terça-feira, 30 de outubro de 2018

Terminal - A Vingança Perfeita

Pretensões cult

O que afinal define um filme cult? Estilo? Originalidade?Linguagem pop? Alcance reduzido? Longe de mim querer definir o que faz um filme fazer parte deste seleto grupo de produções. Se é que existe alguma definição tão simples assim. Um fato, porém, me parece claro. Um cult, a não ser em raríssimas exceções, dificilmente é um sucesso de público. Muito pelo contrário. Hoje tratadas como referências dentro da Sétima Arte, títulos como Plano 9 do Espaço Sideral (1959), The Rocky Horror Pictures Show (1975), The Warriors: Os Selvagens da Noite (1979), O Enigma do Outro Mundo (1982), Blade Runner (1982), O Corvo (1994), Donnie Darko (2001) se revelaram fiascos de bilheteria e\ou de crítica na época dos seus respectivos lançamentos, encontrando o seu nicho tempos mais tarde graças ao abrangente mercado ‘home-video’. Olhando sob esta perspectiva, Terminal (A Vingança Perfeita, no Brasil) traz em sua essência algumas das características que transformaram os filmes acima em pérolas do cinema ‘cult’. Sob a refinada batuta do novato na direção Vaughn Stein, o longa estrelado por uma radiante Margot Robbie foi destruído pela crítica norte-americana, esnobado pelo público e ganhou uma “sobrevida” no catálogo da Netflix. Por trás das baixas expectativas, entretanto, surge uma obra estilosa e insinuante, um thriller de vingança ‘neo-noir’ que, embora não soe original, encontra no seu estonteante visual e na eficiente premissa elementos capazes de oferecer uma experiência intrigante e recheada de predicados estéticos. 



Influenciado por diretores como Ridley Scott, Quentin Tarantino, Guy Ritchie, James Wan e David Leitch, Terminal não se faz de rogado em reciclar algumas das fórmulas (estéticas e narrativas) exploradas por esses reconhecidos nomes do cinema moderno. Pegue o cenário ultra colorido ‘neo-noir’ de Blade Runner, misture com a criminosa sensação de desconfiança de Cães de Aluguel, envelope com a truncada narrativa não linear de Snatch: Porcos e Diamantes e pontue com a ferocidade feminina de Atômica. Numa análise rasa e quase que instantânea, é fácil enxergar as referências de Vaughn Stein na construção da jornada de Annie (Margot Robbie), uma garçonete enigmática que, num dos seus inúmeros plantões noturnos, se “envolve” com uma conflituosa dupla de assassinos profissionais (Dexter Fletcher e Max Irons) e com um depressivo professor (Simon Pegg). Confesso que, num primeiro momento, o filme realmente custa a engrenar, soa um tanto quanto oco, como se estivéssemos diante de uma película sem “alma”, uma requentada colcha de retalhos. Embora visualmente estupendo, a sensação de vazio em torno do imersivo primeiro ato causa um inegável desconforto, o que me colocou em dúvidas quanto a possível falta de assinatura do realizador, conhecido por seus trabalhos em segunda unidades de produções como Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas e Guerra Mundial Z. Por um momento achei que fosse concordar com a crítica norte-americana. 


