sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Bird Box

Menos crônica social, mais tensão

Adaptação do livro homônimo do escritor Josh Malerman, Bird Box é uma “colcha de retalhos” que funciona. Superficial enquanto crônica social\materna, o longa dirigido pela competente Susane Bier (Em Um Mundo Melhor) compensa ao investir num clima de constante tensão e num roteiro capaz de sustentar a sensação de perigo até o fim. Embora flerte com o melodrama no seu terço final e com inúmeras conveniências narrativas ao longo de toda a obra, a realizadora é perspicaz buscar inspiração em diversos outros títulos do gênero, extraindo o máximo do seu gabaritado elenco na construção de um thriller pós-apocalíptico enervante. 

A rigor, Bird Box (ou Caixa de Pássaros no Brasil) não esconde de ninguém as suas referências. Num esperto processo de reciclagem, Susana Bier sustenta a sua obra em soluções exploradas em outros filmes do segmento, o que fica bem claro quando nos deparamos com a ameaça invisível\subjetiva claramente inspirada no clássico Evil Dead (1981), com a alegoria social muito semelhante a proposta em Ensaio sobre a Cegueira (2008), com o efeito autoflagelador que remete quase que instantaneamente ao incompreendido Fim dos Tempos (2008) e (claro!) com o clima de terror sensorial do recente Um Lugar Silencioso (2018). E eu não vejo nenhum problema nisso. Muito pelo contrário. Uma das virtudes do longa está justamente na capacidade da diretora em criar a partir de fórmulas reconhecíveis, revigorando o clima de tensão ao potencializar a sensação de ameaça invisível. Uma solução por si só corajosa.



Impecável ao criar uma atmosfera de vulnerabilidade e perigo iminente, Bird Box esbarra parcialmente, entretanto, nas dificuldades de se adaptar uma obra literária para uma outra mídia como a cinematográfica. Por mais que a opção de investir numa narrativa não linear funcione muito bem, interligando o passado e o presente de maneira sempre insinuante, o argumento assinado por Eric Heisserer (do extraordinário A Chegada) patina ao tentar valorizar os inúmeros personagens e a tênue dinâmica entre eles. Logo de cara fica claro que a principal “vítima” desta releitura é a alegoria social contida no texto original. Na verdade, ao longo do impactante primeiro ato, Susane Bier até arranha a casca ao tecer um leve comentário sobre o isolamento e alguns males recorrentes nos grandes centros urbanos (depressão, solidão, individualismo, desesperança), mas não demora muito para o viés crítico se esvair diante da proposta urgente da película. O mesmo, aliás, podemos dizer da crônica materna defendida pelo longa. Embora, aqui, a diretora consiga tirar um melhor proveito do cenário caótico em que a trama está situada, principalmente quando o assunto é a rígida (e densa) relação da impetuosa Mallory (Sandra Bullock) com os seus dois vulneráveis filhos, a falta de tempo para o desenvolvimento dos conflitos mais íntimos da protagonista ecoa diretamente no último ato. Um desfecho levemente melodramático que, mesmo totalmente condizente com o arco da personagem, só atesta a falta de acabamento do roteiro.


Por outro lado, quando se concentra no drama dos seus personagens, Bird Box repara a maior parte dos equívocos citados acima ao extrair o máximo de tensão da disfuncional relação entre estranhos. Ok, alguns personagens são pouco (ou nada) relevantes para o andamento da história. A idosa de bom coração vivida pela talentosa Jackie Weaver, por exemplo, tem pouco a acrescentar. Ainda assim, precisamos elogiar o esforço do argumento e a capacidade de Susane Bier em torna-los importantes uns para os outros. Em estreitar gradativamente os laços entre eles. Em estabelecer as suas personalidades. No melhor estilo A Noite dos Mortos Vivos (1968), o confinamento se torna o agente catalisador da trama, escancarando o melhor e o pior dos multidimensionais personagens. É legal ver como, após o positivamente caótico ato inicial, Bier consegue reduzir o escopo da obra sem sacrificar o clima de tensão. Como se não bastasse a sensação de medo do desconhecido e o clima de desconfiança mútua, a diretora mostra maturidade ao realçar a face mais humana dos protagonistas, ao evitar o clima de selvageria\descontrole gratuito. O que fica bem claro, em especial, quando o assunto é o insensível advogado vivido pelo versátil John Malkovich. Em qualquer outro longa do gênero, ele seria o típico antagonista, o homem vil capaz de colocar seus companheiros em risco em prol da sua própria sobrevivência. Em Bird Box, no entanto, este popular arquétipo dos filmes pós-apocalípticos é tratado com maior cuidado. Não demora muito para percebermos que, por trás dos seus gestos por vezes odiosos, existe alguém preparado para lidar com o mundo que se apresenta, um tipo prático, ora ácido, ora prestativo que se revela o personagem tridimensional do longa. Um elemento que, de certa forma, ajuda a tornar mais convincentes as facilitações narrativas do script ao mostrar que nem todos compactuavam com algumas das estúpidas decisões dos personagens.


