sexta-feira, 26 de junho de 2020

Cinco Filmes | Paul Thomas Anderson

É fácil entender porque Paul Thomas Anderson se tornou referência de qualidade no cinema americano. Não estamos diante somente de um cineasta autoral, mas de um artista autoral. Alguém que sempre se manteve fiel às suas convicções. O que dialoga com a sua trajetória enquanto realizador. PTA nunca escolheu o caminho mais fácil. O diretor refinado que completa 50 anos hoje começou a sua carreira como assistente de produção na televisão, em alguns filmes, em clipes musicais e até mesmo em game shows. Apaixonado pela Sétima Arte, ele sempre soube o que queria. 


PTA ao lado John C. Reilly e Philip Baker Hall no set de Jogada de Risco

Enquanto trabalhava na emissora PBS, PTA conheceu o experiente Phillip Baker Hall em uma sessão de filmagens. Durante um dos intervalos, o jovem, num movimento ousado, entregou um roteiro para o ator com a promessa que teria um grande personagem para ele. Hall ficou entusiasmado com o projeto e topo a ideia. Aos 23 anos, com muitas ideias na cabeça, mas pouco investimento, Anderson usou o dinheiro conseguido em apostas, o cartão de crédito da namorada e a poupança feita pelos pais para a Universidade para filmar o curta Cigarretes and Coffee (1993). No seu primeiro projeto, ele despejou US$ 20 mil do seu próprio bolso para rodar a produção. Obviamente inexperiente, Paul Thomas Anderson teve problemas para coordenar as filmagens. Com equipamentos emprestados, uma equipe enxuta e atores convidados (Miguel Ferrer também topou a empreitada), o diretor sentiu a pressão. Os bastidores, segundo costa, foram bem caóticos. Todos os envolvidos, no entanto, admitiram uma coisa: PTA sabia o que queria dos seus personagens. Com nítidas limitações técnicas, o curta está disponível no Youtube em qualidade VHS, Cigarretes and Coffee causou o impacto que Anderson esperava. Aceito no Programa de Curtas do Festival de Sundance, a produção foi extremamente elogiada e abriu as portas para que ele produzisse o seu primeiro longa.

- Jogada de Risco (1993)

Foi assim que nasceu o fascinante Jogada de Risco (1993). Outro projeto realizado na base do esforço. Embora com mais recursos à sua disposição, Paul Thomas Anderson apresentou a primeira versão da película na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes em 1996. Incomodado com a interferência dos executivos da produtora Rysher Entertainment no material final, o diretor, num movimento mais uma vez corajoso para alguém iniciante, não aceitou lançar o longa enquanto não entregasse a sua versão. Para isso, ele precisaria de mais US$ 200 mil. Graças ao apoio do elenco, entre eles Philip Baker Hall, Gwyneth Paltrow. Samuel L. Jackson e John C. Reilly, Anderson alcançou o seu objetivo. O que mais impressiona em Jogada de Risco é a maturidade do realizador. Do alto dos seus 23 anos, PTA não só compreende a natureza dos seus personagens como poucos, como também sustenta o instigante plot nos segredos deles. Estamos diante de um profundo estudo de personagem. O jovem cineasta usa um ambiente frequentemente associado à deterioração, o cassino, como o cenário ideal para a construção de uma história de redenção. A partir da perspectiva do misterioso Sidney (Hall, soberbo), o diretor usa um improvável gesto de afeto como o agente catalisador de uma crônica sobre a solidão, a culpa, a melancolia e a decadência num ambiente implacável. O roteiro, assinado pelo próprio Anderson, se alimenta habilmente do clima de mistério enquanto elucida as motivações dos personagens. Tudo é muito contido. Tudo é muito real. Tudo é muito envolvente. Aliando pulso narrativo à elegância, um predicado recorrente na filmografia de PTA, Jogada de Risco é um filme sobre o fardo da experiência conduzido com maestria por um jovem cineasta estreante. Poucos, bem poucos, começariam a carreira desta forma.

