A revolta dos cães
Lançado no Brasil no final de fevereiro, justamente no período em que os
indicados ao Oscar geralmente tomam conta do já enxuto circuito de arte
nacional, Deus Branco (White God, no original) é uma fábula urgente e visceral que não merece passar
despercebida. Conduzido com enorme intensidade pelo diretor Kornél Mundruczó, o
longa esbanja originalidade ao propor um corajoso duelo de classes
dentro de um cenário absolutamente singular. Ainda que a temática em questão
não seja propriamente uma novidade, o realizador húngaro coloca o dedo na ferida ao
expor sob um primitivo ponto de vista o impacto da violência e da desigualdade
na rotina dos marginalizados, utilizando o "melhor amigo do homem" como o instrumento para a construção de uma mensagem universal e naturalmente devastadora. Numa
sacada de mestre, ao invés de retratar esta dolorosa realidade dentro de uma
perspectiva mais tradicional, Mundruczó volta a sua inventiva mira para o
universo canino, escancarando através destes simpáticos animais a faceta mais hostil
e desprezível dos seres humanos. E isso sem precisar apelar para os recursos do
CGI, o que só amplia o nível qualidade e realidade desta crítica película.
Recebido com entusiasmo na edição 2014 do Festival de Cannes, onde
faturou, inclusive, o concorrido prêmio na mostra Un Certain Regard, Deus
Branco é um daqueles trágicos relatos que parecem se antecipar aos fatos. Isso
porque, um ano depois do lançamento do longa, a Hungria se viu no centro da
crise dos refugiados sírios, uma situação calamitosa que rendeu uma série de
relatos desoladores, entre eles a amplamente divulgada agressão de uma
cinegrafista a um dos expatriados. Não se engane, porém, com a aparente
especificidade do enredo. Mesmo rodado num cenário tipicamente europeu, o
argumento assinado pelo próprio Mundruczó, ao lado de Viktória Petrányi e Kata
Wéber, é impecável ao passear por temas totalmente urbanos e ao traduzir a desigualdade
enfrentada por parte da população nas grandes metrópoles. Na trama, filha de
pais separados, a musicista Lili (Zsófia Psotta) é obrigada a se mudar para a
casa do seu pai biológico, o cabisbaixo Daniel (Sándor Zsótér), durante três meses. Ao chegar no prédio, no entanto, uma das vizinhas reclama da presença de Hagen,
o seu fiel cão, e decide denuncia-los ao centro de zoonose. Surpreendido com a
visita de um inspetor, Daniel decide colocar o cachorro num abrigo, causando
uma raivosa reação na sua filha. Separados à força, enquanto o acuado Hagen se
vê obrigado a experimentar a hostilidade das ruas, a solitária Lili resolve
fazer de tudo para reaver o seu amigo, iniciando uma jornada capaz de causar
uma grande revolução pelas ruas da Hungria.
Impulsionado pela fantástica sequência de abertura, um plano instigante
e incrivelmente realizado que nos conecta quase que instantaneamente à trama,
Deus Branco é inicialmente cuidadoso ao construir a cativante relação entre
Lili e Hagen. Sob um ponto de vista mais intimista, Kornél Mundruczó esbanja
sensibilidade ao realçar a cumplicidade entre a menina e o seu fiel cachorro,
uma amizade sincera estabelecida com primor ao longo do envolvente primeiro
ato. A cena em que os dois são separados, por exemplo, é de cortar o coração,
um momento denso e emotivo capturado com espantosa beleza pelas lentes do
diretor húngaro. Digo mais, apesar do precioso contexto sócio-político da
trama, é na parceria entre os dois que reside a força motora da película,
principalmente quando o roteiro decide explorar os paralelos entre as atitudes
de Lili e Hagen. Nas entrelinhas, inclusive, é possível perceber um perspicaz
questionamento envolvendo o peso do divórcio na rotina de uma adolescente, o
que fica bem claro quando percebemos a reação da jovem, e consequentemente do
seu cão, diante do repentino abandono. Neste sentido, aliás, é preciso elogiar
também a maneira humana com que o longa conduz a complicada conexão entre o
ausente pai e a sua inconformada filha. Ainda que de forma breve, o diretor se
esquiva dos clichês ao abrir um espaço suficiente para o desenrolar desta
distante relação, permitindo que o espectador enxergue o amor por trás da raiva
e da solidão exprimida pelos dois personagens.
