Um dos subgêneros mais populares
dentro do revigorado cinema ‘indie’ atual, os ‘coming of age movies’
recuperaram nos últimos anos o prestígio que parecia ter ficado para trás na
década de 1980. Obras do quilate de Eu, Você e a Garota que Vai Morrer (2015),
Quase 18 (2016), Moonlight (2016), Lady Bird (2017) e Com Amor, Simon (2018)
não me deixam mentir. Os dilemas da juventude voltaram a ser tratados com
inteligência em filmes sensíveis, de alcance universal, culminando numa safra
de títulos respeitados que tem se renovado ano após ano. O que fica bem claro
com o mais novo integrante desta seleta lista, o desconcertante A Rota Selvagem (Lean on Pete, no original).
A rigor, os populares filmes sobre o amadurecimento seguem uma linha geralmente
comum. Estamos diante de personagens imaturos, por vezes erráticos, que devido
a algum conflito se veem obrigados a aprender com os seus erros, a crescer e se
preparar para o voraz mundo em que vivemos. Uma estrutura que, ao menos aqui, é
sabiamente subvertida. Dirigido pelo intenso Andrew Haigh, o mesmo do pesado
romance dramático 45 Anos (2015), o longa estrelado pelo promissor Charlie
Plummer causa um inegável desconforto ao inverter as coisas, refletindo sobre o
devastador impacto do desamparo na rotina de um adolescente precoce e
consciente. Um ‘coming of age movie’ as avessas que, embora parta de uma
premissa reconhecível, testa as nossas expectativas ao mostrar o choque de realidade
sob a perspectiva de alguém que num momento chave da sua vida percebeu que era
cedo demais para encarar o mundo adulto de peito aberto.
Com roteiro assinado por Andrew
Haigh, ao lado de Willy Vlautin, A Rota Selvagem abraça a imprevisibilidade da
vida real ao se dividir em duas metades completamente distintas. Com a nítida
intenção de fisgar a atenção do público através de um arco reconhecível, o
realizador preza inicialmente pela delicadeza ao narrar a jornada do maduro
Charley (Plummer), um garoto de quinze anos que, diante das constantes
ausências do seu relapso pai (vivido com complexidade por Travis Fimmel), se
viu obrigado a arregaçar as mangas durante as férias. Entusiasmado ao descobrir
que a alguns quilômetros da sua casa existia um hipódromo, o jovem decide se
oferecer para ajudar o criador de cavalos Del (interpretado pelo
costumeiramente impagável Steve Buscemi), um homem cansado de perder dinheiro
que não titubeou em aceitar uma mão de obra barata e tão dedicada. Ao longo do
processo, Charlie começa a criar um singelo vínculo com o cavalo Lean On Pete,
um animal tratado com desdém pelo seu treinador que parecia não ter muito mais
a oferecer ao mundo das corridas. Quando tudo parecia caminhar muito bem para
ele, no entanto, uma dolorosa notícia cai como uma bomba na sua rotina, levando
Charley a dar voz ao seu lado mais imaturo na tentativa de estender um vínculo
que nitidamente já estava próximo do seu fim.
Com base num ‘plot’ aparentemente
requentado, Andrew Haigh se apropria do formato ‘coming of age movie’ com
singularidade ao desconstruir o seu protagonista perante o público. Ao invés
de, como a maioria, construir uma típica história de amadurecimento, o
realizador surpreende ao inverter a lógica do subgênero, investigando a psique
de um personagem aparentemente pronto para a vida diante de uma daquelas
notícias capazes de derrubar até os mais durões. Ao longo da primeira hora de
projeção conhecemos a face mais equilibrada de Charley, um garoto educado,
prestativo, capaz de segurar a barra do seu desajustado pai sem perder o foco.