PTA conversa com Phillip Seymour Hoffman e Tom Cruise nos bastidores de Magnólia

Mais do que abrir portas para produções maiores, o triunfo de Jogada de Risco ensinou uma importante lição para Paul Thomas Anderson. Se quisesse ter o controle sobre as suas obras ele teria de produzir os seus próprios filmes. Algo que hoje parece natural diante do seu status. No começo da sua carreira, no entanto, essa foi uma solução mais uma vez ousada. Durante a problemática pós-produção de Jogada de Risco, PTA escreveu o roteiro do seu próximo filme, o drama Boogie Nights (1997). Uma crônica sobre os efeitos do sucesso a partir da perspectiva de um lavador de pratos que se torna um astro da indústria pornô nos anos 1970. Mais do que catapultar as carreiras de Mark Wahlberg e Juliane Moore (e redescobrir o veterano Burt Reynolds), o longa se tornou um inesperado sucesso comercial ao render US$ 26 milhões somente nos EUA. O que representou, além da sua primeira indicação ao Oscar, a tão cobiçada “carta branca” que o realizador esperava. Com o suporte da New Line Cinema, PTA decidiu fazer uma obra mais intimista, um estudo profundo sobre as relações humanas nos grandes centros urbanos. Assim chegamos ao segundo filme da lista.

- Magnólia (1999)

Em Magnólia, Paul Thomas Anderson pinta uma crônica inesgotável sobre a vida e as nossas escolhas dentro de uma sociedade corrosiva. Impressiona como a primeira grande obra-prima do cineasta segue viva. E atual. Usando o vaidoso mundo do showbiz como a “teia” que une os seus personagens, o cineasta reflete sobre como os erros do passado podem interferir no presente num filme sobre o peso da culpa, a dor do arrependimento e principalmente a angustiante busca por perdão. Com uma direção enérgica, uma montagem vigorosa e uma edição cirúrgica, PTA extrai o máximo do seu primoroso elenco (formado por Tom Cruise, Juliane Moore e os parceiros de velha data Phillip Baker Hall, Phillip Seymour Hoffman e John C. Reilly) na construção de uma crônica urbana que tem muito a dizer sobre os nossos vícios, falhas e pecados mais íntimos. Numa época em que temas como o machismo eram bem pouco debatidos em Hollywood, o realizador, por exemplo, coloca o dedo na ferida ao tratar a masculinidade frágil como a raiz de um círculo vicioso implacável capaz de corromper, agredir e destruir. Vemos os erros do passado se repetindo no presente. Vemos o estrago causado por eles. Vemos a solidão. Vemos a deterioração. Vemos o vício. Vemos os inocentes que tentam sobreviver a isso. Erroneamente reduzido por muitos a conhecida (e debatida) sequência da chuva de sapos, Magnólia é o filme definitivo sobre a sociedade que chegaria ao século XXI. Um retrato ora otimista, ora inclemente sobre o indivíduo urbano, os seus conflitos, os seus medos e a nossa incapacidade de reconhecer aquilo que parece bem evidente. Indicado a três Oscars, o longa foi tratado como um divisor de águas pelo próprio diretor. “O que realmente sinto é que Magnólia é, para o bem ou para o mal, o melhor filme que já fiz”, admitiu com convicção do impacto cultural da sua obra.

Paul Thomas Anderson comanda Daniel Day-Lewis no set de Sangue Negro

No ano seguinte veio talvez o projeto mais improvável da carreira do agora já cultuado Paul Thomas Anderson. Quando todo mundo esperava uma obra ainda mais densa, o cineasta surpreendeu a todos ao tirar do papel a comédia-romântica Embriagados de Amor (2000). Ele colocou na cabeça que precisava trabalhar com o então astro da comédia Adam Sandler e que o filme não poderia ter mais de 90 minutos. Dito e feito. PTA tirou do papel um romance excêntrico e agridoce sobre um homem frustrado à procura de algo verdadeiro. Recebido com entusiasmo pela crítica, Embriagados de Amor rendeu a melhor atuação da carreira de Adam Sandler até então, o que transformou o cineasta numa espécie de midas de Hollywood. Um dos trunfos da carreira de Anderson, na verdade, está na sua capacidade de escolher o ator certo para o papel certo. Nomes como os de Phillip Baker Hall, John C. Reilly, Philip Seymour Hoffman se tornaram parceiros recorrente nas suas carreiras. Outros, porém, foram atraídos pelo seu talento. Assim como Tom Cruise, o exigente Daniel Day-Lewis não precisou de muito para ser convencido. E assim chegamos ao terceiro filme da lista.

