sexta-feira, 15 de junho de 2018

Sua Melhor História

Uma ode a sensibilidade feminina no cinema

Num ano em que Dunkirk e O Destino de Uma Nação se tornaram dois indiscutíveis sucessos de público e\ou crítica, chega a ser frustrante ver uma obra como Sua Melhor História ter passado tão despercebida. Ambientada no mesmo cenário das duas películas citadas acima, uma Inglaterra pressionada pelas tropas nazistas na primeira metade da Segunda Guerra Mundial, o longa dirigido pela talentosa Lone Scherfig (Educação) é perspicaz ao usar este contexto militarizado para debater a (ainda hoje) escassa presença feminina por trás das câmeras. Embora não seja inspirado em fatos, a película causa um inegável fascínio ao valorizar a sensibilidade feminina dentro da produção cinematográfica, enxergando um cuidadoso paralelo com a vida real ao mostrar como o conflito deu as mulheres britânicas a chance de conquistar a sua independência dentro de uma conservadora sociedade. Por mais que o roteiro derrape aqui ou ali, principalmente quando se prende demasiadamente ao pano de fundo romântico, Scherfig mostra sutileza ao estabelecer as barreiras entre a ficção e a realidade, entre a esperança e a dor, realçando a nossa vulnerabilidade em tempos de guerra sob uma perspectiva verossímil, inteligente e naturalmente feminina. 


Uma poderosa “arma” em tempos de conflito, o cinema se tornou uma popular ferramenta de motivação durante a Segunda Guerra Mundial. São inúmeros os filmes, inclusive, que mostram o “apetite” da Alemanha e dos Estados Unidos para a propaganda neste período. Os recentes A Conquista da Honra, Bastardos Inglórios e Raça não me deixam mentir. Tal qual as duas potências bélicas, entretanto, o Reino Unido também investiu na produção cinematográfica. Mesmo acuado pela derrota dos franceses, pelos constantes bombardeios nazistas e pela completa falta de recursos, Winston Churchill acreditava piamente na importância dos discursos inspiradores, na manutenção do moral do povo britânico, uma crença que ganhou um novo sentido após a miraculosa Operação Dínamo e o resgate de milhares de soldados ingleses na baia de Dunquerque. Dentro deste contexto naturalmente instigante, o roteiro assinado por Gaby Chiappe, baseado no romance homônimo de Lissa Evans, é sagaz ao mostrar o episódio sob um terceiro ponto de vista: o da ficção. Com os homens obrigados a servir à sua nação, a ex-secretária e escritora Catrin (Gemma Arterton) é recrutada para trabalhar no Ministério da Propaganda Britânica. Contrariando as suas expectativas, ela é pega de surpresa ao ser contratada para escrever o roteiro de pequenos filmes, trabalhando ao lado do sarcástico roteirista Tom (Sam Claflin). O seu bom trabalho, porém, logo a coloca na mira dos produtores Roger Swain (Richard E. Grant) e Gabriel Baker (Henry Goodman), que, diante da épica iniciativa popular em Dunquerque, resolvem adaptar a história de duas irmãs gêmeas que se tornaram um símbolo do heroísmo britânico. 


Num competente trabalho de reconstrução histórica, Sua Melhor História cativa num primeiro momento ao exaltar o ponto de vista feminino dentro de um tema majoritariamente voltado à perspectiva masculina. Fiel aos fatos, Lone Scherfig é criativa ao debater a importância da mulher em solo inglês durante o conflito, refletindo sobre o florescer da independência feminina num cenário precário e carente de material humano masculino. Com perspicácia e poder de síntese, o argumento é cuidadoso ao trazer este riquíssimo tema para o aspecto micro, se concentrando não só na jornada da esperta Catrin, como também numa recorrente personagem de apoio, a moderna e impetuosa Phyl (Rachael Stirling). Mesmo sob este ponto de vista reduzido, Scherfig mostra pulso ao levantar uma urgente bandeira igualitária, apontando a sua mira para a indústria cinematográfica ao questionar a ausência feminina por trás das câmeras. Com a propriedade que o tema necessita, Scherfig e Chiappe são incisivas ao sair em defesa da pluralidade, do olhar feminino, se distanciando (aqui) dos eventuais clichês ao exaltar a representatividade, ao mostrar importância de se compreender os anseios do seu público alvo. Delicada ao estabelecer o arco da sua protagonista, uma mulher disposta a imprimir em tela a sua visão de mundo, a realizadora é igualmente habilidosa ao expor o pano de fundo cinematográfico. Sob uma perspectiva leve e bem-humorada, Scherfig atrai o olhar dos fãs da Sétima Arte ao revelar os segredos por trás da mágica, ao mostrar os bastidores de uma complicada produção durante a Segunda Guerra Mundial. Através da óptica de Catrin e da sua relação com os singulares personagens de apoio, é legal entender a lógica por trás da construção do roteiro, ver os obstáculos durante as filmagens, a vaidade dos atores, a imposição dos produtores, a origem de uma produção. Como de costume na sua filmografia, o versátil Bill Nighy rouba a cena como um ator veterano e decadente, emprestando a sua reconhecida sensibilidade ao se tornar o elo de ligação perfeito entre a comédia e o drama. 


Na transição para a segunda metade da trama, porém, Sua Melhor História parece perder tempo demais com as “partes chatas”. Por mais que a química entre Catrin e Tom seja excelente, potencializada pelas intensas performances da carismática dupla Gemma Artenton e Sam Clafin), Scherfig patina ao tentar construir um frágil triângulo amoroso envolvendo o (mal desenvolvido) marido da protagonista, o pintor deficiente Ellis (Jack Huston). Ao contrário das inspiradas duas subtramas citadas acima, o arco romântico mostra a face mais genérica do texto, um pecado numa obra sobre dois criativos roteiristas. Na verdade, os problemas não estão nos (honestos) diálogos em si, nem tão pouco no rumo que a relação leva, mas no tempo que o argumento perde com as conversas dispensáveis. Com a tentativa de solidificar um elo que, a meu ver, já parecia bem estreito. Menos mal que, no momento em que o longa parecia apontar para um caminho mais seguro, um rumo romantizado que destoaria por completo do cenário proposto, Scherfig abre mão do viés concessivo ao lembrar o espectador que eles ainda estavam em guerra. Sem querer revelar muito, a realizadora é sutil ao tratar a ficção não como uma propaganda de guerra, mas como uma genuína fonte de inspiração, classificando a sua arte como uma espécie de refúgio perante o caos. Quando necessário, aliás, o longa comove ao expor o apetite de uma guerra por vidas inocentes, pontuando a trama com duas ou três sequências naturalmente dramáticas. A construção da primeira cena do ataque aéreo, aliás, é digna dos melhores elogios, principalmente pela forma como testa as expectativas do público até revelar a dura realidade. Um predicado, diga-se de passagem, valorizado pela fria fotografia lavada de Sebastian Blenkov, delicada ao traduzir as sequelas do conflito e ao capturar a deterioração dentro do imersivo cenário. 


Sob uma perspectiva original, Sua Melhor História se revela um relato digno sobre uma mulher e a sua silenciosa guerra contra a desproporcional cultura paternalista. Sem a intenção de flertar com o teor panfletário, Lone Scherfig mostra naturalidade ao traduzir a ascensão da roteirista, se distanciando do viés unidimensional ao defender a importância de uma boa oportunidade na luta pela igualdade e pela representatividade.


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