sexta-feira, 19 de maio de 2017

Corra!

O filme certo, na hora certa

Lançado no ano de 1967, no auge da luta do Movimento Negro pela igualdade nos EUA, o primoroso Adivinha Quem Vem para o Jantar colocou o dedo na ferida ao expor o preconceito e os tabus por trás de um relacionamento inter-racial. Conduzido com maestria por Stanley Kramer, o longa estrelado por Sidney Poitier, Katharine Houghton, Spencer Tracy e Katharine Hepburn tirou o "elefante da sala" ao abordar as tensões raciais presentes na época sob um prisma franco, amoroso e acima de tudo igualitário. Na verdade, inserido num contexto extremamente hostil, o reflexivo longa preferiu desarmar os ânimos, valorizar o poder do diálogo, escancarando a faceta mais enraizada do preconceito numa obra urgente, universal e inegavelmente singular. Em outras palavras, o filme certo, na hora certa. Eis que, cinquenta anos depois, os conflitos raciais seguem sendo um doloroso problema em solo norte-americano. Apesar das inúmeras transformações sociais e políticas, os relatos de violência e desigualdade não cessaram, mostrando que os debates acerca desta espinhosa questão são ainda hoje extremamente necessários. É reconfortante saber, no entanto, que o Cinema se manteve como um dos mais fortes instrumentos de reflexão sociocultural. E que títulos como o ácido Corra! surgem com a coragem necessária para incomodar e pintar um inusitado relato sobre o preconceito nos EUA. Indo de encontro a proposta amistosa do clássico sessentista citado acima, o longa dirigido e roteirizado por Jordan Peele é cínico ao revelar as desventuras de um jovem negro num ambiente "embranquecido", permitindo que o público experimente o "desconforto" do protagonista dentro de um contexto nervoso, afiado e propositalmente exagerado. Em suma, uma película tensa que, além de dialogar com os anseios das novas audiências, promove uma crítica feroz envolvendo a realidade do afro-americano na terra do Tio Sam.



Instigante do primeiro ao último minuto, Corra! é um daqueles projetos que merecem ter os seus segredos protegidos. Evite, portanto, trailers, sinopses e qualquer tipo de spoiler. Aqui, aliás, vou evitar ao máximo escrever sobre a trama e o desenvolvimento dos personagens. Na verdade, posso contar que o filme acompanha os passos do jovem Chris (Daniel Kaluuya), um fotógrafo talentoso apaixonado pela bela (e branca) Rose (Allison Williams). Completamente envolvido, ele aceita conhecer os pais da sua parceira, o neurocirurgião Dean (Bradley Whitford) e a psiquiatra Missy (Catherine Keener). Inicialmente impressionado com a sua recepção, Chris se depara com alguns fatos estranhos e passa a se sentir um verdadeiro "peixe fora d'água". Pronto, daqui não passo. Até porque, o roteiro assinado por Jordan Peele é cuidadoso ao arquitetar as surpresas em torno deste criativo suspense. Embora o clima de tensão pontue a trama desde a excelente sequência inicial, o realizador envolve ao investir numa proposta gradativa, realçando o aspecto mais crítico do projeto ao expor o preconceito em sua faceta mais velada. Num primeiro momento, inclusive, a tensão nasce de uma aparição repentina, de um diálogo desconfortável. Os tão aguardados 'jump scares' são potencializados pela positivamente desafinada trilha sonora de Michael Abels e pelos agudos efeitos sonoros. Sem um pingo de pressa, Peele mostra perícia ao introduzir não só os marcantes personagens, como também o incômodo cenário campestre, nos brindando com um primeiro ato redondo, insinuante e imersivo. 


