A Noite dos Mortos Vivos ajudou a
redefinir o cinema de Horror. Isso é um fato inquestionável. Lançado há
longínquos cinquenta anos, o longa dirigido pelo saudoso George A. Romero se
revela uma obra ainda hoje memorável, principalmente pela maneira com que este
clássico do cinema ‘indie’ assumiu uma posição de vanguarda ao adicionar novos
e influentes elementos no gênero. Numa análise mais óbvia, é fácil dizer que
esta produção de baixíssimo orçamento se tornou uma espécie de “pai” dos filmes
de zumbis modernos. Influenciado por títulos como I Am The Legend (que inspirou
títulos como Mortos que Matam, A Última Esperança da Terra e o recente Eu sou a
Lenda) e pelos quadrinhos de Contos da Cripta, o filme resolveu romper com o
aspecto místico que cercava a mitologia. Numa época em que os filmes de terror
eram em sua maioria “limpos”, Romero resolveu trazer a “sujeira” para o
segmento, valorizando o elemento ‘gore’ de forma poucas vezes vista até então.
Nas suas mãos os zumbis se tornaram as criaturas que conhecemos hoje, uma
ameaça lenta, decrépita e sedenta por carne que causou repulsa numa legião de
espectadores ao longo dos tempos. Usando tinta vermelha, calda de chocolate e
até o almoço da sua equipe, o que explica o minúsculo custo de produção de US$ 120
mil, Romero tirou do papel algo realmente único, embrulhando os nossos
estômagos ao não furtar o espectador dos fatos, do ataque das suas ferozes
criaturas.
É interessante frisar,
entretanto, que muitos das triunfantes soluções estéticas\narrativas de A Noite
dos Mortos Vivos nasceram durante o processo de produção do longa. Oriundos do
mercado publicitário, George Romero, ao lado dos seus parceiros John A. Russo e
Rudy Ricci, tinham ideias bem diferentes para o filme. Num insano processo de
‘brainstorm’, Russo, que viria a ser o roteirista do longa, surgiu com a ideia de
realizar uma comédia com toques Sci-Fi sobre um grupo de alienígenas adolescentes
que visitava a Terra, criava um laço de amizade com a garotada humana e
aprontava grandes confusões com a ajuda de um animal cósmico. Que ideia
transloucada! Mais à frente, o mesmo Russo, resolveu modificar o seu plot, se
aproximando do terreno do horror ao pensar na história de um garoto que, ao
fugir de casa, descobre que um grupo de alienígenas (olha eles ai de novo)
estava se alimentando da carne de homens e mulheres enterrados num cemitério.
Opa! Você percebeu algo¿ De um argumento totalmente distante da premissa de
Night of The Living Dead (no original) nasceu a ideia que viria a definir o
longa. Em posse deste rascunho, Romero riscou a ideia dos alienígenas, diminui o
‘status’ do personagem infantil, mas viu no “canibalismo” e no cenário proposto
por Russo o ponto de partida para a construção de uma obra pequena, imersiva,
indiscutivelmente barata, sobre um grupo de desconhecidos que, diante de uma
bizarra ameaça, precisam se unir na luta pela sobrevivência. O tipo de ‘insight’
capaz de definir o sucesso de uma produção.
Com o instigante ‘plot’
transformado num “maleável” roteiro, entenda mais à frente, o trio partiu em
busca da verba para financiar o projeto. Bem longe dos holofotes de Hollywood, Romero
e Russo tiveram novamente que ousar para tirar do papel esta ideia pouco
convencional (e comercial). Numa época em que as “vaquinhas online” nem
sonhavam em existir, a dupla apelou para os seus parceiros mais próximos,
reunindo um grupo de seis pessoas para conseguir os US$ 6 mil necessários para
começar as filmagens do material que seria “vendido” a outros interessados em
participar do projeto. Segundo o próprio Romero, um dos investidores era um
açougueiro e dele vieram os intestinos usados na produção. “Nós financiamos o
filme enquanto rodávamos. Tínhamos o suficiente para colocar algumas sequências
na lata, cortá-las e mostrá-las às pessoas. Naquela época, começamos a vender
ações em dois níveis diferentes. Eu não lembro qual era a estrutura exata. (...)
Num todo, foi uma pequena quantidade envolvida. US$ 70 mil foi o dinheiro que
tínhamos quando finalmente o colocamos nas mãos do distribuidor, e US$ 114 mil
foi o dinheiro (gasto) depois que os atores foram pagos.”, revelou Romero em
entrevista a Variety. Uma estratégia no melhor estilo “faça você mesmo” que,
indiscutivelmente, ajudou a pavimentar a estrada do cinema independente
norte-americano. Numa época em que a maior parte dos filmes eram quase que reféns
dos grandes estúdios, George Romero mostrou que com coragem e originalidade era
possível entregar algo novo para o público. E a recepção, contrariando as mais
otimistas expectativas, foi realmente surpreendente. “O filme foi muito bem
quando saiu pela primeira vez. Imediatamente, tivemos indicações de que era
único. (O longa) começou a receber editoriais pelas (revistas) Readers Digest,
Life Magazine, e as pessoas diziam: “Essa é a coisa mais grosseira possível.
