal). Sob o ponto de vista
dela vemos a face mais humana e dócil de Isak. Enxergamos que, por trás da
aparência distante, existia ali um homem sensível, comunicativo, aberto a troca
de experiências com uma nova geração. O grande trunfo de Morangos Silvestres,
entretanto, está na maneira complexa com que Ingmar Bergman aponta a sua mira
para a psique do veterano. Numa abordagem intimista, o recurso da narração
surge como um elemento revelador. Usado com maestria, o ‘voice-over’ escancara
o estado de espirito dele, se tornando um decisivo complemento narrativo
enquanto acompanhamos a gradativa transformação do protagonista. Nada, entretanto,
se compara com a genialidade de Bergman ao explorar as memórias e os sonhos de
Isak. Transitando entre o lirismo e o onirismo, o sueco faz um primoroso uso
dos símbolos ao tornar tudo muito vivo aos olhos do público. Enquanto as suas
lembranças são introduzidas num ensolarado viés naturalista, os seus devaneios
são estabelecidos num soturno viés surrealista, refletindo sobre os amores, as
falhas, as frustrações e os medos de Isak com uma criatividade digna dos
mestres. Uma obra agridoce, emocionante e genuinamente nostálgica, Morangos
Silvestres envolve ao propor um olhar humano sobre a velhice, sobre os traumas,
as desilusões e os tardios anseios de um homem corajoso que, apesar da sua
elevada idade, decidiu encarar os seus erros do passado com convicção e sem um
pingo de amargor. E isso, como de costume na carreira de Bergman, sem deixar de
tecer um brilhante comentário sobre temas como a morte, a religião, a solidão e
o matrimônio.
"Não quero produzir uma obra de arte que o público possa sentar e chupar esteticamente... Quero dar-lhe um golpe nas costas, para queimar sua indiferença, para assusta-los fora de sua complacência." Ingmar Bergman
Um retrato incisivo sobre as
sequelas da guerra, Vergonha é categórico ao traduzir o processo de degradação
física e emocional de dois inocentes isolados pelo conflito. Ao contrário de
alguns dos seus mais celebres filmes, Ingmar Bergman preza aqui pela
objetividade, pela realidade nua e crua, indo direto ao ponto ao narrar as
desventuras de um casal de músicos (Liv Ullman e Max Von Sidow, magníficos como
de costume) engolidos por uma guerra civil. Para isso, entretanto, o realizador
sueco mostra a sua usual delicadeza ao capturar a rotina dos dois pré-batalha.
Numa sacada genial, nos primeiros quinze minutos de película o realizador sueco
adota um ritmo particularmente lento, se concentrando na face mais pacata dos
protagonistas. Enquanto a descomplicada Eva se revela uma mulher forte e
independente, o sensível Jan se mostra um homem vulnerável e romântico. Sem
pressa, Bergman é cuidadoso ao reforçar tanto o elo entre os dois, quanto as
suas respectivas diferenças, flertando sutilmente com a ironia ao explorar esta
inversão de estereótipos. A cena da galinha, em especial, é inesperadamente
engraçada, um pequeno respiro narrativo para o que virá a seguir. A calmaria,
entretanto, logo cessa. E o que Bergman faz daí em diante é nos colocar no olho
do furacão, no meio do caos que cerca a nova rotina do casal. Numa abordagem
completamente apolítica, o realizador não está nem um pouco interessado em
entender os motivos do conflito. É nítido que, para ele, não existe
justificativas para um embate tão violento.
Sem um pingo de condescendência,
Bergman nos dá um verdadeiro “soco no estômago” ao traduzir a derrocada de Eva
e Jan. Ao mostrar o impacto da luta pela sobrevivência na identidade dos dois.
