sexta-feira, 6 de março de 2020

Crítica | Troco em Dobro (Spenser)

Infame, mas divertido

O cinema precisa de filmes como Troco em Dobro. Mais do que uma diversão passageira, o novo thriller de ação do diretor Peter Berg surge para nos lembrar a importância de um bom roteiro. No papel, a produção original Netflix tinha tudo para alcançar voos maiores. Mark Wahlberg nasceu para viver este herói cômico às avessas com algo muito maior do que poderia enfrentar. Berg é um realizador competente e sabe abraçar a despretensão quando necessário. O viés irônico da obra funciona quando explora a disfuncional relação entre os protagonistas. O problema é que estamos diante de uma produção em dúvida das suas intenções. Sempre que se distancia do escapismo, Troco em Dobro se revela uma bagunça, com um roteiro recheado de furos, personagens sem motivações sólidas e um senso de ameaça frouxo incompatível com uma premissa sobre corrupção policial nos grandes centros urbanos. 

Enquanto comédia de ação, na verdade, Troco em Dobro funciona a contento. O roteiro assinado pelo experiente Brian Helgeland (Chamas da Vingança), ao lado de Sean O’Keefe, é habilidoso ao estabelecer o senso de integridade do policial pavio curto Spenser (Mark Wahlberg) e a sua indignação diante da impotência. Após espancar o seu chefe e ser preso por isso, ele se vê obrigado a voltar as ruas de Boston totalmente desprotegido. Sem distintivo e contando com a ajuda de um velho amigo, vivido pelo veterano Alan Arkin, Spenser se mete em apuros quando percebe que uma conspiração policial vitimou um inocente. Incomodado com a situação, ele se une ao seu novo parceiro de quarto, o ex-detento lutador Falcão (Winston Duke), na busca por pistas que pudessem escancarar a verdade. Isso, é claro, sem sequer desconfiar que por trás daquela morte estava o pior do crime organizado da sua cidade.


Basta ler a premissa para perceber tanto o potencial de Troco em Dobro, quanto as suas falhas. Spenser é o tipo de personagem que todo fã de cinema de ação se acostumou a amar. É confiante, debochado, vulnerável, agressivo. Em poucos minutos descobrimos o quão perigoso ele pode ser. Enquanto se concentra no retorno deste personagem as ruas, Peter Berg faz jus às expectativas ao flertar com elementos dos ‘buddy cop movies’ com uma dose a mais de irreverência. Spenser não é mais um agente da lei. No mundo real, ele teria bem pouco a acrescentar. Ele nem é tão ameaçador assim aos olhos do crime. É legal ver, inclusive, como o roteiro brinca com os clichês envolvendo a temida figura do ex-policial vingativo. A petulância de Spenser, no entanto, o leva a desafiar policiais corruptos e um perigoso cartel. Num primeiro momento, o realizador mostra perspicácia ao atenuar as coisas com uma dose de comédia e irreverência. Figuras como a expansiva e autossuficiente ex-namorada vivida por Iliza Shlesinger ajudam a redimensionar o protagonista. Em sua primeira metade, por sinal, Troco em Dobro resgatou a lembrança de um dos meus filmes favorito de Mark Wahlberg, o elétrico Tiro e Queda (1998). O aparente escapismo da premissa casava com a falta de motivações, com o deboche para com as reais intenções dos personagens. A piada envolvendo Batman, Robin e Alfred, embora longe de ser nova, ditava o tom jocoso da produção.


O problema é que, à medida que a trama avança, Peter Berg não se contenta em abraçar a galhofa. Quando decide se levar demasiadamente a sério, Troco em Dobro escancara os seus grosseiros conflitos de tom, a total falta de substância do ‘plot’ e a absurda falta de motivações dos protagonistas. Tudo é muito frágil. O elo entre os personagens nunca é justificado. O que explica, por exemplo, o grandalhão Falcão topar entrar numa missão quase suicida? Berg usa e abusa das conveniências narrativas. Spenser age contra tudo e contra todos porque a trama precisa que isso aconteça para andar. Ele não tem qualquer relação com as vítimas, ele não é culpado de nada, ele não é um super-herói capaz de desafiar uma organização criminosa. O altruísmo, aqui, não é o bastante para embasar quase duas horas de trama. O flerte com o drama, em especial, por mais bem-intencionado que seja, também não se sustenta. Existia espaço para a construção de laços mais fortes. A tocante cena em que o "gigante" Falcão ajuda a arrumar o quarto de uma das vítimas da violência policial não me deixa mentir. No fim, porém, Berg não está interessado na jornada de uma família afroamericana. Nem tão pouco em propor uma crítica acerca da inércia estatal diante de óbvios fatos. O foco está na ação escapista. O foco está na adrenalina. Tal qual Esquadrão 6 (2019), Troco em Dobro faz um descuidado uso de mazelas reais. O que, diante do frouxo senso de ameaça do longa, soa um tanto frustrante.


Menos mal que, nos momentos em que abraça a pancadaria desenfreada, Peter Berg entrega um trabalho bem resolvido. A vulnerabilidade de Spenser nas pesadas cenas de luta confere ao protagonista um ar “John McLane” que serve bem ao longa. Um predicado interessante que, combinado com o esperto humor referencial, com a empolgante trilha sonora e com o carisma do talentoso elenco, faz de Troco em Dobro um thriller de ação genérico, mas assistível. Vou além, bastante divertido.


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