De embrulhar o estômago
Cada vez mais ousadas e chamativas, as produções originais da Netflix
tem causado um inegável rebuliço na indústria do cinema. Recentemente,
inclusive, escrevi um artigo (leia aqui) me posicionando contra as declarações de Pedro
Almodóvar e o seu discurso "protecionista" envolvendo a presença da
empresa na última edição do Festival de Cannes. Na função de presidente do juri, o respeitado realizador espanhol tentou
"desqualificar" as obras da líder do mercado 'on demand' pelo simples
fato delas não serem exibidas em salas de cinema. Embora entusiasta da
experiência cinematográfica, e por consequência do dispositivo cinema, me
parece claro que o nível de qualidade de uma película deva ser associado a
forma de distribuição. E que essa rixa se mostra pouco interessante para os fãs
da Sétima Arte. É verdade, entretanto, que a Netflix tem deixado a desejar quando o assunto são os seus últimos filmes originais.
Após estrear com o aclamado Beasts of No Nation, a empresa realmente se esforçou para emplacar novos sucessos, investiu pesado na contratação de nomes como Brad Pitt, Robert Redford, Rooney Mara, Jason Siegel e Jake Johnson, mas títulos como The Discovery, Apostando Tudo, Castelo de Areia e o recente WarMachine prometeram bem mais que cumpriram. Isso até agora. Original, extravagante e genuinamente crítico, Okja oferece aquilo que nós esperávamos de uma companhia tão inovadora. Indo da sátira ao drama com enorme criatividade, o longa dirigido pelo magnífico Joon-ho Bong (Expresso do Amanhã) coloca o dedo na ferida ao se insurgir contra o lado mais nefasto e imoral do agronegócio. Num dos trabalhos mais ambiciosos da sua consagrada carreira, o realizador sul-coreano provoca o espectador ao construir uma contundente fábula ambiental, um longa ora cativante, ora revoltante sobra a relação entre uma simpática adolescente e uma super porca criada para virar comida. Um filme que talvez possa até soar exagerado num primeiro momento, um fato recorrente na filmografia de Bong, mas que quando necessário é ousado o bastante para revelar o tipo de verdade capaz de embrulhar o estômago do espectador\consumidor.
Num momento em que nos deparamos com uma série de denúncias em torno da
qualidade da carne que consumimos, Okja coloca os pingos nos is ao expor (à sua
maneira) os interesses escusos por trás da indústria alimentícia. Por mais que
adote um satírico tom fabulesco, o roteiro assinado pelo próprio Joon-ho Bong é
incisivo ao construir esta inventiva película, superando as expectativas ao
propor uma crítica abrangente, realística e indiscutivelmente moderna. Sem
nunca parecer pretensioso e\ou panfletário, o diretor mostra propriedade ao não
só se insurgir contra as experiências "científicas" no ramo
alimentício, mais precisamente contra o crescente uso dos Organismos Geneticamente
Modificados, como também ao questionar a negligência, a sordidez e os maus
tratos por trás do 'modus operandi' destas grandes corporações. Uma série de
indagações potencializadas pela forma estranhamente lúdica com que o realizador
trata o tema. Isso porque, aqui, a nossa heroína é a pequena Mikha (Seo-Hyun
Ahn), uma jovem sul-coreana que vivia num bucólico cenário ao lado do seu avô e
da sua grande amiga, a super porca Okja. Criada pela indústria Mirando, uma
multinacional com sérios problemas de imagem, a criatura híbrida se tornou
parte de uma gigantesca campanha de marketing envolvendo o lançamento de um
novo "produto". Mikha, porém, não sabia disso e desenvolveu uma
sincera relação de companheirismo com o animal. Tudo muda, no entanto, quando a
CEO da empresa, a afetada Lucy Mirando (Tilda Swinton, como sempre imersa nos seus excêntricos personagens), resolve reaver a sua criação. Determinada, Mikha
decide enfrentar o sistema a fim de livra-la do seu trágico destino, se unindo
a um estranho grupo de ambientalistas na luta para revelar a verdade por trás
da criação desta nova espécie.
