Menos crônica social, mais tensão
Adaptação do livro homônimo do
escritor Josh Malerman, Bird Box é uma “colcha de retalhos” que funciona. Superficial
enquanto crônica social\materna, o longa dirigido pela competente Susane Bier
(Em Um Mundo Melhor) compensa ao investir num clima de constante tensão e num
roteiro capaz de sustentar a sensação de perigo até o fim. Embora flerte com o
melodrama no seu terço final e com inúmeras conveniências narrativas ao longo
de toda a obra, a realizadora é perspicaz buscar inspiração em diversos outros
títulos do gênero, extraindo o máximo do seu gabaritado elenco na construção de
um thriller pós-apocalíptico enervante.
A rigor, Bird Box (ou Caixa de
Pássaros no Brasil) não esconde de ninguém as suas referências. Num esperto
processo de reciclagem, Susana Bier sustenta a sua obra em soluções exploradas
em outros filmes do segmento, o que fica bem claro quando nos deparamos com a ameaça
invisível\subjetiva claramente inspirada no clássico Evil Dead (1981), com a
alegoria social muito semelhante a proposta em Ensaio sobre a Cegueira (2008),
com o efeito autoflagelador que remete quase que instantaneamente ao incompreendido
Fim dos Tempos (2008) e (claro!) com o clima de terror sensorial do recente Um
Lugar Silencioso (2018). E eu não vejo nenhum problema nisso. Muito pelo
contrário. Uma das virtudes do longa está justamente na capacidade da diretora
em criar a partir de fórmulas reconhecíveis, revigorando o clima de tensão ao
potencializar a sensação de ameaça invisível. Uma solução por si só corajosa.
Impecável ao criar uma atmosfera
de vulnerabilidade e perigo iminente, Bird Box esbarra parcialmente,
entretanto, nas dificuldades de se adaptar uma obra literária para uma outra
mídia como a cinematográfica. Por mais que a opção de investir numa narrativa
não linear funcione muito bem, interligando o passado e o presente de maneira
sempre insinuante, o argumento assinado por Eric Heisserer (do extraordinário A
Chegada) patina ao tentar valorizar os inúmeros personagens e a tênue dinâmica
entre eles. Logo de cara fica claro que a principal “vítima” desta releitura é
a alegoria social contida no texto original. Na verdade, ao longo do impactante
primeiro ato, Susane Bier até arranha a casca ao tecer um leve comentário sobre
o isolamento e alguns males recorrentes nos grandes centros urbanos (depressão,
solidão, individualismo, desesperança), mas não demora muito para o viés
crítico se esvair diante da proposta urgente da película. O mesmo, aliás,
podemos dizer da crônica materna defendida pelo longa. Embora, aqui, a diretora
consiga tirar um melhor proveito do cenário caótico em que a trama está
situada, principalmente quando o assunto é a rígida (e densa) relação da
impetuosa Mallory (Sandra Bullock) com os seus dois vulneráveis
filhos, a falta de tempo para o desenvolvimento dos conflitos mais íntimos da
protagonista ecoa diretamente no último ato. Um desfecho levemente
melodramático que, mesmo totalmente condizente com o arco da personagem, só
atesta a falta de acabamento do roteiro.
Por outro lado, quando se
concentra no drama dos seus personagens, Bird Box repara a maior parte dos
equívocos citados acima ao extrair o máximo de tensão da disfuncional relação
entre estranhos. Ok, alguns personagens são pouco (ou nada) relevantes para o
andamento da história. A idosa de bom coração vivida pela talentosa Jackie
Weaver, por exemplo, tem pouco a acrescentar. Ainda assim, precisamos
elogiar o esforço do argumento e a capacidade de Susane Bier em torna-los
importantes uns para os outros. Em estreitar gradativamente os laços entre
eles. Em estabelecer as suas personalidades. No melhor estilo A Noite dos
Mortos Vivos (1968), o confinamento se torna o agente catalisador da trama,
escancarando o melhor e o pior dos multidimensionais personagens. É legal ver
como, após o positivamente caótico ato inicial, Bier consegue reduzir o escopo
da obra sem sacrificar o clima de tensão. Como se não bastasse a sensação de
medo do desconhecido e o clima de desconfiança mútua, a diretora mostra
maturidade ao realçar a face mais humana dos protagonistas, ao evitar o clima
de selvageria\descontrole gratuito. O que fica bem claro, em especial, quando o
assunto é o insensível advogado vivido pelo versátil John Malkovich. Em
qualquer outro longa do gênero, ele seria o típico antagonista, o homem vil
capaz de colocar seus companheiros em risco em prol da sua própria
sobrevivência. Em Bird Box, no entanto, este popular arquétipo dos filmes
pós-apocalípticos é tratado com maior cuidado. Não demora muito para percebermos
que, por trás dos seus gestos por vezes odiosos, existe alguém preparado para
lidar com o mundo que se apresenta, um tipo prático, ora ácido, ora prestativo
que se revela o personagem tridimensional do longa. Um elemento que, de
certa forma, ajuda a tornar mais convincentes as facilitações narrativas do script
ao mostrar que nem todos compactuavam com algumas das estúpidas decisões dos
personagens.
