sábado, 23 de junho de 2018

Dez filmes originais Netflix dignos de nota


Frequentemente questionada pelos cinéfilos mais puristas, a Netflix tem investido cada vez mais pesado na realização de conteúdo original. Na ânsia de atrair os holofotes do público, entretanto, a companhia segue devendo quando o assunto são os filmes inteiramente produzidos sob a sua marca. Boas intenções a parte, é nítido que obras como Bright, Mudo, Dívida Perigosa e o recente Lá Vem os Pais não conseguiram corresponder as expectativas criadas lá atrás, quando a empresa “invadiu” o mercado com o elogiado Beasts of No Nation (2015). Curiosamente, porém, o trabalho da Netflix enquanto uma espécie de distribuidora de conteúdo começa a saltar os olhos. Dando voz a jovens e diversificados realizadores, a gigante do streaming tem recheado o seu catálogo com obras variadas, daquelas que, em sua maioria, passariam longe do alcance do grande público. Um destes títulos é o magnífico O Vazio do Domingo (leia a nossa opinião aqui), um denso drama espanhol sobre os conflitos de duas mulheres unidas pelo laço da maternidade. Sob a batuta do promissor Ramón Salazar, o longa, sem qualquer tipo de exagero, está entre as melhores películas lançadas em solo brasileiro neste ano, principalmente pela elegância e intensidade com que investiga as desavenças entre mãe e filha num contexto tenso e instigante. Neste artigo especial, portanto, preparamos uma lista com dez filmes originais Netflix dignos de nota. Tomando como base a nossa opinião, começamos com... 


- Aniquilação


No que diz respeito às suas produções originais, a Netflix tem errado bem mais do que acertado quando o assunto é o cinema. Quando acerta, porém, a Netflix tem conseguido entregar\adquirir produções originais de ótimo nível. Esse é o caso de Aniquilação (leia a nossa opinião aqui), uma experiência cinematográfica reflexiva, audaciosa e indiscutivelmente original. No seu segundo trabalho na função de diretor, Alex Garland se comprova como uma das mais instigantes novas vozes de Hollywood ao questionar o nosso comportamento autodestrutivo numa poderosa alegoria ambiental. Numa obra com múltiplas camadas, o homem por trás do extraordinário Ex_Machina (2015) esbanja domínio narrativo ao construir um denso estudo de personagem, transitando habilmente entre o Sci-Fi, o Horror e o Drama enquanto reflete sobre a nossa existência numa obra inquietante, tensa e cinematograficamente estilosa. Uma obra inquietante.

- Cargo


Desde a sua remodelada origem, nas mãos do criativo George Romero, os filmes de zumbi ofereciam um interessante pano fundo para a construção da crítica social no cinema. Indo além do choque pelo choque, títulos como o clássico A Noite dos Mortos Vivos (1968), o visceral O Despertar dos Mortos (1978), o agressivo Extermínio (2002) e mais recente o inteligente Invasão Zumbi (2016) se tornaram referências dentro do gênero, justamente por, através do horror, questionar o nosso estilo de vida em sociedade. Por mais que, nos últimos anos, a maioria dos representantes do segmento tenha se distanciado desta vertente, ora e vez surge uma obra capaz de explorar este potencial. Esse – felizmente - é o caso de Cargo (leia a nossa opinião aqui). Uma das melhores produções originais recentes da Netflix, o longa dirigido pela dupla Ben Howling e Yolanda Ramke provoca um misto de emoções ao narrar a desventurada jornada de um pai contaminado em busca de um abrigo para a sua indefesa filha. Transitando com desenvoltura entre o Drama, o Suspense e o Horror, a promissora dupla de realizadores enche a tela de tensão ao traduzir o desespero de um pai à procura de um lugar para a sua filha, encontrando nesta jornada familiar o subtexto necessário para criticar a apropriação cultural e a condição de abandono dos povos aborígenes em solo australiano. Um filme inventivo e plasticamente expressivo que, impulsionado pela intensa performance de Martin Freeman, surpreende ao realçar o fator humano em meio ao caos numa película emocionante. 

