sexta-feira, 24 de abril de 2020

Crítica | Resgate (Extraction)

Cinema de ação raiz

“Quero todas as armas da cidade apontada para este rosto”, sentencia um raivoso narcotraficante segurando a foto do mercenário interpretado por Chris Hemsworth em dado momento de Resgate. O tipo de frase capaz de definir o tom da mais nova e empolgante produção original Netflix. Estamos diante do filme de ação raiz que a gigante do streaming sempre procurou e finalmente encontrou. Embora fuja do lugar comum ao conferir nuances humanas aos seus principais personagens, o virtuoso longa dirigido pelo estreante Sam Hargrave revitaliza o popular conceito do “exército de um homem só” ao trazer uma pitada de vulnerabilidade a esta agressiva história de redenção e sobrevivência. Como se John Rambo (Sylvester Stallone) e John McLane (Bruce Willis) fossem fundidos num anti-herói carismático, ‘bad-ass’, absolutamente letal e... sensível. Com o luxuoso suporte dos Irmãos Russo (Vingadores: Ultimato), o promissor cineasta repete os passos da dupla David Leitch (Atômica) e Chad Stahelski (John Wick 2) ao levar a sua experiência como coordenador de dublês para o centro da tela, nos brindando com alguns dos embates físicos mais viscerais e (pasmem) bem filmados dos últimos anos. Desde o magnífico Operação Invasão (2011) não me sentia tão “acuado” diante de um título do gênero. 



Como um genuíno representante do cinema de ação raiz, Resgate se sustenta num fiapo de trama funcional e objetivo. O filho de um traficante indiano (Rudhraksh Jaiswal) é sequestrado pelo seu rival tailandês. Com o dinheiro congelado pelo governo, o ameaçador criminoso decide contratar os serviços de um grupo de mercenários liderados por Taylor (Chris Hemsworth) para resgatá-lo. A complexa missão de extração, no entanto, ganha contornos ainda mais dramáticos quando um terceiro elemento (Randeep Hooda) decide entrar na parada e atrapalhar os planos do grupo. Em suma, temos um homem, um garoto, um exército interminável de bandidos e uma fuga mirabolante. O tipo de ‘plot’ que costuma servir muito bem ao gênero, principalmente quando operado por quem sabe da coisa. E Sam Hargrave sabe o que está fazendo. No que diz respeito ao aspecto narrativo, o realizador se apropria de algumas clássicas convenções do gênero com sagacidade disposto a conferir um peso maior aos seus personagens. O roteiro assinado por Joe Russo enxerga no cenário desigual (e na natureza ambígua dos seus protagonistas) a oportunidade de preencher a trama com conflitos mais densos. O drama familiar embutido no texto surge como um elo entre os personagens. Sem querer revelar muito, a interessante dinâmica entre o traumatizado Taylor e o obstinado Saju, o terceiro elemento citado anteriormente, traz um frescor para a ação. Ao enxergá-los como mais do que meras máquinas de matar, Hargrave torna tudo mais pessoal e instigante. As motivações dos dois vão além da extração.


O melhor de Resgate, na verdade, está neste inesperado embate e nas consequências dele. Por mais que o ‘star power’ de Chris Hemsworth seja imbatível, Sam Hargrave é habilidoso ao colocar Taylor e Saju em condição de igualdade dentro da trama. Ele não surge em cena como um simples agrado ao público indiano. Vou além. É na figura do enigmático guarda costas que reside o grande fato novo do longa. Estamos diante de um personagem complexo, com uma carga dramática interessante e um genuíno senso de humanidade. Algo que se reflete também na construção de Taylor. Embora bem mais genérico, o arco familiar do protagonista solidifica o elo entre ele e o seu “pacote”, o simpático Ovi, permitindo que o público consiga criar uma sincera conexão entre os dois. Um predicado que ajuda a contornar a perceptível queda de ritmo da segunda metade da obra. Após um início quase fulminante, Hargrave derrapa nas brechas narrativas, nas conveniências que nascem delas e na precipitação. Personagens como o previsível Gaspar (David Harbour) e a pragmática Nik (Golshifteh Farahani) mereciam um tempo de tela maior para se tornarem compreensíveis. A relação entre Taylor e Nik, por sinal, se revela o ponto mais problemático do script, principalmente por nunca conseguir estabelecer a contento a força do sentimento que os unia. 


Deslizes perceptíveis que se tornam quase que irrelevantes no momento em Resgate assume a sua singular face brucutu. Há tempos eu não via sequências de luta tão pesadas e ao mesmo tempo tão bem coreografadas. A cada soco dado\levado por Chris Hemsworth nós sentimos parte da dor conferida\sentida pelo personagem. A ação é visceral e agressiva. Com nítida experiência no gênero, Sam Hargrave traduz a letalidade do protagonista da forma mais tática possível. Tal qual o diretor, Taylor sabe o que está fazendo. Num ‘mise en scene’ fantástico, o cineasta cria um balé violento recheado de fluídos planos sequenciais. Os cortes, muitas vezes imperceptíveis, interligam os takes com espantoso sincronismo, tornando tudo o mais real e dinâmico possível. Destaque para a quente e espantosamente imagética fotografia de Newton Thomas (Drive). A verossimilhança, aqui, extrai o sentido do caos milimetricamente desenhado por Hargrave. Sem querer revelar muito, a cena de perseguição (no melhor estilo Filhos da Esperança) que se conecta com a fuga dentro de um prédio é uma aula de cinema de ação. O diretor, por sinal, mostra repertório ao capturar as suas impactantes coreografias de luta com um misto de plasticidade e espontaneidade cada vez mais raro dentro do segmento. Um trunfo que, verdade seja dita, merece ser dividido com a performance física de todo o elenco, em especial de Chris Hemsworth e Randeep Hooda. Além de carisma e intensidade, a dupla esbanja também energia nos confrontos corpo a corpo, entregando o material que Hargrave precisava para compor os seus eloquentes planos sequência. Outro ponto que agrada, e muito, é o expressivo design de som, fundamental nas elétricas cenas de tiroteio.


Embora escorregue no terreno do sentimentalismo no terço final, Resgate mostra que a Netflix pode finalmente ter encontrado o seu caminho dentro do cinema de ação. Após os divertidos (mas irregulares) Esquadrão 6 e Troco em Dobro, a gigante do streaming finalmente faz jus aos fãs deste combalido segmento com um filme à altura das expectativas criadas. Um mercado que, diga-se de passagem, pode se acomodar tranquilamente no streaming, principalmente diante da falta de espaço\investimento aos olhos dos grandes estúdios.

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