terça-feira, 2 de abril de 2019

Do Fundo do Baú (Agnès Varda)


O mundo do cinema perdeu na última semana uma das suas vozes femininas mais influentes. Uma das grandes expoentes da Nouvelle Vague, Agnès Varda partiu deixando um legado de pequenas grandes obras numa época em que pouquíssimas mulheres tinham voz atrás das câmeras. Consciente disso, a realizadora francesa nunca se privou em valorizar a representatividade dentro do cinema. Seus filmes espelhavam a realidade das mulheres da sua geração e também das seguintes. Peça chave de um movimento que, ao lado do Neorrealismo Italiano, mudou a forma de se fazer cinema ao redor do mundo, Varda levantava a bandeira do feminino, independentemente de posição social, levando para a tela grande a rotina de mulheres comuns que durante muito tempo foram simplesmente esquecidas. Numa postagem de despedida via Instagram, Martin Scorsese, um dos muitos mestres influenciados pelo trabalho de Varda, sintetizou como ninguém o cinema desta grande realizadora. “Eu duvido que Agnès Varda tenha seguido os passos de qualquer outra pessoa, em qualquer canto de sua vida ou arte. Ela mapeou e trilhou seu próprio caminho em cada passo da sua jornada, ela e sua câmera. Cada uma de suas notáveis ​​obras eram feitas à mão, tão bem equilibradas entre documentário e ficção. Que trabalho ela deixou para trás: filmes grandes e pequenos, divertidos e duros, generosos e solitários, líricos e inflexíveis ... e vivos. E para todos os jovens cineastas: você precisa assistir as películas de Agnès Varda”. Um recado que, naturalmente, deve se estender para os fãs da Sétima Arte. Até porque, infelizmente, muitos dos seus filmes nunca encontram a atenção do grande público, ficando, em muitos casos, reduzido aos nichos, ao pedantismo dos circuitos artísticos. Aproveitando que a Rede Telecine decidiu adicionar alguns dos mais elogiados trabalhos de Agnès Varda, neste Do Fundo do Baú uma análise sobre os clássicos Cléo das 5 às 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965) e Os Renegados (1985). Uma trinca de obras que sintetiza bem a arte de Varda e a sua capacidade de repercutir a nossa realidade seja num drama reflexivo e existencial, seja num romance lírico e tragicômico, seja num retrato social nu e cru. 

- Cléo da 5 às 7 (1962)



Uma experiência cinematográfica ímpar, em Cléo das 5 às 7 Agnès Varda se posicionou entre os gigantes da Nouvelle Vague com um profundo estudo de personagem. A partir da jornada de uma mimada cantora à espera do resultado de um exame médico que poderia vir a mudar a sua rotina, a realizadora se debruça sobre a intimidade de uma mulher superprotegida obrigada a deixar a confortável bolha que a acomodava. Num ‘road-movie’ urbano e naturalista, Varda brinca com os dualismos que cercam a sua protagonista ao acompanhar o esforço dela em “matar o tempo” sem se render aos perigos da melancolia. Numa análise mais simbólica, óbvio, a dicotomia que guia a trama fica pela tênue linha entre a vida e a morte. Entre a luz e as trevas. A fotografia em preto e branco, nas mãos de Varda, já deixa claro os contrastes que cercam a então radiante protagonista. Os figurinos, os cenários, a iluminação, tudo é milimetricamente pensado para a reforçar o estado de espírito da Cléo. O que fica bem claro, em especial, na magnífica sequência do quarto. Ali, numa verdadeira aula de cinema, a diretora sintetiza como poucos o turbilhão que repentinamente tomou conta da vida desta estrela da música. Ela tinha tudo. O luxo era evidente. O ambiente branco impávido contrastava com o preto dos móveis um tanto quanto góticos. O tempo, na figura dos muitos relógios, urge nas prateleiras nos lembrando do que se avizinha. Um cenário quase onírico que diz muito sobre a personalidade dela, sobre os seus maneirismos, as suas manias. Nada daquilo, porém, era o bastante para lhe dar o afago esperado num momento de tamanha angústia.