Não demora muito, porém, para as peças começarem a se encaixar. A sensação de vazio se revelar justificada. Na verdade, o que torna Terminal uma obra “difícil” é a perspicácia do também roteirista Vaughn Stein em quebrar as nossas expectativas. Aos poucos, as referências citadas acima vão se tornando menos relevantes. Mais complementares. Mais do que replicar o trabalho de terceiros, o diretor parece querer reverenciá-los, mas dentro dos seus próprios moldes. O filme, indiscutivelmente, ganha uma identidade nova no momento em que o argumento reluta em oferece aquilo que esperávamos assistir. Esqueça, portanto, as adrenalizadas sequências de ação. Ou então a montagem frenética bem comum nos thrillers convencionais. A vingança, aqui, é um prato saboreado com frieza, com calculismo. Embora se sustente em algumas soluções narrativas convenientes, o roteiro é hábil ao gradativamente estreitar o elo entre os personagens, entre as duas linhas temporais. Ainda que, a rigor, um dos arcos (o do professor) funcione muito melhor que o outro (o dos assassinos), Stein consegue encontrar um bem-vindo meio termo no vai e vem temporal, permitindo que, através de diálogos aparentemente banais, descortinemos a real identidade dos protagonistas, as suas motivações e os seus sorrateiros interesses. Sem querer revelar muito, o longa parece se “deliciar” em ver o caçador brincar com as suas possíveis prezas, alimentando as nossas expectativas enquanto constrói um instigante jogo de gato e rato. Vou além. Por mais que a história cresça consistentemente até o revelador clímax, com direito a pelo menos um coerente ‘plot twist’, me arrisco a dizer que Terminal poderia ser uma obra ainda melhor se tivesse se concentrado no aspecto micro, na complexa interação entre a instável garçonete e um professor prestes a encarar a morte. Sem medo de errar, é daqui que nascem os diálogos mais inteligentes e o ‘plot’ mais denso deste suspense, principalmente pela capacidade do script em explorar a franqueza inconsequente\mórbida da personagem diante de um tipo tão errático. É bom frisar, entretanto, que o gradativo clima de tensão envolve as duas linhas narrativas com igualdade, mostrando a astúcia de Stein em manter o alerta de perigo iminente ligado na maior parte da obra.


Uma sensação que, verdade seja dita, está diretamente ligada a insana performance de Margot Robbie. Numa mistura de Arlequina com Jigsaw, a versátil atriz australiana esbanja magnetismo na pele de uma misteriosa garçonete, capturando o misto de raiva, loucura, obsessão e genialidade da sua personagem num trabalho saborosamente ‘over’ e sinistro. Transitando entre a sexy\sedutora e a calculista\’creep’, Robbie é o rosto do filme, muito em função da convicção de Vaugh Stain em colocá-la no centro do quadro, em capturar as suas imagéticas expressões. E ela não está só. Contrastando com a sua ferocidade, os carismáticos Simon Pegg, Dexter Fletcher (por sinal um diretor de mão cheia) e Max Irons investem em performances mais contidas e “humanas”, comprovando o esforço do argumento em investir em tipos tridimensionais. Se Margot Robbie é o coração da película, o neonizado visual ‘neo-noir’ reforça o potencial cult da produção. Fazendo um vigoroso uso das cores saturadas, dos contraluzes e da atmosfera sombria urbana, Stein nos brinda com enquadramentos dignos de moldura, explorando o imersivo e esvaziado cenário com requinte e esmero estético. Seja nos cenários mais intimistas, como no nostálgico restaurante, seja nos ambientes mais amplos, como na boate de strip-tease, o realizador posiciona os seus comandados sempre com muita elegância e preocupação plástica, criando cenas de rara sofisticação. Sem querer revelar muito, o diretor é criativo ao capturar a presença sorrateira de Annie, ao usar as “quedas de luz” como uma esperta solução visual, reforçando a face mais ameaçadora dela em curiosos ‘jump-scares’. Além disso, o diretor mostra assinatura ao investir em planos fechados\detalhes, valorizando os gestos dos personagens, os pequenos atos e expressões num ‘mise en scene’ repleto de sugestões do que virá pela frente. O que, verdade seja dita, ajuda a explicar a previsibilidade de algumas situações. Menos mal que, graças aos predicados citados acima, o longa dependa muito mais do seu visual e do elenco do que propriamente do (irregular) do argumento.


Embora falte maturidade ao diretor em extrair o melhor do seu próprio ‘plot’, o que fica claro, em especial, na telegrafada reviravolta final, daquelas que poderiam render muito mais se não fossem tão “escondidas” pelo roteiro, Terminal é um thriller de vingança pop e positivamente insano, uma obra corajosa ao valorizar a tensão (e o visual) em detrimento da ação. No embalo da sensorial trilha sonora da dupla de compositores de Mulher-Maravilha e da arrasadora performance de Margot Robbie, Vaugh Stein reverencia alguns influentes ‘hits’ cults num suspense insinuante, imersivo e a sua maneira peculiar. Uma obra que, mesmo intrigando e empolgando nos momentos certos, deixa a sensação que poderia funcionar ainda melhor se tivesse tirado o máximo proveito do potencial dramático escondido no arco revanchista.

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