- Minha Primeira Luta


Algumas pessoas não precisam subir num tatame ou num ringue para entender o real sentido da palavra lutar. Impecável ao mostrar o quão tênue pode de ser a linha entre a vitória e a derrota, entre o sucesso e o fracasso, Minha Primeira Luta (leia a nossa opinião aqui) é incisivo ao mostrar as desventuras de uma promissora lutadora num ambiente abusivo e desigual. Recebido com elogios no descolado festival Sound by South West, o longa dirigido e estreado pela novata Olivia Newman se distancia dos clichês dos filmes esportivos ao se concentrar nos verdadeiros obstáculos desta lutadora, ao tratar a realidade como o principal oponente de uma jovem pobre e negra num contexto essencialmente urbano. Embora siga uma linha reconhecível aos olhos dos fãs de títulos do porte de Rocky: O LutadorO Vencedor e o recente Creed, a promissora realizadora o faz com enorme sinceridade, realçando as falhas, os excessos e as virtudes da sua protagonista enquanto revela o impacto do desamparo na rotina de alguém que precisou aprender a lutar desde cedo para conquistar as suas oportunidades. Uma abordagem humana potencializada pela poderosa performance da expressiva Elvire Emanuelle, que, num trabalho recheado de nuances sentimentais, reforça a importância da diversidade em Hollywood. 

- Os Meyerowitz


Noah Baumbach é, por mais paradoxal que possa parecer, uma verdadeira estrela do cinema 'indie' americano. Na última década e meia, o realizador nova-iorquino se estabeleceu como uma voz que merece ser ouvida, extrapolando o "claustrofóbico" circuito alternativo com títulos como o denso drama familiar A Lula e A Baleia (2005), o charmoso romance Frances Ha (2013) e a adorável comédia Mistress America (2015). Apesar de dialogar com temas tão universais nos seus filmes, entretanto, ele permaneceu preso a um nicho. Ao contrário de outros grandes nomes da sua geração, como os cultuados Wes Anderson (O Grande Hotel Budapeste) e Paul Thomas Anderson (Sangue Negro), Baumbach não conseguiu levar a sua autoralidade para o cinema 'mainstream', ganhando espaço "apenas" entre os mais antenados cinéfilos de plantão. Uma realidade que, felizmente, pode ganhar uma nova perspectiva com o lançamento do seu mais novo projeto, o apaixonante Os Meyerowitz: Família não se Escolhe (leia a nossa opinião aqui). Além de ser, de longe, a obra mais imersiva e popular na sua autoral filmografia, a irônica 'dramédia' se revela uma das melhores produções originais da Netflix, o que dá a ele um alcance nunca experimentado ao longo da sua carreira. Como de costume na sua carreira, Baumbach usa a arte como um estopim para um relato genuinamente familiar, expondo as frustrações, os erros do passado e a estreita conexão de uma família nada convencional numa película leve, inteligente e sinceramente engraçada. Um filme recheado de sentimento que, dentre os seus inúmeros predicados, surpreende ao lembrar que Adam Sandler sabe atuar.

- Okja


Original, extravagante e genuinamente crítico, Okja (leia a nossa opinião aqui) oferece aquilo que nós esperávamos de uma companhia tão inovadora. Indo da sátira ao drama com enorme criatividade, o longa dirigido pelo magnífico Joon-ho Bong (Expresso do Amanhã) coloca o dedo na ferida ao se insurgir contra o lado mais nefasto e imoral do agronegócio. Num dos trabalhos mais ambiciosos da sua consagrada carreira, o realizador sul-coreano provoca o espectador ao construir uma contundente fábula ambiental, um longa ora cativante, ora revoltante sobra a relação entre uma simpática adolescente e uma super porca criada para virar comida. Um filme que talvez possa até soar exagerado num primeiro momento, um fato recorrente na filmografia de Bong, mas que quando necessário é ousado o bastante para revelar o tipo de verdade capaz de embrulhar o estômago do espectador\consumidor. Uma crítica irreverente, reflexiva e indiscutivelmente corajosa acerca da origem da nossa comida.

