Ciência e romance se misturam num Sci-Fi que não subestima a inteligência do público
Pegue uma pitada da visão de futuro idealizada pelo icônico Blade Runner (1982), tempere com uma generosa dose do imersivo debate ético proposto pelo ‘cult’ Ex-Machina (2014) e misture com o palatável molho “pipoca” do divertido A Ilha (2005). Desta “sopa Sci-Fi” nasce o intrigante Órbita 9, um projeto pequeno e valoroso que, apesar da sua premissa requentada, consegue equilibrar razão e emoção sem subestimar a inteligência do espectador. Sem sacrificar as regras básicas do gênero, o longa espanhol dirigido por Hatem Khraiche transita entre a ficção científica e o romance com satisfatória propriedade, se distanciando das soluções fáceis ao explorar os conflitos morais e afetivos por trás de uma relação proibida. Embora não tenha a profundidade do mais recente sucesso do gênero, o inquietante Aniquilação (2018), a mais nova produção original Netflix é sucinta ao jogar uma nova luz sobre temas recorrentes dentro do segmento, indo além dos seus espertos ‘plot twists’ e do competente argumento ao questionar – dentre outras coisas – a nossa pretensa superioridade diante dos experimentos científicos.
E já começo com um alerta. Fuja do trailer de Órbita 9! Por mais que o roteiro assinado pelo próprio Hatem Khraiche não se sustente única e exclusivamente nas suas reviravoltas, a prévia se precipita ao expor alguns dos segredos da trama, uma opção que, indiscutivelmente, reduz o impacto da película como um todo. Isso porque, embora recicle algumas situações de outros populares filmes do gênero, o realizador é cuidadoso ao “refrescá-las” aos olhos do público. Ao dar uma roupagem particular a uma história muitas vezes já contada. Preocupado em dialogar tanto com a audiência passageira, quanto com o espectador mais experimentado dentro do gênero, Khraiche investe numa abordagem acessível, em diálogos descomplicados e num argumento capaz de saciar as suas respostas com paciência\propriedade ao longo das fluídas 1 h e 35 min de projeção. Não espere, portanto, explicações elaboradas (e muitas vezes desnecessárias) sobre teorias e as motivações dos protagonistas. O foco, aqui, não está no passado, no que os colocou naquela situação, mas no futuro, na consequência dos seus atos. Em nenhum momento, na verdade, me senti ofendido com as soluções propostas pelo longa, muito em função do esmero do diretor ao, mesmo se tratado de uma obra voltada para o grande público, respeitar a lógica científica e as intenções dos personagens. As respostas, por sinal, são bem claras, mesmo quando, propositalmente e acertadamente, não só jogadas na “cara” do público. Uma postura corajosa que, a critério de comparação, passou longe de um recente título do gênero, o frustrante Passageiros (2017).
Impecável ao estabelecer uma visão de futuro barata e completamente reconhecível, as novidades são plausíveis (fechaduras ‘hi-tech’, portas dobráveis, biometria, TV’s holográficas, letreiros em neon) e permeiam o cenário com discrição, Hatem Khraiche nos leva para um futuro não muito distante em que a nossa subsistência na Terra está ameaçada. Diante da iminente crise climática e de recursos naturais, uma organização espanhola decidiu mandar uma nave colonizadora para o espaço, mais precisamente para o planeta Celeste, um possível destino para os sobreviventes do nosso planeta. Nela estava a solitária Helena (Clara Lago), uma astronauta que nasceu dentro da nave e viveu só ao lado dos seus pais durante dezenove anos. Sozinha desde que eles tiveram que se sacrificar em função de um problema técnico, ela aprendeu a viver numa rotina regrada, temendo pelo fim do oxigênio enquanto espera por ajuda. A sua situação de inércia, porém, é alterada quando ela recebe a visita de Álex (Álex Gonzales), um engenheiro técnico enviado pelos seus superiores para solucionar o mal funcionamento da sua nave. Ciente de que esse poderia ser o único contato com um ser humano nos próximos vinte anos, tempo que duraria a sua viagem até Celeste, Helena decide se envolver com este estranho visitante. Ela, porém, sequer desconfiava que o temporário novo tripulante era um dos poucos a conhecer os segredos por trás da sua verdadeira missão.
