sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Lady Bird: A Hora de Voar

As desilusões de uma jovem em constante metamorfose 

Íntimo, honesto e extremamente sensível, Lady Bird: A Hora de Voar cativa ao refletir sobre a imprevisibilidade da vida adulta através da sua impulsiva protagonista. Muito mais do que uma simples história de amadurecimento, o longa dirigido e roteirizado por Greta Gerwig (leia o nosso artigo sobre ela aqui) coloca os “pingos nos is” ao desmistificar algumas expectativas tipicamente juvenis, pintando um retrato humano e realístico sobre uma jovem despreparada diante de decisões tão importantes. Usando parte das suas próprias experiências na trama, a realizadora esbanja propriedade ao construir esta figura indomável e incoerente, uma personagem positivamente petulante que não parece entender as consequências dos seus atos. E isso com a ternura de uma mulher adulta que, calejada após enfrentar dilemas semelhantes, parece já ter a maioria das respostas\conselhos que o seu "eu" mais jovem - e consequentemente a sua Lady Bird - gostaria de ter ouvido durante este importante rito de passagem. 

Ambientado na virada do novo século, mais precisamente no ano de 2002, Lady Bird traz em sua essência um caráter semi-biográfico. Nascida na década de 1980, Greta Gerwig é astuta ao utilizar as suas experiências na fase "pré-adulta" como uma espécie de modelo, uma visão própria e universal sobre a garotada daquela época, sobre a inquietude, a ambição, o desprendimento e a precocidade que os cercava. Tal qual Richard Linklater fez em Jovens, Loucos e Rebeldes (1993) e Kelly Fremon Craig em Quase 18 (2016), Gerwig não tem a pretensão de definir\questionar os dilemas geracionais. Muito pelo contrário. Sob um prisma nada condescendente, a diretora flerta com o naturalismo ao, num primeiro momento, simplesmente traduzir os anseios juvenis sintetizados na sua personagem, ao replicar a sua imatura visão de vida, os seus erros, as suas inseguranças e as suas distorcidas expectativas. 


Embora o foco esteja na figura de Christine, ops!, Lady Bird, uma jovem com anseios cosmopolitas que não via a hora de deixar Sacramento, Gerwig desfila a sua maturidade enquanto roteirista ao ampliar o escopo da trama, ao se debruçar não só sobre a conflitante relação entre a jovem e a sua mãe, a sincera Marion (Laurie Metcalf), como também sobre a sua interação com os seus amigos, principalmente a descolada Julie (Beanie Feldstein), com o seu pai, o compreensivo Larry (Tracy Letts) e os seus possíveis pretendentes, entre eles o simpático Danny (Lucas Hedges) e o 'low profile' Kyle (Timothée Chalamet). Todos personagens comuns, com conflitos singulares que ajudam a incrementar o arco da protagonista, a expor o melhor (a cumplicidade, os lampejos de consciência e o senso de humor afiado) e o pior (a imaturidade, as birras e a chatice) desta jovem. 


Com diálogos realísticos, ágeis e recheados de franqueza, Greta Gerwig enche a tela de energia ao explorar os tropeços de Lady Bird na sua precoce ânsia pela independência. Apesar da sua pouca experiência na direção, ela conquista ao traduzir os altos e baixos da jornada da protagonista, discorrendo sobre temas universais de maneira descomplicada e essencialmente feminina. Fazendo um inteligente uso do contexto pós 11\09, que permeia a trama com discrição e originalidade, o argumento é sucinto ao estabelecer não só o temperamento irritadiço (e por vezes antipático) de Christine, como também as consequências dos seus impulsivos atos ao longo da película. Gerwig não parece interessada em isentar a sua protagonista dos seus erros. Apesar do viés delicado e otimista, o longa é perspicaz ao expor o quão tênue é a linha entre a expectativa e a realidade, ao revelar o impacto das desilusões na rotina de Lady Bird, realçando a sua indolência diante de figuras como a sua mãe, amigos e namorados. 


Ao contrário da maioria dos filmes do gênero, Greta Gerwig surpreende ao transitar habilmente entre o naturalismo dos filmes 'coming-of-age' e a linguagem pop das atuais 'dramédias'. No momento em que se concentra na honesta relação entre mãe e filha, a realizadora aposta em planos mais íntimos, em cenas sem grandes cortes, valorizando a força do texto e as extraordinárias performances de Saiorse Ronan e Laurie Metcalf. Sem nunca escolher lados, Gerwig torna as discussões entre elas completamente reconhecíveis aos olhos do público, se distanciando do sentimentalismo barato ao tratar com a mesma relevância (e uma inesperada dose de humor) tanto os bate-bocas mais tolos, quanto as rixas mais densas. Por outro lado, quando Christine decide andar (desastradamente) com as suas próprias pernas, a diretora investe numa edição mais presente, apostando em soluções narrativas criativas ao confiar acertadamente no poder de sugestão das suas sequências, na descolada montagem e na universalidade do seu precioso texto. 