- My Happy Family


Manana era uma mulher frustrada. Seu casamento era tão frio quanto um geleira. Sua rotina doméstica era caótica. Dividindo o seu apertado apartamento com outras seis pessoas, ela precisava conviver diariamente com o desdém dos seus dois filhos, com o distanciamento do seu marido e os desmandos da sua conservadora mãe. Manana deixa de se tornar uma pessoa "invisível", no entanto, quando decide romper com a sua própria prole, se distanciar da sua cansativa rotina e se mudar sozinha para um novo apartamento. Da Geórgia para o mundo graças ao faro apurado da Netflix, Minha Família Feliz (leia a nossa opinião aqui) - que titulo irônico - escancara os dilemas femininos numa sociedade patriarcal com intensidade e um pontual senso de humor. Embora se passe num contexto bem particular, uma tradicionalista família georgiana, o longa dirigido por Nana Ekvtimishvili e Simon Groß mostra universalidade ao tratar de tabus bem comuns ao universo feminino, expondo a realidade de uma mulher infeliz sob um prisma introspectivo, maduro e indiscutivelmente crítico. 

- Wheelman


Frenético e surpreendente, Wheelman (leia a nossa opinião aqui) está entre os melhores representantes no gênero em 2017. A partir de uma premissa enxuta e naturalmente intrigante, o thriller dirigido pelo estreante em longas Jeremy Rush pisa no acelerador ao narrar as desventuras de um piloto de fuga envolvido num roubou mal resolvido, colocando o espectador no banco do carona numa película tensa, claustrofóbica e tecnicamente impactante. Numa mistura de Baby Driver (2017), com Drive (2011) e o imersivo Locke (2013), o roteiro assinado pelo próprio Jeremy Rush nos "prende" a um possante BMW num filme que parece não ter tempo a perder. Embora a premissa não soe tão original assim, o realizador californiano é habilidoso ao estabelecer a delicada situação do protagonista, extraindo o máximo de tensão da trama ao investir numa estrutura narrativa concisa e gradativa. Mesmo limitado pelo baixo orçamento, Rush esbanja virtuosismo técnico ao desvendar mistérios em torno do personagem títulos sem abdicar da ação, personificando a ameaça sempre que necessário ao investir num 'mise en scene' ágil e impactante. Um longa veloz, enxuto (os 80 minutos de duração passam voando) e recheado de predicados técnicos que literalmente rouba a cena dentro do universo de produções originais da Netflix. 

- The Fundamentals of Caring


Como costumo dizer, um filme não precisa reinventar a roda para cativar. E The Fundamentals of Caring consegue bem mais do que isso. Embora parta de uma premissa requentada, o longa dirigido e roteirizado por Rob Burnett agrada ao falar sobre a paternidade dentro uma perspectiva humana e inventiva. Num revigorante ‘road-movie’, o realizador é honesto ao narrar a jornada de um homem traumatizado disposto a retomar as rédeas de sua vida ao assumir os cuidados de um ácido jovem cadeirante. Impulsionado pela extraordinária química entre os protagonistas, o carismático Paul Rudd e o sarcástico Craig Roberts, Burnett eleva o nível do material ao investir em personagens com múltiplas camadas, realçando os seus respectivos conflitos enquanto constrói esta adorável amizade. Assim como num bom ‘road-movie’, é legal ver como o roteiro adiciona peças interessantes ao arco dos dois, entre elas uma jovem com anseios artísticos (Selena Gomez) e uma simpática grávida (Megan Fergusson), incrementando o pano de fundo paterno ao discorrer sobre as responsabilidades da função sob uma perspectiva leve e irônica. Na verdade, apesar do ‘background’ trágico, Burnett é sagaz ao não se render ao sentimentalismo, usando a disfuncional relação entre paciente e cuidador como o fio condutor da película. Quando necessário, entretanto, o longa é suficientemente maduro ao explorar os dilemas dos personagens, retratados com franqueza e uma comedida dose de emoção. O resultado é uma comédia agridoce que, embora encaixe as suas peças com inegável conveniência, cativa ao defender que o “fundo do poço” se torna um lugar mais tolerável na companhia de amigos.  