Indo do cômico ao trágico com enorme peculiaridade, Joon-ho Bong nos
brinda com uma mistura poucas vezes vista em Hollywood. Após se voltar contra a
poluição ambiental no excelente O Hospedeiro e contra a desigualdade social no
vigoroso O Expresso do Amanhã, o realizador sul-coreano eleva o nível da
extravagância ao utilizar a relação de amizade entre uma jovem e o seu
cativante animal como o ponto de partida para uma crítica voraz e extremamente
realística. Com pleno domínio criativo sobre a sua obra, Bong esbanja categoria
ao transitar entre gêneros totalmente distintos, tornando a jornada de Mikha
naturalmente impactante aos olhos do público. Num primeiro momento, por
exemplo, o diretor aposta na doçura ao revelar a estreita conexão entre a
garota e a sua simpática super porca. Sob um prisma quase naturalista, o longa
encanta ao apresentar a divertida rotina das duas em solo sul-coreano, buscando
inspiração em clássicos como Free Willy (1993) e Meu Amigo Totoro (1995) ao
construir esta tocante amizade. Após estabelecer o vínculo entre as
protagonistas, o roteiro é igualmente habilidoso ao introduzir os perigos
acerca da existência de Okja. Com uma assinatura visual tipicamente oriental,
vide a colorida campanha de marketing em torno do anúncio da nova espécie e o
visual cartunesco da CEO Lucy Mirando, Bong transita da comédia para a ação com
rara harmonia, arrematando o excepcional primeiro ato com uma fantástica
perseguição pelas ruas de Seul. Uma sequência engenhosa marcada pelos imponentes
planos panorâmicos, pela fluída edição e pelo virtuosismo do diretor ao
explorar a sensação de caos urbano com a fuga do animal.
Não se engane, porém, com o teor aventureiro e aparentemente familiar.
Após apontar para um caminho mais ingênuo durante a escapista primeira hora,
Joon-ho Bong provoca o espectador no momento em que decide mudar o tom do longa
e expor a verdade por trás da existência de Okja. Por mais que o roteiro sofra
uma considerável queda de ritmo ao longo do verborrágico segundo ato, o
realizador é cuidadoso ao preparar o terreno para a construção desta incisiva
crítica ambiental, flertando gradativamente com o drama ao realçar a
deterioração emocional e a perda da inocência de Mikha diante do cruel ambiente
corporativo. Mesmo sem nunca abrir mão do viés satírico, vide a presença do
insano 'show man' vivido com maestria por Jake Gyllenhaal e do pacífico grupo
de ambientalistas liderados por um intenso Paul Dano, Bong é incisivo ao
realçar o lado mais nefasto da indústria do ramo alimentício, nos brindando com
sequências genuinamente desconfortantes. Como de costume na sua filmografia,
aliás, o diretor permite que cada um dos coadjuvantes ganhe um justificado
espaço dentro da envolvente trama, dando ao talentoso elenco a oportunidade de
brilhar através de personagens exóticos e diálogos recheados de ironia. A
irreverente mistura proposta pelo realizador sul-coreano, entretanto, atinge o
seu ápice no sufocante ultimo ato. Com a intenção de propor a reflexão a partir
do choque, Joon-ho Bong sintetiza a sua crítica num clímax tenso e simbólico,
indo do cinismo comercial (no final das contas tudo tem um preço) à pureza
fabulesca (numa cena emotiva por natureza) de maneira memorável.
De longe o melhor filme original da Netflix desde Beasts of No Nation,
Okja é também uma obra esteticamente irretocável. Como se não bastasse o esmero
técnico na concepção da imponente super porca, uma criatura digital com uma
expressão amigável, uma textura rugosa bem verossímil e uma movimentação
desengonçada condizente com a postura de animais de grande porte, Joon-Ho Bong
mostra a sua irreverente assinatura ao realçar o elemento lúdico por trás desta
questionadora fábula. Auxiliado pela colorida fotografia tropical de Darius
Khondji (Meia Noite em Paris), o realizador sul-coreano é perspicaz ao realçar
a inocência da simpática Seo-Hyun Ahn, ao arquitetar esta inspirada crítica a
partir da perspectiva infantil, posicionando a sua câmera na altura da atriz ao
realçar a sua impotência diante de um ambiente tão hostil. Além disso, o
realizador esbanja sensibilidade ao traduzir os sentimentos de Mikha e Okja,
abrindo mão dos diálogos ao valorizar a expressividade e a comunicação gestual
entre as duas. Uma sacada inteligente, já que a barreira linguística é um problema
habilmente explorado ao longo da película.
Dito isso, com figurinos
infantilizados, personagens propositalmente caricatos e uma abordagem
satírica recheada de nuances, Okja se volta para o tradicional gênero fabulesco
ao propor uma crítica irreverente, reflexiva e indiscutivelmente corajosa
acerca da origem da nossa comida. Uma escolha acertadíssima e que finalmente justifica o frisson envolvendo a presença de uma empresa como a Netflix na indústria do cinema.
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