O que afinal define um filme cult? Estilo? Originalidade?Linguagem pop? Alcance reduzido? Longe de mim querer
definir o que faz um filme fazer parte deste seleto grupo de produções. Se é que existe alguma definição tão simples assim. Um
fato, porém, me parece claro. Um cult, a não ser em raríssimas exceções,
dificilmente é um sucesso de público. Muito pelo contrário. Hoje tratadas como
referências dentro da Sétima Arte, títulos como Plano 9 do Espaço Sideral
(1959), The Rocky Horror Pictures Show (1975), The Warriors: Os Selvagens da
Noite (1979), O Enigma do Outro Mundo (1982), Blade Runner (1982), O Corvo
(1994), Donnie Darko (2001) se revelaram fiascos de bilheteria e\ou de crítica
na época dos seus respectivos lançamentos, encontrando o seu nicho tempos mais
tarde graças ao abrangente mercado ‘home-video’. Olhando sob esta perspectiva,
Terminal (A Vingança Perfeita, no Brasil) traz em sua essência algumas das
características que transformaram os filmes acima em pérolas do cinema ‘cult’.
Sob a refinada batuta do novato na direção Vaughn Stein, o longa estrelado por
uma radiante Margot Robbie foi destruído pela crítica norte-americana, esnobado
pelo público e ganhou uma “sobrevida” no catálogo da Netflix. Por trás das
baixas expectativas, entretanto, surge uma obra estilosa e insinuante, um
thriller de vingança ‘neo-noir’ que, embora não soe original, encontra
no seu estonteante visual e na eficiente premissa elementos capazes de oferecer
uma experiência intrigante e recheada de predicados estéticos.
Influenciado por diretores como Ridley
Scott, Quentin Tarantino, Guy Ritchie, James Wan e David Leitch, Terminal não
se faz de rogado em reciclar algumas das fórmulas (estéticas e narrativas)
exploradas por esses reconhecidos nomes do cinema moderno. Pegue o cenário ultra
colorido ‘neo-noir’ de Blade Runner, misture com a criminosa sensação de desconfiança
de Cães de Aluguel, envelope com a truncada narrativa não linear de Snatch:
Porcos e Diamantes e pontue com a ferocidade feminina de Atômica. Numa análise
rasa e quase que instantânea, é fácil enxergar as referências de Vaughn Stein
na construção da jornada de Annie (Margot Robbie), uma garçonete enigmática
que, num dos seus inúmeros plantões noturnos, se “envolve” com uma conflituosa
dupla de assassinos profissionais (Dexter Fletcher e Max Irons) e com um
depressivo professor (Simon Pegg). Confesso que, num primeiro momento, o filme
realmente custa a engrenar, soa um tanto quanto oco, como se estivéssemos diante
de uma película sem “alma”, uma requentada colcha de retalhos. Embora
visualmente estupendo, a sensação de vazio em torno do imersivo primeiro ato causa
um inegável desconforto, o que me colocou em dúvidas quanto a possível falta de
assinatura do realizador, conhecido por seus trabalhos em segunda unidades de
produções como Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas e Guerra
Mundial Z. Por um momento achei que fosse concordar com a crítica
norte-americana.
