sábado, 30 de junho de 2018

Tau

Sobra estilo, falta inteligência

Como já escrevi outras vezes aqui no blog, é nítido o apreço da Netflix, enquanto produtora\distribuidora de conteúdo, pelo universo das ficções-científicas. Nos últimos anos, a gigante do streaming tem recheado o seu catálogo com diversos títulos do gênero, uma busca voraz que, infelizmente, tem priorizado mais a quantidade do que propriamente a qualidade. Com exceção de longas como o crítico Okja, o existencialista Aniquilação e o valoroso Órbita 9, o que se vê até o momento é uma preocupação temática, uma valorização dos filmes com premissas instigantes que, na maioria dos casos, não conseguem explorar o seu próprio potencial. Uma sensação que fica bem clara quando assistimos obras do nível de Onde está Segunda?, Anon, Mudo, The Titan, O Paradoxo Cloverfield e The Discovery, produções que, apesar dos seus inegáveis predicados, não entregam o nível de profundidade exigido por este complexo segmento. Uma lista de decepções que ganha mais um integrante de “respeito”, o sentimentalista Tau. Com um roteiro carente de inteligência, um vilão tenebroso (no mau sentido) e um terceiro ato que beira o risível, o longa dirigido pelo novato Federico D'Alessandro desperdiça uma promissora premissa num Sci-Fi sem nuances, uma obra frouxa que ofende o legado do gênero ao discutir os paradigmas da Inteligência Artificial sob uma perspectiva rasa e infantiloide. Inspirado por obras do quilate de Ex-Machina, o realizador uruguaio capricha no estilo, no uso das cores saturadas e da trilha sonora, mas tudo soa vazio (e pouco original) diante dos pífios efeitos visuais, da completa ausência de tensão e da imaturidade com que Tau trata conceitos tão complexos. 



Tal qual a grande maioria dos filmes citados acima, entretanto, Tau começa numa curva ascendente. Seguindo os passos da solitária Julia (Maika Monroe), uma ladra com anseios artísticos que usava o seu charme para seduzir homens e para praticar os seus golpes, Federico D’Alessandro realça o potencial da película ao nos inserir num decadente cenário urbano futurístico. Amparado pelo inspirado trabalho da equipe de direção de arte, vide a inventiva mansão ‘hi-tech’ em que a trama é ambientada, o realizador é habilidoso ao usar o estiloso apê da protagonista como um agente contextualizador, permitindo que enxerguemos a verdade por trás dela com perspicácia e pulso narrativo. Um poder de síntese que, diga-se de passagem, se torna decisivo para a construção do tenso primeiro ato, já que em pouco menos de vinte minutos o argumento assinado por Noga Landau não perde tempo ao estabelecer também a sua nova e desoladora situação enquanto prisioneira numa casa futurística comandada por uma inteligência artificial, o onipresente Tau (Gary Oldman). Ao longo do envolvente terço inicial, D’Alessandro mostra competência ao alimentar as dúvidas do espectador enquanto traduz o desespero da jovem, criando um cenário imersivo, nervoso e naturalmente instigante. Os trunfos narrativos da película, porém, caem por terra no momento em que começamos a descobrir os segredos em torno do seu rapto e as formas encontradas por ela para fugir desta situação. Uma queda vertiginosa potencializada, primeiramente, pelo surgimento do frio Alex (Ed Skrein), um desenvolvedor de uma gigante da tecnologia que mais parece um sociopata robótico. Na ânsia de criar um tipo dúbio e ameaçador, D’Alessandro falha retumbantemente ao investir numa figura monocromática, um personagem opaco e mal desenvolvido que não convence por um segundo sequer. Sem querer revelar muito, a relação entre ele e a esperta Julia é de um vazio constrangedor, um arco que, apesar do potencial, é tratado com um desdém ofensivo. Para piorar, Skrein, limitado pelo fraquíssimo texto, entrega uma performance caótica, transmitindo as confusas reações do seu Alex com uma frieza embaraçosa.


O elemento mais problemático de Tau, porém, está na maneira infantiloide com que Federico D’Alessandro invade o terreno da ficção científica. Por mais que a ideia central da película seja original, o fato do longa trabalhar com uma IA ‘offline’ presa propositalmente pelo seu receoso criador, o realizador testa a inteligência do espectador ao tratar o tema com a profundidade de uma aventura oitenista da Sessão da Tarde. Apesar do esforço do talentoso Gary Oldman em injetar uma consciente dose de humanidade na voz do personagem, numa clara reverência ao icônico Hal 9000 e ao clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), o que vemos é um debate existencial pueril, com Julia surgindo como uma professora nível ensino primário e Tau como um cachorrinho dócil em busca de conhecimento. Embora o crescente (e compreensível) elo dos dois gere empatia, ponto para o expressivo design da IA e a sutil crítica envolvendo a desvalorização do conhecimento, a troca de experiências entre sequestrada e “carcereiro” é de uma pobreza frustrante, comprovando a carência de ideias de um argumento que em nenhum momento consegue explorar o potencial desta relação. E como não existe nada tão ruim que não possa piorar, D’Alessandro não se contenta em criar um antagonista fraco e maniqueísta. Ele precisa ser mau. Cruel. O alvo, entretanto, não é somente Julia. Na transição para o patético último ato, o argumento transforma o vilão num torturador da emotiva IA, tentando justificar o temor\inércia de TAU da pior e mais esdrúxula maneira possível. A inteligência artificial é tratada aqui, volto a frisar, como um animal indefeso, uma solução imperdoável que ajuda a pavimentar o caminho para o desastrado clímax.  


Indo além dos problemas citados acima, Federico D’Alessandro investe num último ato recheado de falhas, daquelas que testam os limites da coerência, com direito a uma profusão de soluções convenientes, sequências de ação de péssimo nível, efeitos visuais dignos de telefilme e uma risível mão de borracha. O evidente baixo orçamento, aliás, fica impresso com clareza em outros momentos da película, principalmente quando o assunto são as cenas envolvendo um deslocado robô, uma criatura datada e digitalmente artificial que não parece pertencer a realidade proposta pelo longa. Nem só de gritantes problemas, no entanto, vive Tau. Por mais que a queda de ritmo\tensão da película seja óbvia após o fim do eficaz primeiro ato, D’Alessandro mantém o bom nível no que diz respeito ao estilo. Embora as referências ao original Ex-Machina sejam nítidas, o realizador uruguaio faz um refinado uso da fotografia saturada de Larry Smith (Só Deus Perdoa), realçando o (subaproveitado) potencial de imersão da película ao valorizar a iluminação do set, o criativo design futurista e a influência das cores na captura das expressões das protagonistas. Um predicado que ajuda a valorizar a cativante interação entre IA e protagonista. Por falar nela, Maika Monroe se revela o único acerto inquestionável do longa. Na pele da sobrevivente Julia, a promissora atriz entrega mais do que o texto exigia, criando uma personagem com características próprias. Uma mulher cerebral disposta a usar as suas armas para conseguir voltar a enxergar a luz do dia.


Uma performance muito superior ao nível do emburrecido Tau, um thriller de ficção científica decepcionante que, embora se leve a sério ao ponto de mirar em títulos como Ex-Machina e 2001: Uma Odisseia no Espaço, se contenta em tratar um tema complexo com o escapismo infantil de obras como Um Robô em Curto Circuito e Chappie. E isso sem o nível de diversão destas duas simpáticas aventuras.

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