domingo, 14 de novembro de 2021

Crítica | Corajoso ao discutir o colorismo, Identidade se rende aos contrastes visuais num drama que troca o lugar de fala pelo silêncio revelador


Identidade é um filme ousado. No seu longa de estréia na direção, a atriz Rebecca Hall resolveu tocar em um tema complexo ao discutir o colorismo num drama em P&B sobre duas mulheres negras aprisionadas numa estrutura social racista. Sobra estilo ao original Netflix. O formato de tela quadrangular "sufoca" as protagonistas ilustrando a real posição de isolamento delas no vulnerável contexto proposto. A luminosa fotografia em tons lavados com pouco contraste parece pensada para potencializar o indignante processo de "camuflagem" racial estabelecido. Durante um passeio pela parte branca da cidade de NY, Irene (Tessa Thompson) é pega de surpresa ao encontrar um rosto conhecido, a radiante Claire (Ruth Negga). O desconforto é instantâneo. Algo não estava certo.

"O seu marido sabe?", pergunta a protagonista ao sugerir um segredo inquietante. É fascinante ver como Identidade usa o visual à serviço do drama. Hall retorna aos anos 1920 com um olhar artístico para o racismo que reprimia mulheres como Irene e Claire. A fotografia em tons pálidos nos impede de identificar rapidamente o chocante objeto de análise. O que torna a experiência intrigante. A diretora nos obriga a mergulhar no contexto para entendermos o desespero reprimido por uma fina camada de tinta branca na pele negra. Um drama que marcou a família de Hall. Filha da cantora de ópera Maria Ewing, a cineasta buscou inspiração na história do avô, um homem afro-americano que se "travestia" de branco na busca por aceitação, para escrever o roteiro baseado no livro de 1929 de Nella Larsen.

Identidade é corajoso ao discutir as sequelas do preconceito na intimidade destas mulheres negras. Para se "adaptar", Claire renega as suas raízes. O que choca Irene. A diretora é minuciosa ao estabelecer o aparente abismo que as separava. Tudo é uma questão de cor. Por ter uma pele mais clara, Irene nunca precisou se sacrificar tanto para ser aceita. O roteiro é sutil ao enxergar na discussão velada sobre o colorismo um elo entre as personagens. Existe identificação entre elas. Existe também uma inveja latente e uma cobiça crescente. Não demora para notarmos que Irene também escondia segredos íntimos...

A diretora é sutil ao atacar a contradição delas. O racismo consome a identidade das personagens criando distorções angustiantes. Irene inveja a "liberdade" sedutora da mulher negra que se passa por branca. Claire, por sua vez, desejava a rotina funcional da mulher negra que levava uma "vida de branca''. No fundo, Irene e Claire se isolavam na mesma carapuça à procura de uma ilusória sensação de conforto. O masculino, na figura dos maridos vividos por um inquieto André Holland e um odioso Alexander Skarsgard, surge para expor as incoerências delas. Enquanto Irene relutava em enxergar o perigo escondido na fachada criada, Claire enfrentava o racismo diário com um sorriso no rosto. Por que tanto esforço?

O drama racial proposto em Identidade é pulsante. É frustrante notar, contudo, que estamos diante de um longa por vezes disperso que peca ao analisar as sequelas dessa complexa relação a partir da intimidade das personagens. Rebecca Hall se rende ao lugar comum da rivalidade feminina ao simplificar aquilo que deveria ser profundo. Com um olhar lacônico sobre o tormento de Irene, a realizadora avança sobre o tema com um senso de sobriedade que se confunde com frieza, construindo a deterioração da protagonista a partir de sugestões vazias e simbolismos genéricos. Um estudo de personagem irregular ao traduzir a aflição de uma mulher negra aprisionada.

Apesar das intensas performances de Tessa Thompson e Ruth Negga (essa última gritando através do olhar), Hall desperdiça oportunidades ao trocar o lugar de fala pelo silêncio teoricamente revelador. Os atos de Claire, em especial, ficam muito reduzidos à distorcida visão enciumada da "amiga". A realizadora parece mais preocupada em pensar a forma do que o conteúdo. Nem só de requinte estético deve viver um filme… Identidade é uma obra virtuosa (e importante) que perde fôlego ao concentrar no visual as discussões sobre os contrastes num meio racista. Nós enxergamos a dor de Irene e Claire, mas a chance de sentí-las nunca é nos dada. O que, de certa forma, reflete a perspectiva parcial de Hall sobre o tema. Uma abordagem hermética sobre um problema estrutural que merecia um tratamento mais universal.

Nota: Passing (título do longa no original) era o termo utilizado para taxar este degradante processo.

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