- Sangue Negro (2007)

Segundo consta, Paul Thomas Anderson escreveu Sangue Negro pensando em ter Daniel Day-Lewis no papel do protagonista, o indomável, ambicioso e obsessivo Daniel Plainview. Ao ouvir que o recluso ator irlandês tinha gostado de Embriagados de Amor, o cineasta, tal qual no início da sua carreira, decidiu mandar o roteiro inacabado para tentar convencê-lo a entrar na empreitada. Em entrevista na época do lançamento, Lewis confessou que somente o convite já foi o bastante para ele topar estrelar o longa. O que foi um acerto inquestionável. Ao contrário do compreensivo Magnólia, Sangue Negro propõe uma crônica explosiva sobre até onde o ser humano pode ir guiado pela ambição. Aos olhos de PTA, Daniel reflete a face mais nociva (e insana) do capitalismo. Estamos diante de um personagem complexo e tridimensional, capaz de afagar e dilacerar sem sequer medir a consequência dos seus atos. Impressiona como a partir de uma história tipicamente americana, PTA universaliza as coisas ao discutir os dilemas da paternidade, ao traduzir o corrosivo efeito da obsessão, ao refletir sobre a deterioração emocional de um homem cego pelo sonho da riqueza. O sangue negro do título se refere, claro, ao petróleo, mas também ao veneno que consome as veias do protagonista. Sem querer revelar muito, o realizador é genial ao falar sobre os perigos da alienação, usando o dúbio pastor vivido por um assombroso Paul Dano como o ponto de partida para a construção de uma agressiva crítica religiosa. E como se não bastasse os inúmeros predicados narrativos, Sangue Negro é um espetáculo visual imensurável. A fotografia em tons de madeira de Robert Elswit enverniza a trama afim de tornar este espetáculo sujo o mais vistoso possível. A preciosa direção de arte potencializa o inestimável sentimento de imersão. PTA esbanja elegância ao acompanhar a deterioração física\emocional do seu protagonista. A cereja do bolo, claro, fica pela magistral performance de Daniel Day-Lewis. O tipo de atuação transcendental. Como se ele absorvesse cada pingo da culpa, da gana, do medo, da raiva, da vulnerabilidade e da verdade do seu personagem. O maior (e melhor) filme da carreira de Paul Thomas Anderson, Sangue Negro é o tipo de triunfo do cinema moderno que nos enche de orgulho. Uma odisseia humana em tons de parábola religiosa que, ao contrário dos seus protagonistas, é recheada de virtudes.

-  O Mestre (2012)