O que mais me impressionou em Cléo de 5 às 7, porém, é a genialidade de Agnès Varda em traduzir o processo de “reconstrução” da sua protagonista diante da iminência de uma dolorosa notícia. Logo na fantástica sequência de abertura, rodada quase toda na mesa de uma cartomante, a realizadora francesa escancara aos olhos do público o que estar por vir. Uma jornada densa e ao mesmo tempo natural que cresce à medida que Cléo se vê disposta a encarar o choque de realidade com as suas próprias pernas, a criar novos elos, a escutar mais do que se fazer ouvir. Sem desculpas, superstições ou vaidade de qualquer forma. A partir de um magnífico número musical, que conta com a participação do também saudoso Michel Legrand, Varda gradativamente passa a romper com a Cléo fútil, dramática, imatura. Com um movimento de câmera sublime, ela estabelece de vez a impactante mudança de tom da sua obra. Diante da relutância da personagem título em aceitar a sua “mortalidade”, em se enxergar como mais uma, a realizadora consegue encontrar as brechas para pintar em tela os inúmeros outros dualismos presentes no argumento. Impulsionado pela radiante performance de Corinne Marchand, que, com a sua beleza quase angelical, caminha atraindo olhas instantâneos na multidão, Varda amplia o escopo da película ao se tornar uma observadora da sociedade francesa da década de 1960.


Através das idas e vindas de Cléo, o longa não titubeia em realçar os contrastes entre o belo e o feito, o clássico e o urbano, o otimista e o pessimista, o puro e o mundano, a independência e a submissão. As ruas de Paris se transformam num verdadeiro personagem. Sob o olhar perdido de Cléo, vemos o mundo que nos cerca, a realidade que, durante muito tempo da sua vida, ela não foi obrigada a encarar. Um cenário um tanto quanto caótico capturado com uma singular beleza naturalista pelas lentes de Varda. Como não citar, por exemplo, as engenhosas sequências dentro dos veículos, o que, para época em questão, se revelaram de uma ousadia inimaginável. Um retrato complexo e nada condescendente sobre uma paparicada jovem empurrada a encarar talvez pela primeira vez a sua finitude, Cléo de 5 às 7 usa um daqueles momentos transformadores na vida de qualquer um para refletir sobre a nossa fragilidade, arrogância e as peças que só o destino é capaz de pregar. Um filme atemporal, influente e genuinamente charmoso.




- As Duas Faces da Felicidade (1965)


Se em Cléo de 5 às 7 Agnès Varda optou por analisar a personalidade da sua protagonista sob uma perspectiva claramente dualística, em As Duas Faces da Felicidade ela dilui as tintas como ninguém ao revelar o “florescer” da infidelidade sob uma perspectiva iluminada, compreensiva e visualmente magnífica. Influenciada pela mistura de cores e formas do movimento impressionista, a realizadora francesa se volta para uma França pacata e rural ao expor o impacto da traição na rotina de uma família feliz. Com uma visão muito peculiar sobre o tema, Varda não parece interessada em encontrar culpados, vítimas ou motivos. Tudo é muito ensolarado, sincero e radiante. Ela decide tratar o delicado tema dentro de um contexto inesperadamente naturalista, permitindo que o público compreenda a reação dos personagens, a verdade deles. Num primeiro momento, como numa pintura de Monet ou Cezane, Varda nos conduz para uma realidade quase paradisíaca ao acompanhar a rotina do casal François (Jean-Claude Drouot), Therése (Sandrine Drouot) e os seus cativantes dois filhos. Num cenário típico do interior, Varda se encanta pela funcionalidade desta relação, pela conexão entre marido e mulher, pelo zelo deles para com a sua família. Numa sacada genial, a diretora dá uma verdadeira aula de cinema no que diz respeito ao uso da palheta de cores, atrelando a identidade dos seus personagens a um determinado tom\pigmento. Ao longo do terço inicial, um azul vivo e luminoso se sobressaí, os destacando no ambiente bucólico que eles estavam inseridos.


