Uma história, várias
perspectivas...
Esta provavelmente será uma das críticas mais vagas postadas aqui no
Cinemaniac. Eu explico. Suspense da melhor qualidade, Um Contratempo é um
daqueles títulos que perdem todo o sentido diante dos spoilers. Por isso, neste
caso em especial, a análise será mais centrada na estrutura narrativa e no
aspecto visual do longa do que propriamente para a história em si. O filme
merece! Buscando referências em títulos do quilate de Testemunha de Acusação,
Amnésia e O Sexto Sentido, o talentoso diretor espanhol Oriol Paulo, do
excelente El Cuerpo, faz jus ao clima de mistério proposto pela trama ao nos
brindar com uma obra intrigante, envolvente e recheada de inteligentes
reviravoltas. Numa proposta realmente hipnotizante, o realizador não perde
tempo ao estabelecer o seu insinuante jogo de gato e rato, mantendo o clima de
tensão num patamar realmente elevado ao mostrar um enigmático crime sob múltiplas
perspectivas. Em suma, um thriller de judicial intenso e brilhantemente dirigido,
Um Contratempo é uma obra singular, um filme elegante que, impulsionado pela
refinada trilha sonora, surpreende ao nos colocar no centro de uma engenhosa
investigação.
Montado numa estrutura não linear realmente original, o roteiro assinado
pelo próprio Oriol Paulo foge do lugar ao sustentar o incessante clima de
suspense ao longo dos instigantes 100 minutos de projeção. Por mais que o longa
se passe basicamente num mesmo ambiente, a sala de um homem acusado de
assassinato (Mario Casas), o argumento se renova a cada descoberta, a cada
confissão do investigado para a pessoa responsável pela sua defesa no tribunal
(Ana Wagener), estabelecendo um inquietante quebra-cabeça envolvendo um
misterioso crime. Fazendo um harmonioso uso de recursos como o flashback e a
narração, um fato raro dentro do cinema atual, Paulo consegue realçar a
atmosfera de tensão tanto nas reveladoras cenas externas, quanto nos íntimos
momentos mais verborrágicos, costurando passado e presente numa trama que exige
a nossa atenção para a sua melhor compreensão. Na verdade, ainda que a
reviravolta final seja mais criativa do que complexa, o realizador espanhol se
preocupa em tornar a jornada o mais enigmática possível, em proteger os
segredos em torno dos personagens, permitindo que o espectador tenha uma
participação ativa durante o filme ao nos dar o benefício da dúvida quanto o
que está sendo apresentado. Ou seja, a graça não está somente nos 'plot
twists', mas na forma com que eles influenciam (ou não) o rumo da película. O
foco, aqui, está nos detalhes.
Embora a premissa em si se sustente numa conveniência narrativa, uma
ligeira forçada de barra que logo é absorvida diante do elogiável
desenvolvimento do roteiro, o grande trunfo de Um Contratempo fica pelo esmero
de Oriol Paulo na manipulação das perspectivas. A partir de diálogos ágeis e
situações naturalmente tensas, o diretor é perspicaz ao dar voz a todos os
personagens, ao esmiuçar o crime sob diversos pontos de vista, enchendo a tela
de ritmo ao mostrar que uma história sempre tem dois lados. E que nem sempre
eles são totalmente verdadeiros. Sem precisar apelar para as pistas falsas ou
para exageros, ele acerta ao realçar não só o aspecto mais efêmero de uma
investigação, como também os pontos frágeis dos discursos dos personagens,
reforçando o clima de mistério em torno deles e consequentemente do longa como
um todo. Sem querer revelar muito, Paulo é astuto ao concentrar a trama na
complexa interação entre o acusado e a sua defensora, uma relação recheada de
nuances judiciais\pessoais que cresce consistentemente até o extraordinário
clímax. Um arco intrigante potencializado pelas intensas performances da dupla
Mario Casas e Ana Wagener. Na pele de um homem persuasivo, mas inseguro em quem
confiar, o primeiro entrega um personagem sólido e inteligente, uma figura
multifacetada disposta a tudo para se livrar desta denúncia. Já a segunda nos
presenteia com um trabalho espetacular, uma advogada dividida entre a lógica e
a humanidade, entre o trabalho e a verdade.
E como se não bastasse o perfeito encaixe do roteiro, os tão recorrentes furos, aqui, são praticamente inexistentes, Um Contratempo é também um filme brilhantemente dirigido. Assim como no seu último grande trabalho, o já elogiado El Cuerpo, Oriol Paulo capricha na construção da atmosfera, um clima frio e elegante que casa perfeitamente com a proposta da trama. Impulsionado pela azulada fotografia minimalista de Xavi Giménez (O Operário), o realizador espanhol esbanja categoria ao capturar o aspecto mais luxuoso da história, ao explorar elementos como o jogo de poder e a sensação de impunidade que permeia a trama, um cenário 'clean' que parece pensado para enfatizar as atitudes dos personagens. Além disso, Paulo é particularmente cuidadoso ao traduzir a expressão dos seus comandados, o desconforto físico deles diante da situação, uma abordagem íntima potencializada pela suavidade clássica com que ele transita entre os planos médios e os fechados. Quando necessário, porém, o diretor capricha também nas sequências mais nervosas, "aquecendo" o longa ao reduzir cada vez mais o escopo da trama, ao se prender no tempo presente, na insinuante interação entre acusado e defensora. O resultado é um clímax milimetricamente orquestrado, um desfecho memorável e realmente audacioso. Contando ainda com a soberba atuação de José Coronado, excelente na pele de um pai em busca de respostas, Um Contratempo nos coloca no centro de uma envolvente investigação num suspense imersivo e recompensador. Embora não seja um filme livre de falhas, a sequência do acidente, por exemplo, destoa do restante do material apresentado, Oriol Paulo exibe o seu faro apurado para o gênero ao investir numa história que nunca soa previsível, nem tão pouco frouxa, um longa maduro que insiste em nos instigar.
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