Consagrado enquanto cineasta, Paul Thomas Anderson é daquele que se afasta sempre que precisa. Seus filmes amadurecem com o tempo antes de ganharem o papel e depois a tela grande. O que fica bem claro quando nos deparamos com o quarto filme da lista. Após um hiato de quase cinco anos, PTA resolveu lançar O Mestre. Um drama sobre os bastidores de um culto religioso que, segundo consta, demorou mais de uma década para ser pensado pelo cineasta. O que se justifica em cada um dos 130 minutos de duração. Estamos diante do filme mais pretensioso de Anderson. Daqueles de difícil digestão em alguns momentos. Como de costume nas suas obras, o diretor foca menos no óbvio (os segredos em torno deste tipo de culto) e mais no complexo. A partir da relação entre um alcoólatra quebrado pela guerra (Joaquin Phoenix) e um líder ecumênico nada ortodoxo (Phillip Seymour Hoffman), PTA impacta sempre que coloca frente a frente duas forças totalmente contrastantes. O inalienável contra o alienador. O diretor foge do lugar comum ao expor mais do que responder. Ao, através da conflituosa relação entre os dois, falar sobre vícios, sobre liberdade, sobre fragilidade emocional. Um estudo, confesso, por vezes cansativo. Embora visualmente espetacular, O Mestre talvez seja o filme mais difícil (eu diria errático) de PTA no que diz respeito ao ritmo. Ele, no entanto, compensa ao tratar o indivíduo humano como um ser dependente dos seus “mestres”. O filme é mordaz ao não só ressignificar este conceito, como também ao traçar paralelos entre os protagonistas. Enquanto um busca o norte nas suas esquizofrênicas ideias, o outro encontra na bebida e no sexo a sua válvula de escape. Uma relação explosiva, de fato, impulsionada pelas avassaladoras performance de Phoenix e Hoffman. Eles conseguem potencializar tudo o que o texto de Paul Thomas Anderson gostaria de elucidar. A vulnerabilidade de ambos. Os abusos escondidos nesta metodologia. A raiva. A impotência. Ambos são vítimas dos seus vícios. Ambos tinham esperança um no outro. Ambos, porém, são imutáveis. A maior ironia de O Mestre está justamente neste ponto. Aos olhos de PTA, os personagens começam e terminam da mesma forma. O culto nada mais é do que um placebo, uma distração na rotina de dois homens “domados” por seus próprios mestres.

PTA conversa com Joaquin Phoenix durante as filmagens de Vício Inerente

Após entregar uma das maiores atuações da sua aclamada carreia, Joaquin Phoenix resolveu repetir a dose com Paul Thomas Anderson. E mais uma vez o cineasta surpreendeu a todos. Vício Inerente (2014), de fato, pode não ter causado o mesmo impacto das suas obras anteriores, mas mostrou o apetite do diretor por novidade. Pela primeira vez na sua carreira, ele quis adaptar uma história que não era sua. O resultado foi mais uma vez singular. Vício Inerente resgatou o PTA de Boogie Nights numa obra extravagante, lisérgica e enérgica. Uma produção totalmente distante do quinto filme desta lista.

- Trama Fantasma (2017)

A essa altura você deve ter percebido que PTA sempre faz um uso singular do cenário das suas películas. Trama Fantasma é o exemplo perfeito disso. Visualmente, sem medo de errar, se trata da obra mais requintada do cineasta. Se é para fazer um filme sobre um renomado estilista, que este seja refinado como poucos. Paul Thomas Anderson trata o seu protagonista como um verdadeiro artista. Seu ‘modus operandi’ se aproxima de um balé. O design de produção cria um ambiente ao mesmo tempo imersivo e impactante. Quase que como se invadíssemos um espaço idílico. Uma sensação que, entretanto, fica reduzida ao visual. Já que Trama Fantasma se apropria desta atmosfera “romantizada” para construir uma história de amor tóxica e genuinamente urbana. Guiado pela comedida performance de Daniel Day Lewis, o longa provoca o espectador ao gradativamente subverter a estética do conto de fadas. O charme, aos poucos, dá lugar a vaidade, ao ciúme, a possessão.  Se de um lado estamos diante de um homem esquemático, talentoso e particularmente egocêntrico, do outro temos uma mulher (a excelente Vicky Krieps) persistente, devotada e capaz de gestos perversos para conseguir o que ela julgava seu por merecimento. Longe de ser mais um filme sobre uma relação abusiva, o grande trunfo de Trama Fantasma está na capacidade do argumento em escancarar a "sujeira" por trás da beleza da alta moda da década de 1950. Ao não escolher lados, PTA surpreende ao tratar os dois protagonistas em condição de igualdade, evitando colocar o certo e o errado na equação. Os dois, na verdade, se revelam vítimas e algozes dos seus sentimentos, o que confere ao 'script' uma aura insinuante capaz de fisgar a atenção do público. Mesmo com o ritmo por vezes lento, Trama Fantasma vai do romance à tensão ao se revelar uma história de amor única. O tipo de visão autoral que ajudou a transformar PTA num sinônimo de qualidade no cinema mundial.

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