Aos poucos, porém, a mistura de cores começa a ficar mais evidente. No momento em que François conhece a também radiante Émilie (Marie-France Boyer), o vermelho começa a se fazer mais presente. Existe uma mudança nos cenários. O ambiente rural, pouco a pouco, é invadido por um cenário mais urbano. É legal perceber como o apartamento em que os amantes se encontram, por exemplo, é em sua maioria branco, como se ali ainda tivesse uma história a ser preenchida. Enquanto a casa dos Chevalier é aconchegante e habitável, o novo lar de Émilie é frio e impessoal. As cores, definitivamente, têm muito a dizer sobre os personagens, o estado de espírito deles e as mudanças que estão por vir. É aqui, aliás, que Agnès Varda exibe também a genialidade do seu texto. Sem nunca julgar os atos dos seus personagens, a diretora é perspicaz ao usar esposa e amante para refletir sobre as transformações sociais\culturais envolvendo a mulher dentro da sociedade francesa da época. Embora François seja o interlocutor da história, o objeto de estudo do longa são Therése e Émilie. Enquanto a primeira traz consigo características mais tradicionais, ela é zelosa, exemplar e um tanto quanto passiva as vontades do marido, a segunda revela um comportamento bem mais moderno, ela é independente, liberal, mora sozinha e não se incomoda em dividir o amor com uma “estranha”.


A partir deste choque de identidades, Agnès Varda valoriza a feminilidade ao dar voz a estas duas mulheres, ao entender os seus respectivos atos, compreendê-las, rompendo com o maniqueísmo de forma tipicamente francesa. Sem querer revelar muito, a diretora impressiona ao trazer a nudez para o centro da trama, ao realçar sempre a beleza e o potencial de sedução delas dentro de um contexto vanguardista, permitindo que o público enxergasse a espinhosa situação em que François se colocou. Independentemente da sua escolha, ele passou a ter muito a perder. Nas entrelinhas, inclusive, Varda destila também uma dose de veneno ao reforçar a ambiguidade do texto. Insinuando muito e mostrando pouco, ela é sagaz ao brincar com o viés idealizado da sua obra, dando ao público a missão de preencher algumas brechas em torno do destino dos personagens. Cabe a nós julgar o misto de beleza e perversidade que paira em torno deste triângulo amoroso. Algo que fica bem claro, em especial, dentro do desconcertante clímax. Fiel ao anticlassicismo da Nouvelle Vague, Varda quebra as nossas expectativas ao defender que toda escolha traz consigo uma determinada consequência, usando novamente o destino como o estopim para uma improvável passagem de bastão. No fim, não existe nem certo, nem errado em As Duas Faces da Felicidade. Existe amor, afeto, beleza, liberdade, desejo e compreensão, mas também perda, distanciamento, tristeza, submissão, vazio e culpa. É na imperfeição que está o coração do cinema de Agnès Varda.


- Os Renegados (1985)


Em Os Renegados vemos o cinema mais cru e contundente de Agnès Varda. Aqui não existe espaço para o subjetivo. Estamos diante da realidade nua e impiedosa. Sem floreios, sem dispersões, sem atenuações. Uma jovem mulher é encontra morte à beira da estrada. Sozinha, sem identidade, sem ninguém para reclamar a sua ausência. A partir desta trágica situação, estabelecida com franqueza logo na primeira cena, Varda desconcerta ao dar voz a uma marginalizada, ao escancarar a rotina dos esquecidos, dos subjugados, dos abandonados. Sob a perspectiva da bela Mona (Sandrine Bonnaire), uma andarilha que mesmo suja e “largada” atraia a atenção de todos que a cercavam, a realizadora francesa toca em dolorosas feridas sociais ao não se ater ao drama da sua protagonista. Os Renegados é o tipo de obra multitemática, uma verdadeira crônica sobre a indiferença e a insensibilidade característica dos grandes centros urbanos. Sob uma perspectiva íntima, Varda é cuidadosa ao tentar entender aos poucos os motivos que levaram Mona a optar por uma vida tão perigosa e desprotegida. Sem a intenção de julgá-la, nem tão pouco vitimizá-la, a diretora mostra sutileza ao invadir a psique da sua protagonista, ao desvendá-la perante o público à medida que ela se aproxima do seu fatídico destino. Como de costume em alguns filmes da sua obra, Varda é direta ao revelar a rotina de abusos enfrentadas (ainda hoje) por muitas mulheres ao redor do mundo. Nas entrelinhas, a realizadora sugere que a busca dela por liberdade nasceu da imposição masculina, da submissão, de um passado não muito distante em que ela se viu\sentiu presa aos interesses dos seus patrões.


