domingo, 26 de maio de 2019

Crítica | The Perfection

A hora do contra-ataque

Buscar a perfeição em algo tão subjetivo quanto a arte é algo praticamente impossível. Ao longo de quase onze anos de Cinemaniac, na verdade, eu não me lembro de sequer ter usado este poderoso adjetivo para definir um filme. Até os mais talentosos erram. Consciente disso, The Perfection testa as nossas expectativas ao desvendar o quão tortuoso (e torturante) pode ser a obsessiva busca por algo tão inatingível. Produção original Netflix, o vistoso longa dirigido por Richard Shepard surpreende ao, mesmo transitando por assuntos tão reconhecíveis, não se prender tanto a um contexto verossímil, se equilibrando entre o suspense psicológico e o horror alegórico numa obra que não se envergonha das suas imperfeições. Mesmo com alguns nítidos problemas de acabamento, o imprevisível longa impacta ao permitir que o real e o absurdo caminhem de mãos dadas ao longo de toda a película, elevando gradativamente o nível de tensão ao revelar até onde duas virtuosas da música clássica estavam dispostas a ir para recuperarem algo tão precioso. 



No papel, The Perfection pode até nem soar tão original assim. Recentemente, com premissas bem semelhantes, títulos como Cisne Negro e Whiplash conquistaram as plateias ao redor do mundo ao expor o quão tênue pode ser a linha entre a obsessão e a perfeição. Richard Shepard, no entanto, precisa de poucos minutos para renegar a proposta realista defendida pelos dois filmes citados acima. Com ousadia, um forte poder de insinuação e um invejável pulso narrativo, o realizador fisga o espectador ao num primeiro momento mostrar mais do que dizer. A ideia é atiçar o imaginário do público. É nos colocar em dúvidas sobre o que virá a seguir. Em algumas poucas cenas, por exemplo, ele é sucinto ao estabelecer a desconfortável posição da determinada Charlotte (Allison Williams), uma violoncelista prodigiosa que, devido a repentina doença de sua mãe, se viu obrigada a abandonar o respeitado conservatório em que estudava. Numa montagem brilhante, Shepard captura a angústia da personagem, nos permite entender os motivos que a colocariam em posição de rivalidade com a igualmente talentosa Lizzie (Logan Browning) e prepara o terreno para o seu tão aguardado ‘comeback’. Em menos de cinco minutos as peças são jogadas na mesa, expostas, mas (obviamente) não desvendadas. No momento em que Charlotte se vê “livre”, sabemos que algo vai acontecer, mas não necessariamente o quê.


E este, indiscutivelmente, talvez seja o grande trunfo de The Perfection. Mais do que simplesmente manipular as nossas expectativas, Richard Shepard provoca ao não se contentar somente em proteger os seus segredos. Nem tudo é o que parece ser. Ao invés de polarizar a rixa entre Charlotte e Lizzie, o argumento assinado pelo próprio diretor, ao lado de Eric C. Charmelo e Nicole Snyder, prefere diluir as tintas que separam os protagonistas dos antagonistas. Inicialmente, confesso, achei que o longa fosse seguir um caminho que se tornaria fatalmente previsível. Nojenta e angustiante, toda a passagem envolvendo as duas violoncelistas em território chinês, por exemplo, é facilmente antecipável, sugerindo até certa incapacidade do roteiro em sustentar a ambiguidade do suspense psicológico. Ao se explicar demais e tão cedo, Shepard parecia dar um sinal de franqueza, como se não confiasse na capacidade do público em entender as reais intenções das jovens musicistas. Como disse acima, porém, The Perfection se orgulha das suas imperfeições. O que parecia ser um deslize logo é transformado em virtude quando percebemos as reais intenções do longa. Geralmente eu questiono títulos que “jogam sujo” com o público, que escondem informações importantes acerca dos seus personagens. Aqui, felizmente, temos uma verdadeira aula no que diz respeito ao uso da narrativa em capítulos.


