quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A Rota Selvagem

Um ‘coming of age movie’ as avessas

Um dos subgêneros mais populares dentro do revigorado cinema ‘indie’ atual, os ‘coming of age movies’ recuperaram nos últimos anos o prestígio que parecia ter ficado para trás na década de 1980. Obras do quilate de Eu, Você e a Garota que Vai Morrer (2015), Quase 18 (2016), Moonlight (2016), Lady Bird (2017) e Com Amor, Simon (2018) não me deixam mentir. Os dilemas da juventude voltaram a ser tratados com inteligência em filmes sensíveis, de alcance universal, culminando numa safra de títulos respeitados que tem se renovado ano após ano. O que fica bem claro com o mais novo integrante desta seleta lista, o desconcertante A Rota Selvagem (Lean on Pete, no original). A rigor, os populares filmes sobre o amadurecimento seguem uma linha geralmente comum. Estamos diante de personagens imaturos, por vezes erráticos, que devido a algum conflito se veem obrigados a aprender com os seus erros, a crescer e se preparar para o voraz mundo em que vivemos. Uma estrutura que, ao menos aqui, é sabiamente subvertida. Dirigido pelo intenso Andrew Haigh, o mesmo do pesado romance dramático 45 Anos (2015), o longa estrelado pelo promissor Charlie Plummer causa um inegável desconforto ao inverter as coisas, refletindo sobre o devastador impacto do desamparo na rotina de um adolescente precoce e consciente. Um ‘coming of age movie’ as avessas que, embora parta de uma premissa reconhecível, testa as nossas expectativas ao mostrar o choque de realidade sob a perspectiva de alguém que num momento chave da sua vida percebeu que era cedo demais para encarar o mundo adulto de peito aberto. 



Com roteiro assinado por Andrew Haigh, ao lado de Willy Vlautin, A Rota Selvagem abraça a imprevisibilidade da vida real ao se dividir em duas metades completamente distintas. Com a nítida intenção de fisgar a atenção do público através de um arco reconhecível, o realizador preza inicialmente pela delicadeza ao narrar a jornada do maduro Charley (Plummer), um garoto de quinze anos que, diante das constantes ausências do seu relapso pai (vivido com complexidade por Travis Fimmel), se viu obrigado a arregaçar as mangas durante as férias. Entusiasmado ao descobrir que a alguns quilômetros da sua casa existia um hipódromo, o jovem decide se oferecer para ajudar o criador de cavalos Del (interpretado pelo costumeiramente impagável Steve Buscemi), um homem cansado de perder dinheiro que não titubeou em aceitar uma mão de obra barata e tão dedicada. Ao longo do processo, Charlie começa a criar um singelo vínculo com o cavalo Lean On Pete, um animal tratado com desdém pelo seu treinador que parecia não ter muito mais a oferecer ao mundo das corridas. Quando tudo parecia caminhar muito bem para ele, no entanto, uma dolorosa notícia cai como uma bomba na sua rotina, levando Charley a dar voz ao seu lado mais imaturo na tentativa de estender um vínculo que nitidamente já estava próximo do seu fim.


Com base num ‘plot’ aparentemente requentado, Andrew Haigh se apropria do formato ‘coming of age movie’ com singularidade ao desconstruir o seu protagonista perante o público. Ao invés de, como a maioria, construir uma típica história de amadurecimento, o realizador surpreende ao inverter a lógica do subgênero, investigando a psique de um personagem aparentemente pronto para a vida diante de uma daquelas notícias capazes de derrubar até os mais durões. Ao longo da primeira hora de projeção conhecemos a face mais equilibrada de Charley, um garoto educado, prestativo, capaz de segurar a barra do seu desajustado pai sem perder o foco. Confesso, inclusive, que cheguei a duvidar que estava assistindo a uma obra do mesmo diretor do angustiante 45 Anos, tamanho o nível de familiaridade impresso em tela. Sem um pingo de pressa, ele faz um precioso uso da abordagem naturalista ao estabelecer os elos de amizade do garoto, a relação de companheirismo com o seu querido pai, a inesperada parceria com um cansado criador de cavalos, o vínculo de afeto com o arredio Pete. Tudo soa muito verdadeiro e positivamente previsível, como se estivéssemos perante uma daquelas histórias reais de superação frequentemente adaptadas em Hollywood. Nas entrelinhas, porém, as coisas começam a mudar gradativamente. Antes mesmo do repentino ponto de ruptura, Haigh é cuidadoso ao dar voz a “criança” por trás da persona madura, ao se aprofundar na relação de cumplicidade entre Charley e o animal. Um vínculo claramente incompatível com o mundo em que vivemos. Algo que fica nítido quando o longa começa a mostrar as suas verdadeiras intenções.