Ora optando por reconstruir os passos de Mona, ora por ouvir as impressões daqueles que cruzaram o seu caminho, Agnès Varda é igualmente habilidosa ao estabelecer os conflitos dela. Ao, a partir das suas divagações um tanto quanto erráticas sobre liberdade, futuro e afeto, refletir sobre a realidade de muitas mulheres que não encontraram forças para romper com a realidade que as cercam. Como disse mais acima, por onde Mona passa ela causa sensações. Muitas positivas. As pessoas, em especial as mulheres, enxergam nela uma coragem adormecida em si próprias. Um misto de admiração e pena. Até em cima disto, aliás, é interessante ver a sagacidade da diretora em mudar levemente o objeto do seu estudo. Sob a drástica perspectiva da protagonista, os problemas dos demais tipos femininos soam mais evidente. Seja a submissão de uma carente empregada, seja o vazio de uma independente professora, seja a solidão de uma simpática senhora. Todas, em algum momento, experimentaram os conflitos de Mona e vivem diariamente as sequelas de uma sociedade patriarcal. Na verdade, a impressão que fica é que a protagonista foge justamente disto, da naturalização do isolamento feminino. Com isso, porém, não quero dizer que Varda atesta as decisões de Mona, valida tamanho distanciamento. Ao longo de toda a obra, a realizadora, apesar do claro viés compreensivo, não se furta de explorar a incoerência escondida no seu liberal estilo de vida. Mona fala sobre independência, mas é dependente de vícios mundanos. Mona fala em falta de oportunidades, mas recusa algumas pequenas chances que surgem pelo caminho. Mona é, em sua essência mais pura, um ser humano. Uma pessoa falha, carente, ingênua. Alguém em busca de dignidade, carinho, respeito. Algo que, infelizmente, aqueles que a cercam não parecem ser capazes de oferecer.


No momento em que decide expor a ferocidade do meio em que ela habita, entretanto, Agnès Varda é bem menos compreensiva. Sem a intenção de contemporizar, ela é dura ao estabelecer a ininterrupta sensação de perigo iminente. Tudo, sob a exposta perspectiva de Mona, soa ameaçador. Um predador olhar masculino, um indiferente olhar feminino, a condição climática, um pedido de ajuda. Varda nos faz entender a mútua sensação de desconfiança que cercam as suas relações. Embora rompa por completo com o maniqueísmo, existem pessoas muito boas no caminho da jovem, a realizadora francesa consegue expor com rara crueza a delicada posição de uma mulher diante da miséria e do abandono. E isso sem apelar para sequências gráficas. A insinuação, aqui, é incômoda, sufocante. O mesmo, aliás, podemos dizer do processo de deterioração física\emocional da personagem ao longo da sua jornada. Fazendo um brilhante uso do cenário e dos discretos movimentos de câmera laterais, as portas parecem literalmente sempre se fechar para Mona. Nas entrelinhas, inclusive, o longa urge ao questionar a desigualdade social, o desequilíbrio habitacional. O teor documental salta aos olhos, por exemplo, quando a diretora decide filmar mansões vazias sendo deterioradas pelo tempo, ou então terras esquecidas transformadas em uma espécie de cemitério de máquinas agrícolas. Um cenário sujo, sucateado e esquecido que ajuda a explicar o trágico destino de Mona. Uma jovem mulher que, em busca de liberdade, esqueceu que a realidade dos oprimidos pode ser muito mais cruel e inclemente quando não se tem um teto para se abrigar. Em suma, Os Renegados é um retrato social indispensável, desesperançoso, um filme que deveria ser lembrado, exibido para os mais jovens, para aqueles que representam o futuro, como uma espécie de antidoto contra a insensibilidade humana que tomou conta do nosso habitat.

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