Fazendo um magnífico uso dos incômodos efeitos sonoros, o diretor, num primeiro
momento, se preocupa em expor a fragilidade física dos dois, tornando a
invasiva presença dos militares naturalmente desesperadoras aos olhos (e
ouvidos) do público. Um pouco mais a frente, no entanto, Bergman é astuto ao
mudar o foco, ao se concentrar na deterioração emocional dos personagens. Na (ilusória)
tentativa de manter o seu ‘status quo’ intacto, Eva e Jan são obrigados a se
submeter a situações mais ainda desoladoras, principalmente quando a dupla
entra na mira do ex-amigo\prefeito da região (Gunnar Björnstrand). Uma relação
volátil que culmina no dilacerante último ato, um desfecho impiedoso que, além
de capturar com espantosa frieza o processo de metamorfose do casal, tece um
realístico comentário sobre a traumática realidade dos sobreviventes. Contando
ainda com fantásticas sequências de ação, vide os nervosos ‘travelings’ em meio
ao fogo cruzado, Vergonha se revelou, infelizmente, uma obra visionária.
Lançada em 1968, no ano em que, no Brasil, se estabeleceu a ditadura militar,
Ingmar Bergman é sucinto ao refletir sobre a opressão, a falta de informação e
os perigos da manipulação em tempos de guerra, exaltando a face mais vil e
ignorante de um confronto deste porte ao tratar os inocentes como sobreviventes
à deriva em meio ao caos e a destruição.
- Sonata de Outono (1978)
"Nenhuma forma de arte vai além da consciência comum como o filme faz. Ele vai direto às nossas emoções." Ingmar Bergman
Enquanto entretenimento, Sonata
de Outono está longe do que eu procuro para assistir no meu tempo livre. É um
filme “claustrofóbico”, verborrágico e narrativamente distante daquilo costuma
me levar a uma determinada obra. O meu gosto pessoal, entretanto, é irrelevante
perante o nível de qualidade impresso em tela pelo legendário trio Ingmar
Bergman, Liv Ullman e Ingrid Bergman. Num drama familiar intimista e tematicamente
pesado, o realizador sueco valoriza como poucos a força do seu texto e das suas
protagonistas, se aproximando da linguagem teatral ao tentar interferir o
mínimo possível no ‘mise en scene’ proposto. Oriundo dos palcos, Bergman faz da
simplicidade estética um dos seus principais trunfos, evitando qualquer tipo de
distração ao narrar a “lavagem de roupa suja” entre uma mãe
distante\egocêntrica e a sua reprimida\altruísta filha. Com a franqueza que
consagrou algumas das suas principais obras, Bergman é sucinto ao traduzir as
rixas entre as duas, um clima de incompatibilidade que cresce gradativamente à
medida que a herdeira da talentosa pianista decide expor algumas verdades que
estavam “escondidas” nas suas memórias. O que se vê então é uma película
propositalmente cansativa, um filme capaz de refletir sobre as sequelas de uma
criação relapsa e da carência afetiva na rotina de duas mulheres separadas por
uma geração.
Reconhecido pela sua sensibilidade feminina, Bergman mostra propriedade ao discorrer sobre a maternidade, preenchendo a trama com diálogos poderosos e extremamente reveladores. Um predicado indiscutivelmente potencializado pelas arrebatadoras performances de Liv Ullman e Ingrid Bergman. Confiante no talento das suas comandadas, o sueco esbanja sensibilidade ao aproximar a sua câmera das duas, ao investir em planos longos e com poucos cortes, estendendo o seu tapete vermelho para que elas pudessem brilhar. E o resultado é primoroso. Na pele da dócil e amorosa Eva, Ullman se transforma em cena com intensidade, tornando o excruciante grito de liberdade da jovem naturalmente denso e compreensível. Do outro lado da relação, Ingrid (que não tem qualquer parentesco com o diretor) provoca um misto de revolta e compreensão ao encarnar esta complexa figura materna, uma artista dedicada à sua música que não soube conciliar a sua profissão com a maternidade. Com uma latente química em cena, Bergman e Ullman tornam a troca de farpas de mãe e filha absolutamente reconhecível aos olhos do público, se tornando a essência de um filme definitivo sobre o fardo do amor materno.
