segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Crítica | "Todos Estão Falando sobre Jamie" rompe com o discurso afirmativo plastificado ao ouvir a verdade de um rapaz em formação


Filmes LGBTQIA+ como Todos Estão Falando sobre Jamie, até bem pouco tempo, eram uma exceção da regra na indústria do cinema. A lógica, numa época em que temas como a afirmação e a representatividade não estavam tão em voga no mainstream, era apelar para o drama humano ou para a caricatura visando o lucro. Para cada filme empoderador como Priscila: A Rainha do Deserto existia uma dezena de obras realistas como Philadelfia e/ou cartunescas como A Gaiola das Loucas. Uma abordagem limitante (para não dizer oportunista) que, só nos últimos anos, começou a cair em desuso. O conceito de 'pink money' tornou o universo queer atraente para os estúdios. Um fato que, combinado com o clamor do público LGBT por representação, abriu portas para outras produções.

Existe, contudo, o bônus e o ônus. Tal qual no passado citado acima, muitos longas têm investido num discurso igualitário/afirmativo plastificado pensado para vender. Temia que Todos Estão Falando sobre Jamie fosse mais um destes títulos artificiais. O longa dirigido por Jonathan Butterell, porém, traz consigo um adjetivo que anda em falta nestas produções: verdade. Com base numa comovente história baseada em fatos que se tornou um popular musical britânico, a produção Amazon rompe com uma cartilha pasteurizada ao defender um delicado estudo sobre a construção da identidade de um jovem gay num meio repressor.



O maniqueísmo barato não tem vez aqui. O foco está na ignorância que ergue muros e na coragem daqueles que os destroem. O cineasta não precisa pesar a mão para estabelecer a angustiada rotina de um jovem reprimido no último ano do Ensino Médio. É fascinante ver como Todos Estão Falando sobre Jamie já começa projetando o futuro.

Quando a realista (e contraditória) professora vivida por Sharon Horgan questiona o garoto sobre o seu próximo passo, a certeza dele se aflora na intimidade. O público sabe que Jamie (Max Harwood) quer ser uma drag queen. Um número musical delirante invade a tela para expor o sonho do rapaz. Aos olhos dos colegas, no entanto, ele só diz que queria ser um artista. Uma precaução que diz muito. Uma precaução que norteia uma história de afirmação com raízes sólidas.

É interessante ver como o "armário" não é o problema aqui. Butterell, também diretor da versão dos palcos, avança na discussão ao refletir sobre a construção da identidade de um rapaz gay. O roteiro, a partir de dilemas condizentes com a pacata cidade, é honesto ao tocar em temas reconhecíveis para a comunidade LGBT. Do medo de se expor a frustração em não ser ouvido. Da euforia em ser aceito às dúvidas sobre o futuro. Embora flerte com a superficialidade, o longa usa as adocicadas convenções dos musicais para acessar a rotina de Jamie com uma verve fashion e ao mesmo tempo intimista.

O fato do foco estar na revigorante relação entre o garoto e a sua incentivadora mãe (Sarah Lancashire) só ajuda a expor os perigos em torno da jornada de amadurecimento de um jovem protegido num lar funcional. Sempre que fura esta bolha superprotetora, Jamie encontra dúvidas, mentiras e desilusões. O adolescente canta a sua afirmação e as suas inseguranças. A construção da identidade passa por isso. Não por um número musical estilizado, mas pelos passos em falsos que surgem no caminho.

Todos estão Falando sobre Jamie atinge as suas notas mais desafiadoras quando usa a busca do protagonista pelo seu verdadeiro eu como uma ponte para o estudo sobre o "nós". O mentor vivido por Richard E. Grant (fabuloso) é puro ouro. O musical em que ele conta a "sua história" para Jamie é de uma beleza rara. Ali, com riffs que remetem ao melhor do Pop/Rock de 1980/90, o longa encontra a chance de celebrar a resiliência da comunidade LGBTQIA+. Assim se constrói uma história de empoderamento. Olhando para o passado para projetar o futuro.

Com números musicais cativantes e algumas criativas referências à linguagem dos videoclipes, Todos estão Falando sobre Jamie peca num único ponto: o desempenho vocal. O talentoso elenco alcança as notas emocionais exigidas pelo texto, mas derrapa nas harmônicas. O performático Max Harwood, em especial, segura as suas canções no "carão". O que até faz sentido numa obra sobre um garoto que queria ser drag queen. Somado a isso, mesmo com coadjuvantes tão interessantes em mãos, o diretor centraliza tudo na figura de Jamie. O que, principalmente na relação com o pai vivido pelo expressivo Ralph Ineson, atenua o potencial dramático do longa. Um pacote de problemas que não afeta a principal virtude do texto. Todos estão Falando sobre Jamie respeita a verdade de muitos num filme que não se afirma através da voz ou da espetacularização, mas das atitudes de um garoto em plena metamorfose.

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