Como prometido, no entanto, a
força de Bird Box reside na presença de Sandra Bullock. Longe da sua zona de
conforto, a eclética atriz mostra escopo dramático ao elevar o nível da sua
Mallory. Mesmo limitada pela falta de brechas narrativas, Bullock se impõe na
pele de uma mulher cascuda, castigada pela vida, uma personagem introspectiva com
nuances emocionais prontamente capturadas por ela. Embora o arco materno dela não
se revele tão profundo quanto as prévias sugeriam, Susane Bier compensa ao torna-la
uma peça chave no equilíbrio do seu grupo, uma liderança natural que casa
perfeitamente com a personalidade da protagonista. Num todo, aliás, a
realizadora é cuidadosa ao estabelecer também a reação do grupo a esta
enigmática ameaça, o misto de pavor, desespero e resiliência, realçando a
fragilidade enquanto os desenvolve individualmente dentro deste
ambiente pós-apocalíptico. Apesar da nítida falta de tempo para a construção de
arcos mais densos, Bier exibe poder de síntese ao trabalhar o crescente
vínculo entre eles, ao tornar as perdas sentidas, as pequenas vitórias
comemoradas, um convincente senso de cumplicidade. Além disso, mesmo com um
menor espaço dentro da trama, os personagens vividos pelo carismático Lil Hel
Howery (Corra!) e pelo intenso Tom Hollander (Piratas no Caribe) ganham o tempo
de tela necessário para deixar a sua marca. Na transição para o último,
inclusive, Bier é categórica ao expor a consequência da ingenuidade num
cenário desolador, dando um bem-vindo rosto ao antagonista em questão.
Se narrativamente Bird Box
oscila, visualmente o trabalho de Susane Bier é contundente. Inicialmente, a
realizadora dinamarquesa é enfática ao traduzir o caos do primeiro ataque, capturando
a sensação de anomia e horror sob uma perspectiva chocante. O mesmo, aliás,
podemos dizer das angustiantes sequências em terreno selvagem. Na tentativa de
estreitar o vínculo entre público e personagens, ela é perspicaz ao, por
diversas vezes, nos vendar também, valorizando o incômodo desenho de som em
alguns dos momentos mais enervantes da película. Para dar uma maior sensação de
realismo, inclusive, a própria Sandra Bullock dispensou os dublês ao encarar
algumas das suas cenas numa espécie de “voo cego”, o que só confere peso a fuga
da protagonista rumo a um possível refúgio. O melhor de Susane Bier, porém, nós
podemos ver nas cenas mais íntimas, no momento em que os personagens se veem
enclausurados numa casa à espera da morte iminente. Numa proposta imersiva, a diretora
é astuta ao explorar a falsa sensação de conforto, ao trabalhar as constantes
rupturas, indo do horror para o suspense e o drama com desenvoltura. Como não
citar, em especial, a enervante sequência do carro, de longe o momento mais
original do longa. Somado a isso, Bier é igualmente virtuosa ao criar um inimigo
em sua maioria invisível, mas genuinamente assustador, um antagonista
implacável cujo o seu status reflexivo reside justamente no mistério que cerca a sua
existência. Em um momento chave da película, inclusive, a realizadora é perspicaz
ao prestar uma reverência às criaturas “lovecraftianas”, as expondo em sua
face animalesca uma única vez sob uma perspectiva estranhamente lúdica.
Contando ainda com a consistente
performance de Trevante Rhodes (Moonlight), emanando carisma na pele de um
herói humano e corajoso, Bird Box emplaca ao conseguir entregar uma experiência
singular a partir de soluções amplamente exploradas dentro do gênero. Embora o
argumento deixe passar algumas preciosas oportunidades de ir além, a sensação
de paranoia quanto ao cruel ‘modus operandi’ da criatura, por exemplo, é
sumariamente esquecida a partir do segundo ato, Susane Bier compensa ao
valorizar o instinto de sobrevivência de alguns dos seus reconhecíveis personagens,
construindo um cenário pós-apocalíptico muito próximo da nossa realidade. Só não ver quem não quer.
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