Não demora muito, porém, para as
peças começarem a se encaixar. A sensação de vazio se revelar justificada. Na
verdade, o que torna Terminal uma obra “difícil” é a perspicácia
do também roteirista Vaughn Stein em quebrar as nossas expectativas. Aos
poucos, as referências citadas acima vão se tornando menos relevantes. Mais
complementares. Mais do que replicar o trabalho de terceiros, o diretor parece querer
reverenciá-los, mas dentro dos seus próprios moldes. O filme, indiscutivelmente,
ganha uma identidade nova no momento em que o argumento reluta em oferece aquilo
que esperávamos assistir. Esqueça, portanto, as adrenalizadas sequências de
ação. Ou então a montagem frenética bem comum nos thrillers convencionais. A
vingança, aqui, é um prato saboreado com frieza, com calculismo. Embora se
sustente em algumas soluções narrativas convenientes, o roteiro é hábil ao
gradativamente estreitar o elo entre os personagens, entre as duas linhas
temporais. Ainda que, a rigor, um dos arcos (o do professor) funcione muito
melhor que o outro (o dos assassinos), Stein consegue encontrar um bem-vindo
meio termo no vai e vem temporal, permitindo que, através de diálogos
aparentemente banais, descortinemos a real identidade dos protagonistas, as
suas motivações e os seus sorrateiros interesses. Sem querer revelar muito, o
longa parece se “deliciar” em ver o caçador brincar com as suas possíveis
prezas, alimentando as nossas expectativas enquanto constrói um instigante jogo
de gato e rato. Vou além. Por mais que a história cresça consistentemente até o
revelador clímax, com direito a pelo menos um coerente ‘plot twist’, me arrisco
a dizer que Terminal poderia ser uma obra ainda melhor se tivesse se
concentrado no aspecto micro, na complexa interação entre a instável garçonete
e um professor prestes a encarar a morte. Sem medo de errar, é daqui que nascem
os diálogos mais inteligentes e o ‘plot’ mais denso deste suspense, principalmente
pela capacidade do script em explorar a franqueza inconsequente\mórbida da
personagem diante de um tipo tão errático. É bom frisar, entretanto, que o
gradativo clima de tensão envolve as duas linhas narrativas com igualdade, mostrando
a astúcia de Stein em manter o alerta de perigo iminente ligado na maior parte
da obra.
Uma sensação que, verdade seja
dita, está diretamente ligada a insana performance de Margot Robbie. Numa
mistura de Arlequina com Jigsaw, a versátil atriz australiana esbanja
magnetismo na pele de uma misteriosa garçonete, capturando o misto de raiva, loucura,
obsessão e genialidade da sua personagem num trabalho saborosamente ‘over’ e
sinistro. Transitando entre a sexy\sedutora e a calculista\’creep’, Robbie é o
rosto do filme, muito em função da convicção de Vaugh Stain em colocá-la no
centro do quadro, em capturar as suas imagéticas expressões. E ela não está só.
Contrastando com a sua ferocidade, os carismáticos Simon Pegg, Dexter Fletcher
(por sinal um diretor de mão cheia) e Max Irons investem em performances mais
contidas e “humanas”, comprovando o esforço do argumento em investir em tipos
tridimensionais. Se Margot Robbie é o coração da película, o neonizado visual ‘neo-noir’
reforça o potencial cult da produção. Fazendo um vigoroso uso das cores
saturadas, dos contraluzes e da atmosfera sombria urbana, Stein nos brinda com
enquadramentos dignos de moldura, explorando o imersivo e esvaziado cenário com
requinte e esmero estético. Seja nos cenários mais intimistas, como no
nostálgico restaurante, seja nos ambientes mais amplos, como na boate de strip-tease,
o realizador posiciona os seus comandados sempre com muita elegância e preocupação
plástica, criando cenas de rara sofisticação. Sem querer revelar muito, o
diretor é criativo ao capturar a presença sorrateira de Annie, ao usar as “quedas
de luz” como uma esperta solução visual, reforçando a face mais ameaçadora dela
em curiosos ‘jump-scares’. Além disso, o diretor mostra assinatura ao investir
em planos fechados\detalhes, valorizando os gestos dos personagens, os pequenos
atos e expressões num ‘mise en scene’ repleto de sugestões do que virá pela
frente. O que, verdade seja dita, ajuda a explicar a previsibilidade de algumas
situações. Menos mal que, graças aos predicados citados acima, o longa dependa
muito mais do seu visual e do elenco do que propriamente do (irregular) do
argumento.
Embora falte maturidade ao
diretor em extrair o melhor do seu próprio ‘plot’, o que fica claro, em
especial, na telegrafada reviravolta final, daquelas que poderiam render muito
mais se não fossem tão “escondidas” pelo roteiro, Terminal é um thriller de
vingança pop e positivamente insano, uma obra corajosa ao valorizar a tensão (e
o visual) em detrimento da ação. No embalo da sensorial trilha sonora da dupla
de compositores de Mulher-Maravilha e da arrasadora performance de Margot Robbie,
Vaugh Stein reverencia alguns influentes ‘hits’ cults num suspense insinuante,
imersivo e a sua maneira peculiar. Uma obra que, mesmo intrigando e empolgando
nos momentos certos, deixa a sensação que poderia funcionar ainda melhor se
tivesse tirado o máximo proveito do potencial dramático escondido no arco
revanchista.
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