À medida que a trama avança, Richard Shepard brinca com as expectativas do espectador ao adicionar novas informações capazes de redefinir as nossas impressões sobre os fatos anteriores. Por mais que o viés absurdo gradativamente se imponha ao realismo, é interessante ver o esmero do argumento em justificar as atitudes das personagens. Em torna-las plausíveis e compreensíveis. O viés didático, aqui, serve ao propósito da trama, graças principalmente a originalidade com que ganha forma. Tudo se encaixa de maneira orgânica. Impulsionado pela espertíssima montagem, Shepard prepara as suas empolgantes reviravoltas sem sacrificar a explosiva dinâmica entre Charlotte e Lizzie, evitando reduzir tudo ao mero desequilíbrio emocional ao tocar em feridas bem mais profundas. Absorvendo elementos do Suspense Psicológico, dos Thrillers de Vingança, do Cinema Trash e do Horror Social, o longa joga a busca pela perfeição para segundo plano ao escancarar as sequelas causadas neste processo. Numa solução ambiciosa, Shepard esbanja sagacidade ao, à sua peculiar maneira, tecer um comentário ácido sobre a rotina de abusos físicos e emocionais impostas àqueles que querem chegar ao topo. Sem querer revelar muito, ele flerta com elementos alegóricos ao refletir sobre o prazer doentio em torno de uma “flagelante” busca pela perfeição, culminando num clímax agressivo, impiedoso e estilosamente violento. Embora peque pela falta de acabamento narrativo em muitos momentos, em especial no último ato, o resultado final é memorável e casa perfeitamente com o grito de revolta de muitas mulheres cansadas de sacrificar tanto em busca de “aprovação”.


Mesmo nestas passagens mais imperfeitas, porém, The Perfection compensa primeiro com performances poderosas. Enquanto a expressiva Alisson Williams (Corra!) outra vez dá um show de dissimulação ao criar um tipo ora humano e fragilizado, ora vil e reativo, a magnética Logan Browning (olho nela!) causa um misto de sentimentos ao entregar uma personagem imprevisível. Como se não bastasse a soberba química entre elas, as duas incrementam a insinuante dinâmica proposta pelo roteiro ao capturarem com primor o misto de fascínio, desconfiança e identificação que cerca a relação entre Charlotte e Lizzie. Já o segundo grande predicado do longa fica pela singular direção de Richard Shepard. Um nome a ser melhor observado por Hollywood, o eclético cineasta transita por gêneros desafiadores com engenhosidade, valorizando a crescente atmosfera de tensão com enquadramentos refinados e algumas inventivas soluções visuais. O que fica bem claro, por exemplo, dentro do último ato, quando, mesmo sem exibir a brutalidade dos seus personagens, ele consegue um efeito tão (ou mais) desconcertante do que se tivesse banalizado a violência. Fazendo um brilhante uso da justaposição de imagens e dos primeiríssimos planos, é legal ver como Shepard emula o legendário diretor Brian de Palma (Os Intocáveis, Vestida para Matar) com originalidade, encontrando o suspense em situações que necessariamente não soariam tão “nervosas” assim em mãos menos talentosas. Diante do olhar detalhista de Shepard, aliás, chama a atenção o elegante design de produção do longa, totalmente coerente com a proposta “fora da caixinha” da produção.


Com muito a dizer sobre o quão traumática pode ser a luta pela perfeição e (especialmente) sobre os pretensos responsáveis em identificar tamanho grau de virtuosismo, The Perfection extrai o absurdo da realidade ao refletir em tons “agudos” sobre a vulnerável posição daquelas que em busca de um sonho deixaram se levar por uma rotina de pesadelos. Neste sentido, embora a premissa remeta a títulos como os já citados Whiplash e Cisne Negro, Richard Shepard encontra na ferocidade crítica de Corra! (2017) o modelo a ser seguido, indo bem além do contexto musical ao escancarar com uma peculiar veia ‘gore’ o estrago por trás do abuso.

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