sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Crítica | Refém da literalidade dos fatos, "A Menina Que Matou os Pais" exclui o contraditório da equação num filme com pouco a revelar sobre o caso Von Richthofen



É inegável a ousadia em torno do projeto A Menina que Matou os Pais. Embora não seja uma novidade, o infame Harvey Weinstein produziu em 2013 o subvalorizado Dois Lados do Amor, um romance melancólico dividido em dois filmes (e um corte posterior com a junção deles) sobre um casal às avessas com o divórcio, o longa dirigido por Maurício Eça conseguiu atrair a atenção do público ao propor um conceito de biografia imparcial. A ideia sempre foi dar ao espectador o poder de julgamento sobre o caso Von Richthofen. A ideia era reconstituir os fatos seguindo as versões dos criminosos. Após a incerteza quanto ao lançamento do filme em meio a pandemia, os produtores encontraram no streaming, mais precisamente na Amazon, a chance de "vender" um conceito interessante. 


A iniciativa de estudar a brutal morte do casal Manfred (Leonardo Medeiros) e Marísia (Vera Zimmerman) a partir dos depoimentos dos assassinos Daniel (Leonardo Bittencourt) e Suzane (Carla Diaz) era promissora. Logo nos primeiros minutos da obra, contudo, o tiro começa a sair pela culatra quando percebemos a crise de confiança narrativa de uma produção presa à literalidade dos fatos. O problema não está na maneira com que o roteiro assinado por Illana Casoy (criminóloga autora do livro O Quinto Mandamento) e Raphael Montes busca respaldo nas versões construídas diante do júri para sustentar a narrativa. Ao jogar limpo com o público neste aspecto, eles prometiam um documento da realidade no melhor estilo 'true crime'. Uma sugestão alimentada pela maneira objetiva com que o cineasta remonta ao caso. 


Na prática, porém, devido a divisão proposta, o resultado é uma experiência incompleta que mais omite do que insinua. Um filme não só refém das versões dos criminosos, como também da sua própria estrutura. Em A Menina que Matou os Pais vemos a história sob o ponto de vista dele. No banco dos réus após o assassinato, Daniel Cravinhos se "abre" perante o público num processo de tentativa de persuasão. Após um primeiro ato engessado (com direito a correlações óbvias a partir da narrativa em flashback), o longa cresce quando mergulha na intimidade do protagonista. Quando enxerga o comportamento ora acuado, ora inconsequente de Suzane. Quando expõe o elitismo da família Von Richthofen e o preconceito dos pais dela para com a sua condição social. A sequência do encontro entre famílias traz consigo um peso que o longa se recusa a explorar. O mais difícil, na verdade, Eça consegue fazer: estabelecer hipóteses desconfortáveis que justifiquem a motivação para o crime. 


Uma abordagem competente esvaziada pelas escolhas narrativas do projeto. A ideia de dividir a produção em dois filmes aniquila o choque de versões proposto. Não existe espaço para o contraditório aqui. Nem tão pouco para intervenções criativas. O diretor sugere lacunas nunca preenchidas. Ele perde oportunidades ao não dar voz a outras peças em torno deste complexo caso. O julgamento não está em foco. A relação dos pais de Daniel com Suzane não está em foco. A reação do inocente Andreas (Kauan Ceglio) aos fatos é criminosamente descartada pelo roteiro. O longa se contenta em jogar os holofotes sobre o que já foi dito. Nem o circo midiático tem vez aqui.


Um pacote de escolhas simplórias que prejudica também a escalada de tensão envolvendo uma relação passional um tanto esquizofrênica. Os breves momentos de interseção entre os dois projetos não são o bastante para devassar a intimidade do casal. O roteiro nunca toma liberdades narrativas e/ou estéticas. Tudo é muito protocolar. A linear estrutura narrativa é tocada de forma bem burocrática ao ponto de subaproveitar até mesmo o efeito sedutor de Suzane sobre Daniel. A única exceção, de fato, fica pela maneira com que Eça flerta com a estilização visual sempre que a assassina mostra a sua face mais insana. O longa depende muito da presença sinistra de Carla Diaz para impactar. 


Nada incomoda mais, porém, do que a maneira descuidada com que o diretor arquiteta as motivações dos assassinos. Para não invadir a intimidade de Suzane (tema do outro filme), Eça investe em elipses que tornam as reações da personagem um tanto confusas. A complexidade está naquilo que não vemos. O roteiro até ensaia humanizar a figura da jovem, mas, no fim, parece preso à imagem de psicopata estabelecida pela mídia e vendida na campanha de marketing do projeto. Esse era o caminho mais fácil… O que respinga na performance de Carla Diaz. 


Ao surgir com um sinistro olhar psicótico já na primeira cena, a atriz não consegue se distanciar da imagem insana associada a sua personagem. Fica claro que ela se preocupou demais em absorver maneirismos na construção da protagonista. Um vício bem comum em cinebiografias. Por outro lado, ao longo do processo, Diaz "naturaliza" este olhar maquiavélico ao ponto de nos convencer que ali poderia estar uma vítima. O que, de fato, é bem impressionante. Vale lembrar que, na época do crime, Suzane ficou conhecida pelo seu poder de persuasão. Um traço que Carla explora com aptidão.


Uma pena que, devido à abordagem pré- estabelecida pelo texto, o foco do longa nunca esteja na "verdade" da menina Suzane, mas na da assassina Suzane. Eça acaba por julgar a personagem com suas escolhas. Ele, ainda que involuntariamente, só sustenta a versão que acabou sendo acatada pelo júri. Uma escolha limitante que ajuda a explicar o desastroso último ato. A falta de tato dramático do realizador ao reconstruir a cena do assassinato é gritante. Tudo é jogado na cara do espectador sem qualquer tipo de profundidade. A potencial história de manipulação defendida na versão de Daniel (Leonardo Bittencourt é um mero peão aos olhos da trama) se esvai diante da incapacidade do cineasta em abordar as emoções em torno do brutal ato criminoso. 


Com uma visão reducionista sobre o assassinato, A Menina que Matou os Pais não nos convence em momento algum que a segunda versão é de fato imprescindível. Ainda assim, em meio às inúmeras lacunas narrativas, o longa merece o crédito por alimentar algumas dúvidas que nos fazem enxergar o caso sob um novo olhar. 

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