Reconhecido pela sua sensibilidade feminina, Bergman mostra propriedade ao discorrer sobre a maternidade, preenchendo a trama com diálogos poderosos e extremamente reveladores. Um predicado indiscutivelmente potencializado pelas arrebatadoras performances de Liv Ullman e Ingrid Bergman. Confiante no talento das suas comandadas, o sueco esbanja sensibilidade ao aproximar a sua câmera das duas, ao investir em planos longos e com poucos cortes, estendendo o seu tapete vermelho para que elas pudessem brilhar. E o resultado é primoroso. Na pele da dócil e amorosa Eva, Ullman se transforma em cena com intensidade, tornando o excruciante grito de liberdade da jovem naturalmente denso e compreensível. Do outro lado da relação, Ingrid (que não tem qualquer parentesco com o diretor) provoca um misto de revolta e compreensão ao encarnar esta complexa figura materna, uma artista dedicada à sua música que não soube conciliar a sua profissão com a maternidade. Com uma latente química em cena, Bergman e Ullman tornam a troca de farpas de mãe e filha absolutamente reconhecível aos olhos do público, se tornando a essência de um filme definitivo sobre o fardo do amor materno.
- Fanny e Alexander (1982)
"O mundo é um covil de ladrões e a noite cai. O mal se liberta das suas correntes e corre livre como um cão raivoso. O veneno afeta a todos. Ninguém escapa. Portanto, sejamos felizes, enquanto somos felizes. Sejamos gentis, carinhosos e bons. É necessário, sem termos vergonha, aproveitar as alegrias do nosso pequeno mundo: uma boa comida, um sorriso doce, a florescência de uma árvore, uma valsa." Ingmar Bergman
Por fim, a obra mais complexa
desta lista. Um relato íntimo e profundo sobre a infância de Ingmar Bergman,
Fanny e Alexander é um filme sobre a construção de uma identidade. Então pensada como a última obra da sua carreira, na realidade Bergman (felizmente) voltaria a
produzir longas anos mais tarde para o mercado televisivo, o
realizador sueco decidiu enfrentar os seus mais enraizados fantasmas, usando a
arte e o seu dom de contar histórias como um escudo contra a repressão e a face
mais retrógrada da religião. Num drama semibiográfico, o diretor resgata
lembranças da sua complicada infância, onde, ao lado da sua pequena irmã
Margaret, teve que crescer convivendo com a rigidez do seu pai, Erik, um
conservador pastor luterano. Sob a perspectiva lúdica da corajosa Fanny (vivida
pela expressiva Pernilla Allwin) e do
criativo Alexander (interpretado pelo intenso Bertil Guve), Bergman reflete
sobre alguns dos temais mais significativos na sua vida\filmografia, entre eles
o amor pelo teatro, a admiração pelos seres humanos falhos, a revolta contra as
hipocrisias religiosas e o fascínio pelo feminino. E isso dentro de um contexto
ora mágico e inocente, ora mundano e realístico.
Fazendo, mais uma vez, um brilhante uso dos contrastes visuais, já que as cores ajudam a compor os símbolos em torno dos personagens, Bergman começa exaltando a liberdade do meio artístico. Ao longo da imersiva primeira metade da película, o realizador é enfático ao traduzir a iluminada realidade dos irmãos pré-tragédia. Com encantamento, ele revela o sincero elo que unia os pais, os tios e os avós de Fanny e Alexander durante uma luxuosa festa de Natal, realçando o aspecto mais liberal desta família de artistas ao descortinar os segredos por trás dos trajes de gala e da aparente pose nobre. Sem esconder o seu encantamento, Bergman usa e abusa do naturalismo ao transitar por temas como a decadência, o medo da morte, a infidelidade na aristocracia e a nostalgia, preenchendo a trama com diálogos riquíssimos e um revigorante viés indulgente. O ambiente teatral, aqui, está diretamente associado ao sentimento de pura alegria, a libertação, como se o Bergman adulto tivesse remontando a sua própria infância da forma como ele gostaria que tudo tivesse acontecido. Quando a morte bate à porta da família de Fanny e Alexander, porém, o longa ganha uma nova atmosfera. À medida que a trama avança, o diretor parece se aproximar cada vez mais da sua própria realidade.