Dividido em três atos bem definidos, Hatem Khraiche acerta ao reservar o hermético terço inicial para a introdução dos protagonistas e a construção da relação entre eles. Embora não se envergonhe em explorar elementos típicos do Romance, o casal, por exemplo, nasce de maneira quase que instantânea, o realizador foge do lugar-comum ao tratar esta repentina aproximação dentro de um contexto mais físico. Ao se concentrar inicialmente no aspecto micro, um fato raro no gênero, o argumento é habilidoso ao introduzir a personalidade dos personagens, o ‘background’ dramático e os óbvio motivo que os uniu. Sem querer revelar muito, Khraiche esbanja perspicácia ao não prolongar o envolvente primeiro ato, culminando numa reviravolta intrigante e genuinamente inesperada. Isso, verdade seja dita, se você não tiver assistido ao desastrado trailer. É no robusto segundo ato, entretanto, que o argumento consegue encontrar um bem-vindo meio termo entre o viés romântico e a ficção científica. Muito mais do que um mero herói\galã, o introspectivo Alex se revela um tipo bem mais denso do que a trama poderia sugerir, uma figura com traumas passados que ajudam a explicar as suas motivações. Com dinamismo e poder de síntese, Khraiche consegue não só investigar os dilemas afetivos em torno desta complexa relação, como também se aprofundar no elemento Sci-Fi, revelando gradativamente os segredos em torno de Helena enquanto se debruça sobre os conflitos éticos propostos pela trama. Quanto vale uma vida humana? Quais são os perigos da manipulação? O sacrifício de uns é justificável perante um “bem maior”? Através destas indagações, na verdade, Khraiche aponta a sua mira tanto para o dúbio ‘modus operandi’ por trás de algumas experiências científicas, quanto para a nossa péssima relação com o meio ambiente. Uma opção que, indiscutivelmente, ajuda a movimentar as engrenagens da trama e a espinhosa relação entre Alex e Helena rumo ao possivelmente divisivo último ato. Antes disso, no entanto, alguns destes questionamentos ganham forma através de soluções\diálogos exageradamente expositivos, um problema que, de certa forma, evidencia a falta de orçamento e as limitações impostas por uma produção ‘indie’. Vide o design da nave da protagonista, uma concepção artificial e um tanto quanto genérica que, propositalmente ou não, se torna perdoável diante do rumo que a película toma a partir do segundo ato.
Quando o longa parecia caminhar para um desfecho mais comercial, impulsionado pela tensa sequência coestrelada pela talentosa Belen Rueda, Órbita 9 resolve testar as expectativas do público ao investir num último ato bem mais racional. Na contramão dos dois primeiros atos, Hatem Khraiche pende de vez para o Sci-Fi, se esquivando das soluções fáceis ao tratar a situação do casal da maneira mais plausível possível. Indo de encontro aos já citados A Ilha e Passageiros, o realizador opta (corajosamente) por respeitar o viés lógico da ficção científica, tornando as decisões dos personagens (protagonistas ou não) totalmente compreensíveis. Goste ou não, as decisões são as mais verossímeis possíveis dentro do contexto proposto pelo longa. O problema, entretanto, não está no clímax em si, mas na sinceridade da mensagem final. Sem querer revelar muito, o roteiro aposta numa solução frágil na hora de pontuar a trama, uma sequência final agridoce que me soou mais pessimista do que o filme tenta vender. Por falar em honestidade, o desenrolar da relação entre Alex e Helena também não se revela tão convincente assim. Embora os dois personagens funcionem a contento isoladamente, a química do casal não é das melhores, o que, de fato, reduz o impacto do último ato. Menos mal que, tanto a expressiva Clara Lago, quanto o intenso Alex González conseguem capturar as nuances dos seus respectivos personagens, refletindo os seus traumas, os seus anseios e os seus medos com propriedade. Nos momentos mais românticos, aliás, Khariche é sutíl ao construir as delicadas sequências íntimas, fazendo um belo uso das sombras e do contraluz ao extrair o melhor dos dois atores. Ponto para a azulada fotografia fria de Pau Esteve Birba (Reviver), sóbria ao explorar o uso do neon (numa reverência clara ao clássico Blade Runner) num cenário realístico.
Embora escorregue no terreno do sentimentalismo por um ou dois momentos, Órbita 9 instiga ao encontrar um singular meio termo entre o romance e o Sci-Fi, fazendo jus às suas referências ao defender o aspecto mais universal do gênero. Com personagens inteligentes, um roteiro sólido e uma plausível visão de futuro, Hatem Khraiche não foge da raia ao refletir sobre a face mais negligente das experiências cientificas, saindo em defesa que alguns limites não podem ser ultrapassados mesmo sob a “desculpa” da manutenção da espécie humana.
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