Confesso, inclusive, que cheguei a duvidar que estava assistindo a uma obra do
mesmo diretor do angustiante 45 Anos, tamanho o nível de familiaridade impresso
em tela. Sem um pingo de pressa, ele faz um precioso uso da abordagem
naturalista ao estabelecer os elos de amizade do garoto, a relação de
companheirismo com o seu querido pai, a inesperada parceria com um cansado
criador de cavalos, o vínculo de afeto com o arredio Pete. Tudo soa muito
verdadeiro e positivamente previsível, como se estivéssemos perante uma daquelas
histórias reais de superação frequentemente adaptadas em Hollywood. Nas
entrelinhas, porém, as coisas começam a mudar gradativamente. Antes mesmo do repentino
ponto de ruptura, Haigh é cuidadoso ao dar voz a “criança” por trás da persona
madura, ao se aprofundar na relação de cumplicidade entre Charley e o animal.
Um vínculo claramente incompatível com o mundo em que vivemos. Algo que fica nítido quando o longa começa a mostrar as suas verdadeiras intenções.
Embora a primeira metade do longa
funciona a contento, realçando as nuances sentimentais\familiares de Charley
com comedimento e poder de síntese, é na sua segunda metade que A Rota Selvagem
finalmente despe o seu protagonista diante da realidade dos fatos. No momento
em que ele precisa se expor, Andrew Haigh é perspicaz ao trazer a imaturidade
para o centro da tela, ao mostrar a reação de um garoto comum incapaz de lidar
com os fatos a sua volta. Indo de encontro aos típicos filmes sobre o elo entre
humanos e animais, o realizador não se sente seduzido pela face mais adocicada
da premissa. Por mais que, visualmente, o longa extraia o máximo desta
inusitada parceria através de enquadramentos plásticos e de gosto refinado,
Haigh escancara a todo minuto que as coisas não caminham bem para o
protagonista. Que existe algo muito errado nesta desesperada tentativa de fuga rumo
a um destino incerto. Guiado pela soberba performance do promissor Charlie
Plummer, magnífico ao gradativamente externar a vulnerabilidade de um tipo
aparentemente forte com vigor e introspecção, o diretor provoca ao encontrar na relação entre ele e o seu cavalo a ponte perfeita
para o seu “eu” lúdico.
A partir de inspirados monólogos,
o longa é cuidadoso ao entender o estado emocional do adolescente, a sua
infantilizada maneira de encarar os fatos, usando a sua inconsequência para
mostrar o quão dura pode ser a realidade e o quão despreparado ele estava para
enfrenta-la. Plummer, aliás, segura o filme sozinho no “laço” em muitos
momentos, mostrando um escopo dramático digno dos melhores elogios. Sem querer
revelar muito, Haigh é especialmente enfático ao pintar na tela a sequela
máxima dos seus passos em falsos, escancarando a face mais errática de Charley
numa sequência contundente e desoladora. Uma cena que, verdade seja dita, já
vinha sendo desenhada há algum tempo dentro da película, muito em função do
virtuosismo estético do diretor em usar as cores da vistosa fotografia
avermelhada de Magnus Nordenhof Jønck (Noite de Lobos) como uma espécie de
alerta. Na verdade, tirando o máximo proveito dos focos de luz presentes no set
de filmagens (lanternas, faróis, postes de rua), Haigh esbanja categoria ao por
vezes se contentar em mostrar apenas a expressão do seu comandado,
estabelecendo a crescente sensação de solidão e vulnerabilidade de Charley com uma crueza refinada.
Incapaz de se render aos
melodramas, vide o contido e comovente clímax, A Rota Selvagem causa um impacto singular ao tratar a jornada de amadurecimento de um jovem como um processo efêmero e
extremamente duro. Por mais que o longa flerte esporadicamente com
algumas soluções convenientes, Andrew Haigh é cuidadoso romper com a geralmente
linear narrativa dos ‘coming of age movies’, expondo a realidade como ela é ao
narrar as desventuras emocionais de um garoto aparentemente maduro que cansou
de perder aquilo que amava. Um filme que, embora recheado de predicados
estéticos e narrativos, envolve ao valorizar a imprevisibilidade do mundo em
que vivemos, testando as nossas expectativas ao nem sempre entregar aquilo que
o argumento parecia sugerir.
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