domingo, 20 de maio de 2018

Cargo

Um filme de zumbi de respeito

Desde a sua remodelada origem, nas mãos do criativo George Romero, os filmes de zumbi sempre ofereceram um interessante pano fundo para a construção da crítica social no cinema. Indo além do choque pelo choque, títulos como o clássico A Noite dos Mortos Vivos (1968), o visceral O Despertar dos Mortos (1978), o agressivo Extermínio (2002) e mais recente o inteligente Invasão Zumbi (2016) se tornaram referências dentro do gênero, justamente por, através do horror, questionar o nosso estilo de vida em sociedade. Por mais que, nos últimos anos, a maioria dos representantes do segmento tenha se distanciado desta vertente, ora e vez surge uma obra capaz de explorar este potencial. Esse – felizmente - é o caso de Cargo. Uma das melhores produções originais recentes da Netflix, o longa dirigido pela dupla Ben Howling e Yolanda Ramke provoca um misto de emoções ao narrar a desventurada jornada de um pai contaminado em busca de um abrigo para a sua indefesa filha. Transitando com desenvoltura entre o Drama, o Suspense e o Horror, a promissora dupla de realizadores enche a tela de tensão ao traduzir o desespero de um pai à procura de um lugar para a sua filha, encontrando nesta jornada familiar o subtexto necessário para criticar a apropriação cultural e a condição de abandono dos povos aborígenes em solo australiano. Um filme inventivo e expressivo que, impulsionado pela intensa performance de Martin Freeman, surpreende ao realçar o fator humano em meio ao caos numa película emocionante. 



Com roteiro assinado pela própria Yolanda Ramke, a delicadeza feminina do texto, aliás, é um dos diferenciais do longa, Cargo envolve ao encontrar um precioso meio termo entre a crítica e o entretenimento. Diante de uma premissa naturalmente instigante, a dupla de realizadores é inicialmente cuidadosa ao estabelecer o elo entre os personagens, ao situa-los numa realidade pós-apocalíptica em que uma doença transmissível parece ter dizimado parte da população da Terra. Ao longo do imersivo primeiro ato, o argumento esbanja poder de síntese ao valorizar o fator humano enquanto estabelece o ‘modus operandi’ desta infecção, nos inserindo gradativamente num ambiente em que, ao contrário da maioria dos filmes do gênero, a contaminação já era de conhecimento público. Por mais que a reluzente fotografia diurna sugira uma atmosfera pacífica, Howling e Ramke são astutos ao revelar o perigo que os cerca, introduzindo a sua particular mitologia sem a necessidade de diálogos expositivos ou explicações baratas envolvendo a origem da epidemia. Na verdade, o argumento é esperto ao nos colocar na posição do protagonista, ao nos “prender” a figura do desprotegido pai, o pacato Andy (Martin Freeman), permitindo que, tal qual o inerte bebê, desvendemos ao seu lado qual a real situação dos sobreviventes na região em que a trama é situada.  As justificativas para o seu "despreparo" são bem claras. Na trama, após um repentino ataque, ele, a sua filha e a sua esposa (Susie Porter) são obrigados a deixar o barco em que moravam e partir em busca de ajuda pelas desertas estradas locais. Durante o trajeto, porém, Andy sofre um ataque, mas consegue escapar com vida. Consciente que tinha menos de 48 horas até a transformação, o zeloso pai decide partir em busca de um destino para a sua indefesa filha, encarando o melhor e o pior do ser humano numa desesperadora jornada pelas “esquecidas” terras aborígenes.