Apesar dos diálogos irônicos, dos bem desenvolvidos conflitos e da envolvente condução de Greta Gerwig, entretanto, Lady Bird alcança um novo patamar na transição para o excelente último ato. No momento em que o longa parecia apontar para um desfecho mais seguro, a realizadora mostra autoralidade ao propor um sábio choque de realidade. É aqui que ela parece procurar um diálogo objetivo com o seu "eu" mais jovem, como se tivesse aberto uma capsula do tempo e ganhado a oportunidade de aconselhá-la. Hoje uma mulher formada, reconhecida pela sua obra e pelo seu talento, Gerwig esbanja delicadeza ao traduzir o desconforto da protagonista diante de uma nova realidade, refletindo sobre os erros da personagem e a sua própria trajetória ao revelar o quão dura pode ser transição para a vida adulta. Com ternura e intensidade, Gerwig praticamente pega a sua personagem pela mão, expondo a verdade por trás deste rito de passagem num clímax denso, feminino e naturalmente comovente. Um desfecho que diz muito sobre a própria diretora, já que, tal qual Lady Bird, ela conseguiu alcançar os seus objetivos, mas a sua jornada foi bem mais complexa do que a sua mente juvenil poderia idealizar. E muito pela sua própria personalidade, constante em tela ao longo dos ritmados 95 minutos de tela. Vide a maneira curiosa com que ela explora a questão da religião dentro da história. 


Em alguns momentos, porém, a falta de experiência de Greta Gerwig na direção é mais sentida, principalmente quando o assunto é o desenrolar dos personagens de apoio. Um das figuras mais divertidas da trama, a jovem vivida pela carismática Beanie Feldstein perde espaço durante a segunda metade da trama, uma solução previsível que ao menos é bem resolvida dentro do excelente último ato. O mesmo, aliás, acontece com o interesse romântico interpretado pelo talentoso Lukas Hedges e com o simpático padre vivido por Stephen Henderson, duas figuras cativantes que têm os seus arcos dramáticos subaproveitados ao longo da trama. Além disso, Gerwig pesa a mão em poucos momentos no que diz respeito ao uso da intrusiva trilha sonora, reduzindo o peso de algumas cenas ao "subir o som" em situações que a emoção já estava impressa nas feições das suas comandadas. 


Num filme sobre grandes mulheres, entretanto, Saoirse Ronan e Laurie Metcalf compensam qualquer deslize narrativo ao presentear o público com duas performances poderosas. Uma das atrizes mais expressivas da sua geração, a primeira fascina ao criar um tipo complicado, uma jovem imatura que fala da boca para fora, entra em discussões por qualquer besteira e se vê obrigada a aprender com os seus próprios erros. Estamos diante de uma garota comum, daquelas que erra sem perceber, e isso fica cristalino do primeiro ao último minuto de película. Curiosamente, porém, apesar da personagem de Saoirse Ronan estampar o pôster e dá nome ao título do longa, é difícil dissociar a sua presença da excepcional Laurie Metcalf. Num daqueles trabalhos surpreendentes, a atriz de pequenos papéis na TV e no Cinema rouba a cena ao criar uma figura materna singular, uma mulher forte e independente que, consciente da sua jornada, não titubeia em bater de frente com a sua espevitada filha. Esbanjando sensibilidade feminina, Gerwig encanta ao concentrar o seu filme nesta realística relação, tirando o máximo das duas atrizes ao diluir gradativamente as barreiras que separavam as suas protagonistas. Na verdade, muito mais do que um simples 'feel good movie' familiar, Lady Bird envolve ao não se contentar em ser mais um filme sobre o relacionamento entre uma mãe e a sua complicada filha. Ao aproximá-las, a diretora defende que a experiência de vida pode não ter um peso tão grande em questões sentimentais, revelando que, para uma figura materna, tão difícil quanto ver o seu filho(a) voar com as suas próprias asas é ter a convicção de que ele(a) está preparado(a) para repetir o seu caminho. Ou talvez alçar voos mais altos do que os seus.

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