George A. Romero, publicamente,
nunca escondeu que buscou em O Parque Macabro (1962) a inspiração para tirar do
papel a sua grande obra-prima, o icônico A Noite dos Mortos-Vivos (1968). E as
referências são claras. O cenário naturalmente 'creep'. A semelhança física
entre as instáveis protagonistas. Os pálidos "antagonistas". Um forte
comentário social. É possível enxergar muitos paralelos entre estas duas
influentes obras. O impacto de Carnival of Souls (no original), entretanto, foi
muito além da obra de Romero. Na verdade, bastam alguns minutos de projeção
para percebemos que estamos diante de uma produção muito à frente do seu tempo.
Vamos aos fatos. Se você gostou de títulos como O Sexto-Sentido, Os Outros, A Espinha
do Diabo e O Orfanato, o suspense 'indie' dirigido por Hank Harvey merece
entrar na sua lista.
Uma espécie de "avô"
dos longas citados acima, esta pequena pérola estrelada pela expressiva Candace
Hilligoss causa arrepios desconfortáveis ao narrar a jornada de uma pianista
solitária que, após sobreviver a um acidente de carro, passa a conviver com
espantosas aparições. A partir desta instigante premissa, Hank Harvey testa a
nossas expectativas ao investir numa história genuinamente sinistra, valorizando
a atmosfera sombria\realística da trama enorme originalidade. Enquanto, na
atualidade, a maior parte dos filmes do gênero parecem se preocupar
demasiadamente com os sustos fáceis e com o choque pelo choque, num passado não
muito distante era legal ver o cuidado dos realizadores em valorizar o cenário,
a imersão, a crescente sensação de opressão em torno da vulnerável
protagonista. Fazendo um primoroso uso da texturizada fotografia em preto e
branco, Harvey esbanja sagacidade ao traduzir visualmente os dualismos
presentes na trama, ao criar um contraste entre a luz e as sombras, entre o dia
e a noite, preparando o terreno para a construção de um provocante suspense
psicológico. Com enorme pulso narrativo, o diretor é cuidadoso ao plantar as
dúvidas na cabeça do espectador, ao estabelecer as suas insinuantes perguntas.
Estaria a assustada Mary Henry tendo contato com entidades fantasmagóricas? Ou
então as suas "visões" seriam fruto de uma mente traumatizada pelo
choque? Sem a intenção de dar respostas fáceis, o argumento enerva ao traduzir
o processo de deterioração físico\emocional da pianista, ao capturar as suas
reações de pavor diante das constantes aparições.
Num requintado 'mise en scene',
enquanto nos planos mais abertos Henry se esforça para realçar os contrastes em
torno dela, a sua gradativa inércia pós-traumática, nos planos mais fechados
ele se concentra nas expressões de angústia da protagonista, potencializado o
viés 'creep' da obra graças aos assombrosos olhares vidrados de Candance
Hilligoss. Uma atriz com inegáveis recursos que, apesar da sua memorável
performance como a desequilibrada Mary Henry, não conseguiu alçar voos mais
altos em Hollywood. Por falar no aspecto mais arrepiante da película, Hank
Harvey esbanja criatividade ao criar uma película genuinamente assustadora. Se
num primeiro momento o realizador preza pelo minimalismo ao investir em
impactantes 'jump-scares', aos poucos a coisa começa a ficar cada vez mais
tensa, culminando num clímax que ainda hoje, mais de cinco décadas depois do
lançamento segue causando um frio na espinha. Um predicado, verdade seja dita,
incrementado pela capacidade do realizador em valorizar o aspecto gótico da
premissa, em buscar no visual soturno do Expressionismo Alemão as referências
para a construção do 'look' das suas sinistras criaturas e na concepção de
alguns dos cenários. O que fica bem claro, em especial, no abandonado parque
que deu nome ao título nacional e na maneira com que Harvey opta por filmá-lo.
Tudo, na verdade, soa naturalmente desconfortável na produção, um sentimento
que se aflora à medida que a história avança.
O grande trunfo de Carnival Of
Souls, entretanto, está no corajoso subtexto da história. Numa época em que a
independência feminina ainda era vista como um tabu, o longa é inteligente ao
associar a jornada da solitária protagonista à luta das mulheres pelo direito
de caminhar com as suas próprias pernas. Reparem, por exemplo, como os
"fantasmas" parecem julgar àquela mulher, desaprovar o seu
comportamento autossuficiente. Num íntimo estudo de personagem, o diretor é
astuto ao desvendar os anseios de Mary, ao estabelecer o seu velado sentimento
de culpa por não seguir os "padrões sociais" da época. Por mais que o
seu moderno comportamento, aos olhos do público atual, seja exemplar, a forma
com que todos a "enxergam" diz muito sobre as reações da personagem,
uma abordagem criativa principalmente por colocar o dedo na ferida da face mais
conservadora da sociedade norte-americana. Mais do que uma simples cereja no
bolo, este viés feminino faz de O Parque Macabro um filme a frente do seu
tempo, uma obra tensa, tenebrosa e reflexiva que, embora não tenha se tornado
um 'hit' do seu tempo, influenciou direta e\ou indiretamente nomes do quilate
de George Romero, David Lynch, James Wan, Guillermo Del Toro, M. Night
Shyamalan. O que, por si só, já é o bastante para definir a importância desta
obra.
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