É a partir do segundo ato, entretanto, que Corra! justifica o seu sucesso, principalmente pela maneira com que consegue se aprofundar no cínico viés questionador sem abrir mão do puro entretenimento. Equilibrando suspense psicológico, comédia e terror com rara desenvoltura, Jordan Peele é inicialmente sagaz ao se opor aos mais enraizados estereótipos raciais. Através de diálogos ácidos, o diretor brinca com os exageros propostos pela trama ao transformar o protagonista numa espécie de objeto de estudo, mostrado assim a maneira absurda com que alguns enxergam o papel do negro na sociedade americana. O "estranho", obviamente, se torna o centro das atenções, mas a tentativa de integração rende diálogos ironicamente constrangedores. Impecável ao refutar estes rótulos sociais, Peele é igualmente habilidoso ao se posicionar veementemente contra a imposição cultural. Sem querer revelar muito, o roteiro é genial ao estabelecer os demais personagens afro-americanos, as suas origens e os motivos que o levaram a uma região majoritariamente branca, utilizando os mistérios em torno da premissa ao falar sobre a perda das raízes e o embranquecimento da cultura negra. É aqui, aliás, que percebemos que o foco do longa não está no integracionismo. Por mais que esta opção possa parecer perigosa num primeiro momento, as intenções são as melhores possíveis, já que Peele prefere fazer de Corra! um grito de alerta sobre a delicada situação do negro nos EUA. Após criar uma estreita conexão entre público e protagonista, o diretor ousa ao tentar personificar o preconceito, ao tornar o desconforto de Chris o mais visual possível, permitindo que o público (independente da etnia) experimente (sob um prisma particular) um pouco da angústia por trás da repressão e do racismo. O resultado é uma experiência agressiva, um clímax instintivo e provocador capaz de realmente mexer com as emoções do público. 


Indo além do viés crítico, Corra! funciona também (e tão bem) como um "simples" exemplar do gênero Suspense\Terror. Com personagens singulares, um texto recheado de ironia e um empolgante 'plot twist', Jordan Peele é virtuoso ao realçar a crescente tensão em torno de Chris, fazendo um magnífico uso dos enquadramentos fechados e do desconfortável cenário ao compor atmosfera de opressão em torno do jovem. Além disso, embora se renda ao didatismo barato na transição do segundo para o último ato, o realizador merece elogios pela forma inventiva com que explora os relevantes personagens de apoio. Enquanto os empregados traduzem com brilhantismo o aspecto mais bizarro proposto pela trama, o melhor amigo do protagonista, o falastrão Rod (LilRel Howery, excelente), se revela um alívio cômico inteligente, um personagem engraçadíssimo que, felizmente, não fica reduzido a esta função. 


Quando o assunto é o elenco, aliás, Corra! deixa uma ótima impressão. No seu primeiro grande trabalho em Hollywood, o expressivo Daniel Kaluuya (Kick-Ass 2) esbanja carisma ao traduzir o misto de embaraço e espanto do protagonista, criando uma figura moderna, perspicaz e resiliente. E o cara sabe chorar. Assim como o seu parceiro de cena, a promissora Allison Williams (Girls) cresce em cena de maneira assustadora, dando a sua Rose uma faceta convincentemente liberal. Quem realmente rouba a cena, porém, é a talentosa Betty Gabriel, instigante na pele da estranha e conflitante Georgina. É dela, inclusive, a grande cena do filme, um momento potencializado pela capacidade da atriz em absorver emoções tão contrastantes numa mesma cena. Já os experientes Bradley Whitford e Catherine Keener adicionam peso ao longa ao interpretarem os pais de Rose, dois personagens marcantes que merecem ter os seus segredos protegidos. 


Com uma proposta de fazer inveja a qualquer episódio das séries Além da Imaginação e Contos da Cripta, Corra! é um pequeno audacioso, um filme de baixo orçamento, tecnicamente irretocável que ruge entre os "gigantes" com um grito de igualdade incisivo e realmente autêntico. Impulsionado pela luminosa fotografia de Toby Oliver, criativa ao tornar os contrastes raciais esteticamente nítido aos olhos do público, Jordan Peele entrega uma película apimentada que, com acidez e um forte teor crítico, se insurge contra o preconceito velado num longa que não tem medo de polemizar. Uma abordagem, porém, milimetricamente calculada e com um propósito que justifica os evidentes exageros em torno de um tema tão delicado. 

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