Até onde você vai para ganhar dinheiro?”, confirmou o diretor. Mesmo diante da
precariedade orçamentária, da dificuldade em encontrar distribuidores e do
limitado alcance da violenta obra, A Noite dos Mortos Vivos faturou cerca de
US$ 30 milhões ao redor do mundo, um retorno inimaginável que, antes da
solidificação da Nova Hollywood, mostrou que os projetos menores, aqueles
frequentemente esnobados pelos grandes produtores, poderiam ser muito
rentáveis. Uma visão de mercado\produção que, nos dias de hoje, se revela
recorrente, principalmente diante da opressiva presença dos gigantescos blockbusters
e do pouco espaço dado as produções de médio orçamento. A diferença é que,
enquanto lá atrás George Romero teve que fazer tudo no “braço”, hoje existem respeitadas
produtoras sedentas por estes pequenos ‘hits’, vide os bem-sucedidos ‘cases’ da
Blumhouse e da A24.
É na força do seu inteligente
subtexto, porém, que reside a alma de A Noite dos Mortos Vivos. Embora, na
época do lançamento, alguns outros filmes do gênero já tivessem experimentado
pincelar críticas sociais nas suas histórias, George Romero inovou ao usar a
violência gráfica dentro de um contexto, refletindo sobre a sociedade
norte-americana da época a partir da voracidade das suas criaturas. Hoje, é
nítido que o longa traz em sua essência uma poderosa crítica à paranoia
americana durante a Guerra Fria. O próprio Romero, no entanto, nunca escondeu
que o seu foco não estava nas mensagens políticas embutidas no texto, mas na
construção de uma obra assustadora, um genuíno representante do cinema de
horror. Segundo ele, à medida que a produção foi avançando, o subtexto foi se
revelando mais forte, os questionamentos mais evidentes. “A história foi uma
alegoria escrita para traçar um paralelo entre o que as pessoas estavam se
tornando e a ideia de que elas estavam agindo em muitos níveis de insanidade
que são apenas claros para si mesmos. Mas nós realmente não tentamos escrever
essas coisas e nós não filmamos buscando explicações ou qualquer outra coisa.
Nós filmamos da maneira que mostrássemos como as coisas seriam se os mortos
voltassem à vida.”, confidenciou o realizador a Variety. Essa ausência de
justificativas, na verdade, só comprou a sagacidade do argumento em explorar o
medo do público americano quanto a ameaça atômica, em tirar proveito da sensação
de perigo iminente, um grau de desconfiança que se reflete inteligentemente nos
atos e decisões dos desesperados personagens. Na verdade, A Noite dos Mortos
Vivos soa, em muitos momentos, como um horripilante pesadelo, uma sensação
potencializada pela suja fotografia em preto e branco. É bom frisar,
entretanto, que Romero optou por rodar o filme em P\B não por uma escolha
estética, mas para baratear o custo da produção, o que, definitivamente, se
tornou um dos grandes charmes da obra.
Num momento em que o clamor pela
igualdade racial se fazia cada vez mais presente dentro da sociedade
norte-americana, A Noite dos Mortos Vivos voltou a se posicionar na vanguarda
quando optou por escalar um ator negro para o papel do herói da película. O
que, logicamente, ajudou a trazer a questão do preconceito para o centro da
trama. Numa época em que Sidney Poitier surgia como um dos poucos grandes
protagonistas dentro da indústria, George Romero deu a um conhecido, o
carismático Duane Jones, a possibilidade de encarar um personagem digno de
nota. Mais uma vez, porém, o destino “conspirou” a favor do sucesso da
produção. Num primeiro momento, o roteiro não havia definido uma etnia para o
nobre e inteligente homem que se vê obrigado a liderar um assustado grupo (de
brancos) contra uma horda de mortos-vivos. Romero procurava um tipo adulto para
interpretar um caminhoneiro. Foi no teste de Duane que ele percebeu que estava
diante do seu herói. “Nós não tínhamos noção preconcebida que o papel seria de um
“personagem negro”. Duane entrou, ele parecia o cara certo, ele leu (o texto)
bem, então nós o usamos. Nós nunca mais tomamos nota disso.”, simplificou
Romero, em entrevista ao jornalista Alex Ben Block, ainda no início da década
de 1970. Ao contrário do diretor, porém, Jones percebeu que o seu Ben tinha
mais a oferecer dentro do contexto em que o longa estava inserido. Diante da
“maleabilidade” do roteiro, por diversas vezes reescrito\modificado durante as
filmagens, o ator recebeu o voto de confiança para readequá-lo seguindo os
anseios de um homem negro consciente da luta dos movimentos de cunho racial
pelo fim da segregação e da desigualdade. Segundo consta, Ben, inicialmente,
seria um tipo mais duro, irritado, um herói forte e agressivo. O próprio Jones,
entretanto, ajudou a refinar o personagem, ao desmistificar o estigma do negro
inculto e de classe baixa. Sem, com isso, torna-lo frágil. Na verdade, ele fez
questão de manter o aspecto raivoso do protagonista, um homem inconformado com
a realidade ao seu redor, o que se torna decisivo à medida que Romero começa a
explorar o gradativo clima de tensão em torno do choque de ideias entre os
sobreviventes dentro de uma isolada casa do interior.