Com uma atmosfera “remota” que remete a outro grande sucesso australiano, o inesquecível Mad Max (1979), Ben Howling e Yolanda Ramke são criativos ao, tal qual George Miller, usar a vastidão desértica como o cenário perfeito para a construção deste cenário pós-apocalíptico. Mesmo limitados pelo evidente baixo orçamento, os dois esbanjam virtuosismo técnico ao criar um clima crescente de tensão, flertando com a opressão silenciosa de A Noite dos Mortos Vivos ao tornar os zumbis cada vez mais ameaçadores. Apesar dos cenários vastos, a sensação de perigo iminente é recorrente, contrastando com a bucólica (e belíssima) fotografia diurna em tons dourados do experiente Geoffrey Simpson (Shine: Brilhante). Na verdade, por mais que o elemento familiar sugira uma abordagem mais leve, a dupla de realizadores faz jus aos principais títulos do gênero ao valorizar o elemento ‘gore’, reforçando a carga de tensão ao criar uma “espécie” de zumbi mais impessoal e nojenta. As desengonçadas criaturas ganham uma movimentação naturalmente arrepiante, um rosto inexpressivo e uma "característica" realmente original. Já o processo de transformação me fez lembrar (vagamente) do repugnante A Mosca, com direito a muita gosma viscosa e espasmos involuntários. Com uma ameaça tão bem estabelecida em mãos, Howling e Ramke transitam por gêneros contrastantes ao traduzir não só o angustiante estado de espírito de Andy, como também a sua frágil relação com os interessantes coadjuvantes. Por mais que o foco esteja na comovente interação entre pai e filha, capturada com impressionante intimismo pelas lentes da dupla, o roteiro é cuidadoso ao construir os personagens de apoio, ao estabelecer os seus anseios e as suas motivações. Mais do que peças descartáveis, eles contribuem ativamente para o arco de Andy, reforçando o potencial dramático da trama ao expor a reação humana diante do caos e ao realçar o quão vulnerável era a situação do protagonista. Entre revigorantes respiros narrativos e genuínos momentos tensão, os realizadores conduzem a jornada paterna do protagonista por um terreno denso e sentimentalmente puro, culminando num clímax digno dos melhores do gênero. Sinceramente, não esperava me emocionar tanto com um filme de zumbi. 


E muito desta comoção, na verdade, se deve a maneira delicada com que o roteiro constrói os seus questionamentos. O apocalipse zumbi, aqui, simboliza a inconsequência do homem branco, do descaso para com a Terra e com os nativos da região. Neste sentido, a pequena Thoomi (Simone Landers) surge como uma personificação desta crítica, uma criança aborígene dividida entre as tradições culturais dos seus antepassados e a invasiva influência da cultura branca. Sem querer revelar muito, a simpática personagem ganha um arco sólido e emotivo, uma subtrama igualmente familiar que casa perfeitamente com a temática da película. Somado a isso, Ben Howling e Yolanda Ramke são extremamente respeitosos ao traduzir as tradições aborígenes, ao trata-los com nobreza e imponência, acertando – ao menos na ficção – uma dívida histórica ao torna-los peça chave dentro do sensível último ato. O símbolo de resistência num cenário de crueldade e desesperança. Na ânsia de escancarar o preconceito racial, entretanto, o argumento peca ao investir na dispensável presença de um antagonista raso e previsível, um flerte com o maniqueísmo que, menos mal, é logo abreviado. Um deslize que, em contrapartida, passa longe da contida performance do talentoso Martin Freeman. Reconhecido pelos seus papeis cômicos, o ator surpreende ao criar um tipo positivamente frágil, um homem à beira de um colapso que, pelo bem da sua filha, precisa mostrar força e tomar decisões moralmente dúbias. Num trabalho essencialmente físico, Freeman esbanja intensidade ao interiorizar os conflitos do seu Andy, reagindo da maneira mais humana possível diante dos obstáculos impostos pela dura realidade que o cerca. No mesmo nível do seu parceiro de cena, a expressiva Simone Landers cativa ao interpretar uma criança triste e acuada, uma garota relutante quanto o rumo da sua vida após uma dolorosa perda.


Embalado pela operante e diversificada trilha sonora, marcante tanto nas angustiantes sequências mais tensas, quanto nos arrepiantes momentos mais comoventes, Cargo se revela um filme de zumbi de respeito, uma obra com um forte subtexto que enerva ao estreitar os laços afetivos entre público e personagens. Seguindo a regra mais básica do gênero, Ben Howling e Yolanda Ramke oferecem os ingredientes necessários para que o espectador sinta a dor dos protagonistas, se importe com eles, experimente a vulnerabilidade deles, escondendo nesta imersiva jornada familiar uma inventiva crítica envolvendo a predatória diluição da cultura aborígene. E isso numa obra que, embora aposte no poder de sugestão quando o assunto é a violência gráfica, o que ajuda a explicar os repentinos cortes secos nas cenas mais agressivas, mostra originalidade ao explorar o elemento ‘gore’ à luz do dia, um fato bem raro dentro do segmento. 

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