Após perder o seu bondoso marido,
a bela e solitária Emillie (Ewa Fröling, hipnotizante) decide se casar
novamente, desta vez com o respeitado bispo Edvard (Jan Malmsjö, assombroso). Não
demora muito, entretanto, para que a face mais retrógrada e possessiva do
religioso homem ganhasse forma, “ceifando” a liberdade dela e dos seus filhos enquanto
tentava impor a sua ressecada visão de mundo. Aos poucos, a idealizada versão
de infância pintada anteriormente por Ingmar Bergman se esvai, sendo “invadida”
por uma realidade dura, vazia e reconhecível. O cenário, antes quente,
acolhedor e luxuoso, se torna frio e minimalista. Os personagens ganham uma pálida
conotação fantasmagórica. A fotografia, antes quente e avermelhada, pende gradativamente
para o dualismo do preto e branco. Neste contexto, Bergman é categórico ao
expor o crescente sentimento de revolta de Alexander, que, por sua criatividade
e pelo seu dom de contar histórias, logo entra na mira do seu cruel padrasto.
Com frieza, o realizador mostra a sua indignação ao expor a verdade por trás deste
“homem de Deus”, ao desmascarar a sua distorcida lógica, se insurgindo contra o
estigma do Deus punitivo ao contestar a moral daqueles que punem e\ou julgam.
É aqui, aliás, que percebemos a perspicácia de Bergman ao discorrer sobre a formação da identidade. Embora repudie a figura do bispo, Alexander passa a conviver com os desmandos do padrasto, a criar os seus traumas, os seus medos. O seu inocente modo de enxergar a fé cristã é “contaminado” por uma visão repressora. Para mergulhar na psique do jovem, Bergman adota o surrealismo e a metalinguagem ao tratar a arte\imaginação como um refúgio. Ao diluir as linhas entre o real e o onírico, o realizador sueco provoca ao se colocar como uma espécie de “mestre das marionetes” da sua própria obra, interferindo no destino do seu protagonista enquanto mostra as sequelas de uma infância marcada por uma criação “rígida”. Sem querer revelar muito, o soturno\inquietante segmento na casa de Isak é magnifico. Uma mistura do lúdico com o horror que culmina no surgimento do enigmático Ismael (Stina Ekblad), uma espécie de alter-ego maduro do próprio Bergman, e na construção de uma das cenas mais complexas da filmografia do diretor. Em suma, embora se arraste mais do que o necessário no terço inicial, isso na versão de 3 horas, Fanny e Alexander surge como um relato pessoal sobre as memórias de Ingmar Bergman, refletindo, apesar do desfecho otimista, sobre as cicatrizes emocionais de um homem que aprendeu a usar a sua arte para expor os seus sentimentos e ideais mais reprimidos.
É aqui, aliás, que percebemos a perspicácia de Bergman ao discorrer sobre a formação da identidade. Embora repudie a figura do bispo, Alexander passa a conviver com os desmandos do padrasto, a criar os seus traumas, os seus medos. O seu inocente modo de enxergar a fé cristã é “contaminado” por uma visão repressora. Para mergulhar na psique do jovem, Bergman adota o surrealismo e a metalinguagem ao tratar a arte\imaginação como um refúgio. Ao diluir as linhas entre o real e o onírico, o realizador sueco provoca ao se colocar como uma espécie de “mestre das marionetes” da sua própria obra, interferindo no destino do seu protagonista enquanto mostra as sequelas de uma infância marcada por uma criação “rígida”. Sem querer revelar muito, o soturno\inquietante segmento na casa de Isak é magnifico. Uma mistura do lúdico com o horror que culmina no surgimento do enigmático Ismael (Stina Ekblad), uma espécie de alter-ego maduro do próprio Bergman, e na construção de uma das cenas mais complexas da filmografia do diretor. Em suma, embora se arraste mais do que o necessário no terço inicial, isso na versão de 3 horas, Fanny e Alexander surge como um relato pessoal sobre as memórias de Ingmar Bergman, refletindo, apesar do desfecho otimista, sobre as cicatrizes emocionais de um homem que aprendeu a usar a sua arte para expor os seus sentimentos e ideais mais reprimidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário