quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Entre o Horror e a Crítica Social: os Cinquenta anos do Influente A Noite dos Mortos Vivos


A Noite dos Mortos Vivos ajudou a redefinir o cinema de Horror. Isso é um fato inquestionável. Lançado há longínquos cinquenta anos, o longa dirigido pelo saudoso George A. Romero se revela uma obra ainda hoje memorável, principalmente pela maneira com que este clássico do cinema ‘indie’ assumiu uma posição de vanguarda ao adicionar novos e influentes elementos no gênero. Numa análise mais óbvia, é fácil dizer que esta produção de baixíssimo orçamento se tornou uma espécie de “pai” dos filmes de zumbis modernos. Influenciado por títulos como I Am The Legend (que inspirou títulos como Mortos que Matam, A Última Esperança da Terra e o recente Eu sou a Lenda) e pelos quadrinhos de Contos da Cripta, o filme resolveu romper com o aspecto místico que cercava a mitologia. Numa época em que os filmes de terror eram em sua maioria “limpos”, Romero resolveu trazer a “sujeira” para o segmento, valorizando o elemento ‘gore’ de forma poucas vezes vista até então. Nas suas mãos os zumbis se tornaram as criaturas que conhecemos hoje, uma ameaça lenta, decrépita e sedenta por carne que causou repulsa numa legião de espectadores ao longo dos tempos. Usando tinta vermelha, calda de chocolate e até o almoço da sua equipe, o que explica o minúsculo custo de produção de US$ 120 mil, Romero tirou do papel algo realmente único, embrulhando os nossos estômagos ao não furtar o espectador dos fatos, do ataque das suas ferozes criaturas. 



É interessante frisar, entretanto, que muitos das triunfantes soluções estéticas\narrativas de A Noite dos Mortos Vivos nasceram durante o processo de produção do longa. Oriundos do mercado publicitário, George Romero, ao lado dos seus parceiros John A. Russo e Rudy Ricci, tinham ideias bem diferentes para o filme. Num insano processo de ‘brainstorm’, Russo, que viria a ser o roteirista do longa, surgiu com a ideia de realizar uma comédia com toques Sci-Fi sobre um grupo de alienígenas adolescentes que visitava a Terra, criava um laço de amizade com a garotada humana e aprontava grandes confusões com a ajuda de um animal cósmico. Que ideia transloucada! Mais à frente, o mesmo Russo, resolveu modificar o seu plot, se aproximando do terreno do horror ao pensar na história de um garoto que, ao fugir de casa, descobre que um grupo de alienígenas (olha eles ai de novo) estava se alimentando da carne de homens e mulheres enterrados num cemitério. Opa! Você percebeu algo¿ De um argumento totalmente distante da premissa de Night of The Living Dead (no original) nasceu a ideia que viria a definir o longa. Em posse deste rascunho, Romero riscou a ideia dos alienígenas, diminui o ‘status’ do personagem infantil, mas viu no “canibalismo” e no cenário proposto por Russo o ponto de partida para a construção de uma obra pequena, imersiva, indiscutivelmente barata, sobre um grupo de desconhecidos que, diante de uma bizarra ameaça, precisam se unir na luta pela sobrevivência. O tipo de ‘insight’ capaz de definir o sucesso de uma produção.


Com o instigante ‘plot’ transformado num “maleável” roteiro, entenda mais à frente, o trio partiu em busca da verba para financiar o projeto. Bem longe dos holofotes de Hollywood, Romero e Russo tiveram novamente que ousar para tirar do papel esta ideia pouco convencional (e comercial). Numa época em que as “vaquinhas online” nem sonhavam em existir, a dupla apelou para os seus parceiros mais próximos, reunindo um grupo de seis pessoas para conseguir os US$ 6 mil necessários para começar as filmagens do material que seria “vendido” a outros interessados em participar do projeto. Segundo o próprio Romero, um dos investidores era um açougueiro e dele vieram os intestinos usados na produção. “Nós financiamos o filme enquanto rodávamos. Tínhamos o suficiente para colocar algumas sequências na lata, cortá-las e mostrá-las às pessoas. Naquela época, começamos a vender ações em dois níveis diferentes. Eu não lembro qual era a estrutura exata. (...) Num todo, foi uma pequena quantidade envolvida. US$ 70 mil foi o dinheiro que tínhamos quando finalmente o colocamos nas mãos do distribuidor, e US$ 114 mil foi o dinheiro (gasto) depois que os atores foram pagos.”, revelou Romero em entrevista a Variety. Uma estratégia no melhor estilo “faça você mesmo” que, indiscutivelmente, ajudou a pavimentar a estrada do cinema independente norte-americano. Numa época em que a maior parte dos filmes eram quase que reféns dos grandes estúdios, George Romero mostrou que com coragem e originalidade era possível entregar algo novo para o público. E a recepção, contrariando as mais otimistas expectativas, foi realmente surpreendente. “O filme foi muito bem quando saiu pela primeira vez. Imediatamente, tivemos indicações de que era único. (O longa) começou a receber editoriais pelas (revistas) Readers Digest, Life Magazine, e as pessoas diziam: “Essa é a coisa mais grosseira possível. Até onde você vai para ganhar dinheiro?”, confirmou o diretor. Mesmo diante da precariedade orçamentária, da dificuldade em encontrar distribuidores e do limitado alcance da violenta obra, A Noite dos Mortos Vivos faturou cerca de US$ 30 milhões ao redor do mundo, um retorno inimaginável que, antes da solidificação da Nova Hollywood, mostrou que os projetos menores, aqueles frequentemente esnobados pelos grandes produtores, poderiam ser muito rentáveis. Uma visão de mercado\produção que, nos dias de hoje, se revela recorrente, principalmente diante da opressiva presença dos gigantescos blockbusters e do pouco espaço dado as produções de médio orçamento. A diferença é que, enquanto lá atrás George Romero teve que fazer tudo no “braço”, hoje existem respeitadas produtoras sedentas por estes pequenos ‘hits’, vide os bem-sucedidos ‘cases’ da Blumhouse e da A24.


É na força do seu inteligente subtexto, porém, que reside a alma de A Noite dos Mortos Vivos. Embora, na época do lançamento, alguns outros filmes do gênero já tivessem experimentado pincelar críticas sociais nas suas histórias, George Romero inovou ao usar a violência gráfica dentro de um contexto, refletindo sobre a sociedade norte-americana da época a partir da voracidade das suas criaturas. Hoje, é nítido que o longa traz em sua essência uma poderosa crítica à paranoia americana durante a Guerra Fria. O próprio Romero, no entanto, nunca escondeu que o seu foco não estava nas mensagens políticas embutidas no texto, mas na construção de uma obra assustadora, um genuíno representante do cinema de horror. Segundo ele, à medida que a produção foi avançando, o subtexto foi se revelando mais forte, os questionamentos mais evidentes. “A história foi uma alegoria escrita para traçar um paralelo entre o que as pessoas estavam se tornando e a ideia de que elas estavam agindo em muitos níveis de insanidade que são apenas claros para si mesmos. Mas nós realmente não tentamos escrever essas coisas e nós não filmamos buscando explicações ou qualquer outra coisa. Nós filmamos da maneira que mostrássemos como as coisas seriam se os mortos voltassem à vida.”, confidenciou o realizador a Variety. Essa ausência de justificativas, na verdade, só comprou a sagacidade do argumento em explorar o medo do público americano quanto a ameaça atômica, em tirar proveito da sensação de perigo iminente, um grau de desconfiança que se reflete inteligentemente nos atos e decisões dos desesperados personagens. Na verdade, A Noite dos Mortos Vivos soa, em muitos momentos, como um horripilante pesadelo, uma sensação potencializada pela suja fotografia em preto e branco. É bom frisar, entretanto, que Romero optou por rodar o filme em P\B não por uma escolha estética, mas para baratear o custo da produção, o que, definitivamente, se tornou um dos grandes charmes da obra.


Num momento em que o clamor pela igualdade racial se fazia cada vez mais presente dentro da sociedade norte-americana, A Noite dos Mortos Vivos voltou a se posicionar na vanguarda quando optou por escalar um ator negro para o papel do herói da película. O que, logicamente, ajudou a trazer a questão do preconceito para o centro da trama. Numa época em que Sidney Poitier surgia como um dos poucos grandes protagonistas dentro da indústria, George Romero deu a um conhecido, o carismático Duane Jones, a possibilidade de encarar um personagem digno de nota. Mais uma vez, porém, o destino “conspirou” a favor do sucesso da produção. Num primeiro momento, o roteiro não havia definido uma etnia para o nobre e inteligente homem que se vê obrigado a liderar um assustado grupo (de brancos) contra uma horda de mortos-vivos. Romero procurava um tipo adulto para interpretar um caminhoneiro. Foi no teste de Duane que ele percebeu que estava diante do seu herói. “Nós não tínhamos noção preconcebida que o papel seria de um “personagem negro”. Duane entrou, ele parecia o cara certo, ele leu (o texto) bem, então nós o usamos. Nós nunca mais tomamos nota disso.”, simplificou Romero, em entrevista ao jornalista Alex Ben Block, ainda no início da década de 1970. Ao contrário do diretor, porém, Jones percebeu que o seu Ben tinha mais a oferecer dentro do contexto em que o longa estava inserido. Diante da “maleabilidade” do roteiro, por diversas vezes reescrito\modificado durante as filmagens, o ator recebeu o voto de confiança para readequá-lo seguindo os anseios de um homem negro consciente da luta dos movimentos de cunho racial pelo fim da segregação e da desigualdade. Segundo consta, Ben, inicialmente, seria um tipo mais duro, irritado, um herói forte e agressivo. O próprio Jones, entretanto, ajudou a refinar o personagem, ao desmistificar o estigma do negro inculto e de classe baixa. Sem, com isso, torna-lo frágil. Na verdade, ele fez questão de manter o aspecto raivoso do protagonista, um homem inconformado com a realidade ao seu redor, o que se torna decisivo à medida que Romero começa a explorar o gradativo clima de tensão em torno do choque de ideias entre os sobreviventes dentro de uma isolada casa do interior.


A sua influência, porém, não parou por ai. Numa análise ampla da filmografia de George Romero, está claro que ele não foi um dos realizadores mais pessimistas do cinema de horror. Em muitas das suas obras, inclusive, o esforço dos protagonistas é recompensado com um desfecho, à sua maneira, feliz e positivo. Uma característica que, ao que tudo indica, seria aplicada em A Noite dos Mortos Vivos. Duane Jones, porém, decidiu intervir. Contando com a “abertura” de Romero, o ator sugeriu um desfecho impactante, que, devido a etnia do seu personagem, iria refletir de maneira mais enfática a violenta realidade enfrentada pelos negros dentro da sociedade norte-americana. “Eu convenci George que a comunidade negra preferiria me ver morto do que salvo, de uma maneira brega e simbolicamente confusa, depois de tudo o que aconteceu. (...) Os heróis nunca morriam em filmes americanos. A surpresa nisso, somado ao fato do herói ser um homem negro, seria dupla.”, revelou o ator ao The Wrap. E, de fato, o desfecho não poderia ser mais crítico e verdadeiro. Após lutar incansavelmente para sobreviver à noite dos mortos vivos, ver àquele homem bravo, destemido, ser morto sem qualquer tipo de critério por um fazendeiro branco foi um daqueles socos no estômago que só o cinema sabe dar. Ali, Romero e Jones escancararam a vulnerabilidade de uma pessoa negra num ambiente hostil, refletindo sobre o panorama da sociedade americana da época com um misto de ironia e visceralidade. Na época, inclusive, em algumas cidades dos EUA, o filme teve “problemas” para ser distribuído só por contar com um protagonista negro, o que mostra o quão viva ainEda era a segregação racial naquele momento. Em entrevista ao The Wrap, entretanto, o roteirista John Russo foi objetivo ao definir a importância de Jones para o êxito do projeto. “Duvido que nosso filme teria sido um sucesso sem ele. Sua presença na tela foi um dos principais ingredientes que ajudaram a elevar essa obra de baixo orçamento e criar algo que quase não tinha o direito de ser. O sonho se tornou realidade, em parte por causa de Duane Jones.”, resumiu ele.

George A. Romero cercado pelas suas estimadas criaturas
Entre o horror e a crítica social, A Noite dos Mortos Vivos se tornou uma daquelas obras capazes de redefinir o ‘status quo’ de um gênero. Com coragem, criatividade e uma inquestionável dose de sorte, George Romero mostrou não só a força das produções independentes, mas também o potencial inexplorado de um popular segmento, comprovando que, além de assustar e incomodar, os filmes de terror poderiam nos fazer pensar sobre a realidade que nós cerca. Uma perspectiva que, ainda hoje, segue influenciando o segmento, o que fica claro com o triunfo de títulos como Ao Cair da Noite, Um Lugar Silencioso e o estrondoso Corra!. O próprio Romero, inclusive, seguiu usando os seus mortos-vivos (ele nunca foi muito adepto do termo zumbi) como um instrumento de crítica social. Em O Despertar dos Mortos (1978), por exemplo, ele criticou a cultura do consumismo, usando um impessoal shopping center para tecer um comentário ácido sobre a nossa crise de humanidade. Os vivos, aqui, são os grandes vilões da história. Alguns anos depois, em O Dia Dos Mortos (1984), Romero concluiu a trilogia original se voltando contra o perigo dos experimentos científicos, refletindo sobre a ignorância humana e a misoginia ao desvendar a rotina de um grupo de altruístas civis diante da opressão militar. Por fim, em Terra dos Mortos (2005), seu último grande título dentro do subgênero, o realizador usa a epidemia zumbi como o pano de fundo para a construção de uma crítica envolvendo a desigualdade social, surgindo com um duelo de classes incisivo e indiscutivelmente original. Uma franquia possibilitada pelo triunfo de A Noite dos Mortos Vivos, uma obra (ainda hoje) arrepiante, questionadora e indiscutivelmente influente.

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