Embora a primeira metade do longa funciona a contento, realçando as nuances sentimentais\familiares de Charley com comedimento e poder de síntese, é na sua segunda metade que A Rota Selvagem finalmente despe o seu protagonista diante da realidade dos fatos. No momento em que ele precisa se expor, Andrew Haigh é perspicaz ao trazer a imaturidade para o centro da tela, ao mostrar a reação de um garoto comum incapaz de lidar com os fatos a sua volta. Indo de encontro aos típicos filmes sobre o elo entre humanos e animais, o realizador não se sente seduzido pela face mais adocicada da premissa. Por mais que, visualmente, o longa extraia o máximo desta inusitada parceria através de enquadramentos plásticos e de gosto refinado, Haigh escancara a todo minuto que as coisas não caminham bem para o protagonista. Que existe algo muito errado nesta desesperada tentativa de fuga rumo a um destino incerto. Guiado pela soberba performance do promissor Charlie Plummer, magnífico ao gradativamente externar a vulnerabilidade de um tipo aparentemente forte com vigor e introspecção, o diretor provoca ao encontrar na relação entre ele e o seu cavalo a ponte perfeita para o seu “eu” lúdico.


A partir de inspirados monólogos, o longa é cuidadoso ao entender o estado emocional do adolescente, a sua infantilizada maneira de encarar os fatos, usando a sua inconsequência para mostrar o quão dura pode ser a realidade e o quão despreparado ele estava para enfrenta-la. Plummer, aliás, segura o filme sozinho no “laço” em muitos momentos, mostrando um escopo dramático digno dos melhores elogios. Sem querer revelar muito, Haigh é especialmente enfático ao pintar na tela a sequela máxima dos seus passos em falsos, escancarando a face mais errática de Charley numa sequência contundente e desoladora. Uma cena que, verdade seja dita, já vinha sendo desenhada há algum tempo dentro da película, muito em função do virtuosismo estético do diretor em usar as cores da vistosa fotografia avermelhada de Magnus Nordenhof Jønck (Noite de Lobos) como uma espécie de alerta. Na verdade, tirando o máximo proveito dos focos de luz presentes no set de filmagens (lanternas, faróis, postes de rua), Haigh esbanja categoria ao por vezes se contentar em mostrar apenas a expressão do seu comandado, estabelecendo a crescente sensação de solidão e vulnerabilidade de Charley com uma crueza refinada.


Incapaz de se render aos melodramas, vide o contido e comovente clímax, A Rota Selvagem causa um impacto singular ao tratar a jornada de amadurecimento de um jovem como um processo efêmero e extremamente duro. Por mais que o longa flerte esporadicamente com algumas soluções convenientes, Andrew Haigh é cuidadoso romper com a geralmente linear narrativa dos ‘coming of age movies’, expondo a realidade como ela é ao narrar as desventuras emocionais de um garoto aparentemente maduro que cansou de perder aquilo que amava. Um filme que, embora recheado de predicados estéticos e narrativos, envolve ao valorizar a imprevisibilidade do mundo em que vivemos, testando as nossas expectativas ao nem sempre entregar aquilo que o argumento parecia sugerir.



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