A sua influência, porém, não
parou por ai. Numa análise ampla da filmografia de George Romero, está claro
que ele não foi um dos realizadores mais pessimistas do cinema de horror. Em
muitas das suas obras, inclusive, o esforço dos protagonistas é recompensado
com um desfecho, à sua maneira, feliz e positivo. Uma característica que, ao
que tudo indica, seria aplicada em A Noite dos Mortos Vivos. Duane Jones,
porém, decidiu intervir. Contando com a “abertura” de Romero, o ator sugeriu um
desfecho impactante, que, devido a etnia do seu personagem, iria refletir de
maneira mais enfática a violenta realidade enfrentada pelos negros dentro da
sociedade norte-americana. “Eu convenci George que a comunidade negra
preferiria me ver morto do que salvo, de uma maneira brega e simbolicamente
confusa, depois de tudo o que aconteceu. (...) Os heróis nunca morriam em
filmes americanos. A surpresa nisso, somado ao fato do herói ser um homem
negro, seria dupla.”, revelou o ator ao The Wrap. E, de fato, o desfecho não
poderia ser mais crítico e verdadeiro. Após lutar incansavelmente para
sobreviver à noite dos mortos vivos, ver àquele homem bravo, destemido, ser
morto sem qualquer tipo de critério por um fazendeiro branco foi um daqueles
socos no estômago que só o cinema sabe dar. Ali, Romero e Jones escancararam a
vulnerabilidade de uma pessoa negra num ambiente hostil, refletindo sobre o panorama
da sociedade americana da época com um misto de ironia e visceralidade. Na
época, inclusive, em algumas cidades dos EUA, o filme teve “problemas” para ser
distribuído só por contar com um protagonista negro, o que mostra o quão viva
ainEda era a segregação racial naquele momento. Em entrevista ao The Wrap, entretanto,
o roteirista John Russo foi objetivo ao definir a importância de Jones para o
êxito do projeto. “Duvido que nosso filme teria sido um sucesso sem ele. Sua
presença na tela foi um dos principais ingredientes que ajudaram a elevar essa
obra de baixo orçamento e criar algo que quase não tinha o direito de ser. O
sonho se tornou realidade, em parte por causa de Duane Jones.”, resumiu ele.
George A. Romero cercado pelas suas estimadas criaturas |
Entre o horror e a crítica
social, A Noite dos Mortos Vivos se tornou uma daquelas obras capazes de
redefinir o ‘status quo’ de um gênero. Com coragem, criatividade e uma
inquestionável dose de sorte, George Romero mostrou não só a força das
produções independentes, mas também o potencial inexplorado de um popular
segmento, comprovando que, além de assustar e incomodar, os filmes de terror
poderiam nos fazer pensar sobre a realidade que nós cerca. Uma perspectiva que,
ainda hoje, segue influenciando o segmento, o que fica claro com o triunfo de
títulos como Ao Cair da Noite, Um Lugar Silencioso e o estrondoso Corra!. O
próprio Romero, inclusive, seguiu usando os seus mortos-vivos (ele nunca foi
muito adepto do termo zumbi) como um instrumento de crítica social. Em O
Despertar dos Mortos (1978), por exemplo, ele criticou a cultura do consumismo,
usando um impessoal shopping center para tecer um comentário ácido sobre a
nossa crise de humanidade. Os vivos, aqui, são os grandes vilões da história.
Alguns anos depois, em O Dia Dos Mortos (1984), Romero concluiu a trilogia
original se voltando contra o perigo dos experimentos científicos, refletindo
sobre a ignorância humana e a misoginia ao desvendar a rotina de um grupo de
altruístas civis diante da opressão militar. Por fim, em Terra dos Mortos
(2005), seu último grande título dentro do subgênero, o realizador usa a epidemia
zumbi como o pano de fundo para a construção de uma crítica envolvendo a
desigualdade social, surgindo com um duelo de classes incisivo e
indiscutivelmente original. Uma franquia possibilitada pelo triunfo de A Noite
dos Mortos Vivos, uma obra (ainda hoje) arrepiante, questionadora e
indiscutivelmente influente.
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