É quando se volta para o agressivo tom fabulesco, no entanto, que o
argumento revela a sua originalidade. Por mais que o cenário apresentado no
longa não seja propriamente uma novidade, vide o clássico literário A Revolução
dos Bichos e a nova versão de O Planeta dos Macacos, Kornél Mundruczó caminha
por um terreno mais espinhoso ao utilizar a (pseudo) irracionalidade dos
animais para realçar o primitivismo dos próprios humanos. Fazendo um excelente
uso do senso comum envolvendo a personalidade canina, àquele que diz que o cão
é um reflexo do seu dono, o realizador húngaro usa a degradante jornada do
inocente Hagen para revelar o impacto da violência, da desigualdade social e do
completo abandono na rotina dos marginalizados. Sem perder a mão, Mundruczó não
poupa ao espectador ao reproduzir a brutalidade por trás desta devastadora
realidade, flertando com elementos mais contundentes à medida que a trama
desvenda os motivos por trás de tamanha revolta. Melhor ainda, aliás, é a
maneira com que o realizador explora a questão da raça dentro da película. Numa sagaz opção, o argumento estabelece um universo em que apenas os cães mestiços, os
populares vira-latas, são perseguidos pelo governo, no caso o centro de
zoonose. Para serem tratados como "iguais", os donos precisavam pagar
uma espécie de taxa, uma licença para mantê-los inseridos na sociedade, o que
obviamente se torna o estopim para a revolução liderada por Hagen. Uma sacada
realmente inteligente, já que universaliza alguns dos mais enraizados dilemas
sociais sem precisar apontar o dedo para determinada região ou conflito.
Por outro lado, embora a explosão de violência no terço final seja
compreensível dentro deste contexto fabulesco, a crítica social perde força no momento em que a
revolta pessoal de Hagen assume o protagonismo. Na verdade, o argumento peca pelo preciosismo ao dar um "desfecho" para todos os personagens que
cruzaram o caminho do cão, inflando um último ato que poderia ser
brilhantemente resolvido com cinco minutos a menos. Isso porque o reflexivo
clímax é primoroso, um desfecho comovente, poético e totalmente coerente com o
teor igualitário defendido pelo filme. Contudo, o chamariz de Deus
Branco reside na utilização do numeroso
"elenco" canino. Apesar das dificuldades envolvendo a utilização de
animais no set de filmagens, Kornél Mundruczó esbanja categoria ao trabalhar com cerca de duzentos cães nos planos mais abertos,
ampliando o senso de fúria e realismo em torno dos ataques da matilha. Além
disso, impulsionado pela ágil e engenhosa fotografia de Marcell Rév, o diretor impressiona ao filmar os movimentos e as expressões dos animais com extrema
naturalidade, principalmente quando o assunto é o simpático Hagen. Preocupado em capturar os instintivos movimentos do labrador,
Mundruczó supera os desafios ao coloca-lo ora em situações de extrema violência,
ora em situações mais emotivas, criando uma série de momentos críveis e
absolutamente densos. Na boa, o olhar de tristeza do cão é tão puro e
honesto que fica difícil de traduzir em palavras. E isso, é bom frisar, sem
que o estado físico dos animais fosse colocado em risco. Nas cenas mais hostis,
inclusive, o diretor é habilidoso ao utilizar o poder de sugestão e a afiada
montagem, evitando que os animais dividam a tela com os atores nestes momentos
mais ríspidos.
Contando ainda com a energia jovial da surpreendente Zsófia Psotta,
impecável ao transmitir o misto de inocência, raiva e amadurecimento da sua
Lili, Deus Branco é um drama crítico e visceral sobre uma realidade cruel
geralmente negligenciada nas grandes metrópoles. Com uma trilha sonora
imponente, uma direção vigorosa e um roteiro recheado de camadas, este
instigante exemplar do cinema húngaro consegue construir uma poderosa crítica
social sem abdicar do entretenimento, nos brindando com uma fábula reflexiva
capaz de provocar as mais variadas emoções ao narrar a desventurada jornada de
uma isolada jovem e o seu fiel amigo cachorro. Não espere, porém, um daqueles
filmes adocicados e otimistas. Quando necessário, Kornél Mundruczó não se
incomoda em retratar a violência presente na nossa sociedade sob o ponto de
vista canino, o que pode se tornar um problema para os espectadores mais
sensíveis à causa. Os fins, no entanto, justificam os meios, principalmente
quando percebemos que, em sua interpretação mais óbvia, a película levanta uma
gigantesca bandeira em defesa do direito dos animais.
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