Como prometido, no entanto, a força de Bird Box reside na presença de Sandra Bullock. Longe da sua zona de conforto, a eclética atriz mostra escopo dramático ao elevar o nível da sua Mallory. Mesmo limitada pela falta de brechas narrativas, Bullock se impõe na pele de uma mulher cascuda, castigada pela vida, uma personagem introspectiva com nuances emocionais prontamente capturadas por ela. Embora o arco materno dela não se revele tão profundo quanto as prévias sugeriam, Susane Bier compensa ao torna-la uma peça chave no equilíbrio do seu grupo, uma liderança natural que casa perfeitamente com a personalidade da protagonista. Num todo, aliás, a realizadora é cuidadosa ao estabelecer também a reação do grupo a esta enigmática ameaça, o misto de pavor, desespero e resiliência, realçando a fragilidade enquanto os desenvolve individualmente dentro deste ambiente pós-apocalíptico. Apesar da nítida falta de tempo para a construção de arcos mais densos, Bier exibe poder de síntese ao trabalhar o crescente vínculo entre eles, ao tornar as perdas sentidas, as pequenas vitórias comemoradas, um convincente senso de cumplicidade. Além disso, mesmo com um menor espaço dentro da trama, os personagens vividos pelo carismático Lil Hel Howery (Corra!) e pelo intenso Tom Hollander (Piratas no Caribe) ganham o tempo de tela necessário para deixar a sua marca. Na transição para o último, inclusive, Bier é categórica ao expor a consequência da ingenuidade num cenário desolador, dando um bem-vindo rosto ao antagonista em questão.


Se narrativamente Bird Box oscila, visualmente o trabalho de Susane Bier é contundente. Inicialmente, a realizadora dinamarquesa é enfática ao traduzir o caos do primeiro ataque, capturando a sensação de anomia e horror sob uma perspectiva chocante. O mesmo, aliás, podemos dizer das angustiantes sequências em terreno selvagem. Na tentativa de estreitar o vínculo entre público e personagens, ela é perspicaz ao, por diversas vezes, nos vendar também, valorizando o incômodo desenho de som em alguns dos momentos mais enervantes da película. Para dar uma maior sensação de realismo, inclusive, a própria Sandra Bullock dispensou os dublês ao encarar algumas das suas cenas numa espécie de “voo cego”, o que só confere peso a fuga da protagonista rumo a um possível refúgio. O melhor de Susane Bier, porém, nós podemos ver nas cenas mais íntimas, no momento em que os personagens se veem enclausurados numa casa à espera da morte iminente. Numa proposta imersiva, a diretora é astuta ao explorar a falsa sensação de conforto, ao trabalhar as constantes rupturas, indo do horror para o suspense e o drama com desenvoltura. Como não citar, em especial, a enervante sequência do carro, de longe o momento mais original do longa. Somado a isso, Bier é igualmente virtuosa ao criar um inimigo em sua maioria invisível, mas genuinamente assustador, um antagonista implacável cujo o seu status reflexivo reside justamente no mistério que cerca a sua existência. Em um momento chave da película, inclusive, a realizadora é perspicaz ao prestar uma reverência às criaturas “lovecraftianas”, as expondo em sua face animalesca uma única vez sob uma perspectiva estranhamente lúdica.


Contando ainda com a consistente performance de Trevante Rhodes (Moonlight), emanando carisma na pele de um herói humano e corajoso, Bird Box emplaca ao conseguir entregar uma experiência singular a partir de soluções amplamente exploradas dentro do gênero. Embora o argumento deixe passar algumas preciosas oportunidades de ir além, a sensação de paranoia quanto ao cruel ‘modus operandi’ da criatura, por exemplo, é sumariamente esquecida a partir do segundo ato, Susane Bier compensa ao valorizar o instinto de sobrevivência de alguns dos seus reconhecíveis personagens, construindo um cenário pós-apocalíptico muito próximo da nossa realidade. Só não ver quem não quer.

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