- Sonhos Imperiais


Imagine uma versão do comovente A Procura da Felicidade (2006), só que na realidade nua e crua da periferia dos EUA. Esta é a proposta de Sonhos Imperiais, um pequeno grande filme sobre a luta de um ex-presidiário contra o círculo vicioso do mundo do crime. Ao longo das enxutas 1 h e 25 min de duração, o promissor diretor Malik Vitthal dá uma ruidosa voz a uma camada da sociedade frequentemente esnobada em Hollywood. Sob uma perspectiva realística e questionadora, o longa esbanja propriedade ao narrar a jornada de Bambi, um jovem criado na marginalidade que, após um período preso, decide desafiar este ‘status quo’ e se dedicar a criação do seu pequeno filho. Num relato comovente, Vitthal rompe com o maniqueísmo ao mostrar a violência e a criminalidade como a principal sequela da desigualdade. Embora se apresse em alguns momentos, subaproveitando arcos e personagens marcantes, o argumento assinado por Ismet Prcic é incisivo ao mostrar a desoladora rotina de um jovem em busca de uma nova chance, refletindo sobre o desdém social ao criar um personagem encurralado. De um lado temos o tentador (e perigoso) mundo do crime. Do outro a escassez de oportunidades impostas por um sistema hipócrita e nada amistoso. Com diálogos densos, personagens multidimensionais e uma abordagem realista, Vitthal surpreende ao, em meio a um cenário tão cruel, tratar a literatura como uma espécie de refúgio. Fazendo um singular uso do ‘voiceover’, os textos de Bambi se revelam uma poderosa crônica sobre o cenário que o cerca, uma visão de alguém que verdadeiramente viveu aquilo bem de perto. Um sentimento que, diga-se de passagem, é potencializado pela sólida performance de John Boyega. Reconhecido pela sua intensidade, o ator britânico é daqueles que traz a verdade no seu olhar, imprimindo em cada frame o misto de esperança, resiliência e raiva que ditam o rumo do seu personagem. Na pele de um jovem talentoso, Boyega opta pelo comedimento ao capturar as nuances do seu Bambi, ao mostrar a dura rotina de um ex-presidiário negro obrigado a andar na corda bamba, se tornando a alma de uma obra que tem muito a dizer. Contando ainda com uma expressiva fotografia noturna e planos íntimos recheados de sentimentos, Sonhos Imperiais extrai a arte por trás de uma dura realidade ao traduzir com rara beleza uma verdade infelizmente universal. Seja num gueto norte-americano, seja numa favela brasileira.

- Maktub


Por fim, o filme mais ingênuo da lista. Mas também um dos mais simbólicos. Um dos trunfos da Netflix enquanto produtora de conteúdo está na tentativa da companhia em se tornar uma janela para realizadores\longas estrangeiros. Só nesta pequena lista temos filmes dirigidos por um australiano, um georgiano e um sul-coreano. Esse é o caso de Maktub, uma comédia dramática israelense que cativa ao dar uma roupagem própria a uma premissa singular. Embora se escore em soluções convenientes típicas dos blockbusters, a película dirigida por Oded Raz esbanja doçura ao narrar a jornada de dois “cobradores” da máfia que, após uma experiência miraculosa, decidem se redimir e concretizar alguns dos desejos colocados no Muro das Lamentações. Transitando habilmente entre a comédia e o drama, o longa arranca genuínas risadas ao falar sobre paternidade e fé dentro de um contexto pouco ortodoxo, encontrando na entrosada dupla Guy Amir e Hanan Savyon a sinceridade necessária para construir os laços por trás desta escapista premissa. Por mais que o foco esteja no humor, Raz mostra delicadeza ao trabalhar os conflitos dos personagens, ao explorar o singelo drama familiar sem apelar para o sentimentalismo, elevando o nível da trama ao se encantar pela crise de consciência da dupla de meliantes. É interessante ver, aliás, o cuidado do argumento em explorar os tipos femininos, em torna-las peças importantes dentro da história, contornando as dúvidas iniciais ao trata-las com o devido respeito em momentos chaves. Cuidadoso ao levar uma tradição local para o resto do mundo, Maktub se revela uma obra agradável e universal, um filme que diverte sem esquecer de valorizar o simpático elemento humano.

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