Sobra estilo, falta inteligência
Como já escrevi outras vezes aqui
no blog, é nítido o apreço da Netflix, enquanto produtora\distribuidora de
conteúdo, pelo universo das ficções-científicas. Nos últimos anos, a gigante do
streaming tem recheado o seu catálogo com diversos títulos do gênero, uma busca
voraz que, infelizmente, tem priorizado mais a quantidade do que propriamente a
qualidade. Com exceção de longas como o crítico Okja, o existencialista
Aniquilação e o valoroso Órbita 9, o que se vê até o momento é uma preocupação
temática, uma valorização dos filmes com premissas instigantes que, na maioria
dos casos, não conseguem explorar o seu próprio potencial. Uma sensação que
fica bem clara quando assistimos obras do nível de Onde está Segunda?, Anon,
Mudo, The Titan, O Paradoxo Cloverfield e The Discovery, produções que, apesar
dos seus inegáveis predicados, não entregam o nível de profundidade exigido por
este complexo segmento. Uma lista de decepções que ganha mais um integrante de “respeito”,
o sentimentalista Tau. Com um roteiro carente de inteligência, um vilão
tenebroso (no mau sentido) e um terceiro ato que beira o risível, o longa
dirigido pelo novato Federico D'Alessandro desperdiça uma promissora premissa num
Sci-Fi sem nuances, uma obra frouxa que ofende o legado do gênero ao discutir os
paradigmas da Inteligência Artificial sob uma perspectiva rasa e infantiloide. Inspirado
por obras do quilate de Ex-Machina, o realizador uruguaio capricha no estilo, no
uso das cores saturadas e da trilha sonora, mas tudo soa vazio (e pouco
original) diante dos pífios efeitos visuais, da completa ausência de tensão e
da imaturidade com que Tau trata conceitos tão complexos.
Tal qual a grande maioria dos
filmes citados acima, entretanto, Tau começa numa curva ascendente. Seguindo os
passos da solitária Julia (Maika Monroe), uma ladra com anseios artísticos que
usava o seu charme para seduzir homens e para praticar os seus golpes,
Federico D’Alessandro realça o potencial da película ao nos inserir num
decadente cenário urbano futurístico. Amparado pelo inspirado trabalho da
equipe de direção de arte, vide a inventiva mansão ‘hi-tech’ em que a trama é
ambientada, o realizador é habilidoso ao usar o estiloso apê da protagonista
como um agente contextualizador, permitindo que enxerguemos a verdade por trás
dela com perspicácia e pulso narrativo. Um poder de síntese que, diga-se de
passagem, se torna decisivo para a construção do tenso primeiro ato, já que em
pouco menos de vinte minutos o argumento assinado por Noga Landau não perde
tempo ao estabelecer também a sua nova e desoladora situação enquanto prisioneira
numa casa futurística comandada por uma inteligência artificial, o onipresente Tau
(Gary Oldman). Ao longo do envolvente terço inicial, D’Alessandro mostra
competência ao alimentar as dúvidas do espectador enquanto traduz o desespero da
jovem, criando um cenário imersivo, nervoso e naturalmente instigante. Os
trunfos narrativos da película, porém, caem por terra no momento em que começamos
a descobrir os segredos em torno do seu rapto e as formas encontradas por ela para
fugir desta situação. Uma queda vertiginosa potencializada, primeiramente, pelo
surgimento do frio Alex (Ed Skrein), um desenvolvedor de uma gigante da tecnologia
que mais parece um sociopata robótico. Na ânsia de criar um tipo dúbio e ameaçador,
D’Alessandro falha retumbantemente ao investir numa figura monocromática, um
personagem opaco e mal desenvolvido que não convence por um segundo sequer. Sem
querer revelar muito, a relação entre ele e a esperta Julia é de um vazio
constrangedor, um arco que, apesar do potencial, é tratado com um desdém
ofensivo. Para piorar, Skrein, limitado pelo fraquíssimo texto, entrega uma
performance caótica, transmitindo as confusas reações do seu Alex com uma
frieza embaraçosa.
O elemento mais problemático de Tau,
porém, está na maneira infantiloide com que Federico D’Alessandro invade o
terreno da ficção científica. Por mais que a ideia central da película seja original,
o fato do longa trabalhar com uma IA ‘offline’ presa propositalmente pelo seu
receoso criador, o realizador testa a inteligência do espectador ao tratar o
tema com a profundidade de uma aventura oitenista da Sessão da Tarde. Apesar do
esforço do talentoso Gary Oldman em injetar uma consciente dose de humanidade
na voz do personagem, numa clara reverência ao icônico Hal 9000 e ao clássico
2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), o que vemos é um debate existencial pueril,
com Julia surgindo como uma professora nível ensino primário e Tau como um
cachorrinho dócil em busca de conhecimento. Embora o crescente (e
compreensível) elo dos dois gere empatia, ponto para o expressivo design da IA
e a sutil crítica envolvendo a desvalorização do conhecimento, a troca de
experiências entre sequestrada e “carcereiro” é de uma pobreza frustrante, comprovando
a carência de ideias de um argumento que em nenhum momento consegue explorar o
potencial desta relação. E como não existe nada tão ruim que não possa piorar, D’Alessandro
não se contenta em criar um antagonista fraco e maniqueísta. Ele precisa ser
mau. Cruel. O alvo, entretanto, não é somente Julia. Na transição para o
patético último ato, o argumento transforma o vilão num torturador da emotiva
IA, tentando justificar o temor\inércia de TAU da pior e mais esdrúxula maneira
possível. A inteligência artificial é tratada aqui, volto a frisar, como um
animal indefeso, uma solução imperdoável que ajuda a pavimentar o caminho para
o desastrado clímax.
Indo além dos problemas citados
acima, Federico D’Alessandro investe num último ato recheado de falhas, daquelas
que testam os limites da coerência, com direito a uma profusão de soluções
convenientes, sequências de ação de péssimo nível, efeitos visuais dignos de
telefilme e uma risível mão de borracha. O evidente baixo orçamento, aliás,
fica impresso com clareza em outros momentos da película, principalmente quando
o assunto são as cenas envolvendo um deslocado robô, uma criatura datada e
digitalmente artificial que não parece pertencer a realidade proposta pelo
longa. Nem só de gritantes problemas, no entanto, vive Tau. Por mais que a
queda de ritmo\tensão da película seja óbvia após o fim do eficaz primeiro ato,
D’Alessandro mantém o bom nível no que diz respeito ao estilo. Embora as
referências ao original Ex-Machina sejam nítidas, o realizador uruguaio faz um
refinado uso da fotografia saturada de Larry Smith (Só Deus Perdoa), realçando
o (subaproveitado) potencial de imersão da película ao valorizar a iluminação
do set, o criativo design futurista e a influência das cores na captura das
expressões das protagonistas. Um predicado que ajuda a valorizar a cativante
interação entre IA e protagonista. Por falar nela, Maika Monroe se revela o
único acerto inquestionável do longa. Na pele da sobrevivente Julia, a
promissora atriz entrega mais do que o texto exigia, criando uma personagem com
características próprias. Uma mulher cerebral disposta a usar as suas armas
para conseguir voltar a enxergar a luz do dia.
Uma performance muito superior ao
nível do emburrecido Tau, um thriller de ficção científica decepcionante que,
embora se leve a sério ao ponto de mirar em títulos como Ex-Machina e 2001: Uma
Odisseia no Espaço, se contenta em tratar um tema complexo com o escapismo
infantil de obras como Um Robô em Curto Circuito e Chappie. E isso sem o nível
de diversão destas duas simpáticas aventuras.
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