quarta-feira, 14 de julho de 2021

Crítica | Viúva Negra

Emancipação e frustração


O MCU errou com Natasha Romanoff. A primeira grande representante feminina do Universo Vingadores sofreu com a hipersexualização, com a ausência de voz e com a falta de perspectivas no engenhoso tabuleiro Marvel. A personagem custou a ter a sua importância reconhecida. Custou a ser realmente tratada como uma Vingadora. A Marvel Studios, porém, parece ter a exata noção disso. Viúva Negra é um ‘mea culpa’ tardio. É um tanto contraditório que uma das peças mais desvalorizadas em grande parte da franquia tenha a “inglória” missão de abrir a tão esperada Fase 4 do MCU. Por que só agora? Quase que como um “apêndice” narrativo? A resposta, a meu ver, diz menos sobre a heroína e mais sobre o que está por vir. É nesse ponto que a promissora diretora Cate Shortland (do excelente drama Lore) se apega para garantir a relevância de um projeto fora de ‘timing’. Viúva Negra parte de um plot com um forte quê metalinguístico para refletir sobre o controle e a libertação do feminino dentro do Universo Cinematográfico da Marvel. 

O vilão, aqui, é um executivo. É o homem que manipula as cordas. Um tipo que “aprisiona” mulheres em prol de uma missão. Ele é um predador. O paralelo com a realidade da indústria do cinema fica evidente quando notamos o modus operandi de Dreykov (Ray Winstone) e a sua busca insaciável por jovens. Natasha (Scarlett Johansson) foi “apenas” mais uma destas vítimas. Treinada para matar em nome da URSS, ela conseguiu se libertar das garras de um regime opressor e se tornou uma Vingadora. Todo mundo conhece essa história. A verdade, porém, é mais ambígua. O roteiro assinado por Jac Schaeffer e Eric Pearson é sagaz ao sugerir um contraponto. O fato da trama se passar logo após a rixa causada em Capitão América: Guerra Civil (2016) tem muito a dizer sobre a realidade da protagonista. Ela se libertou mesmo? Ou se tornou refém de um novo regime opressor? Disposta a fugir do radar do General Ross (William Hurt), Natasha volta para “casa” na tentativa de ter um pouco de paz. Isso até descobrir que a sua “irmã” Yelena (Florence Pugh) era mais uma vítima da Sala Vermelha e do odioso homem que a transformou numa impiedosa máquina de matar.

O rompante de coragem em Viúva Negra está na maneira com que Cate Shortland usa este plot envolvendo a exploração do feminino para repercutir a fragilidade de Natasha dentro do universo que ela habitava. De longe o elemento mais sólido do roteiro, a arredia relação entre irmãs aquece esta discussão. Yelena ora e vez coloca o dedo em feridas que testam a diegese da trama. Seria Natasha, aos olhos do MCU, uma destas agentes “manipuladas” a serviço de algo maior? Nós percebemos a consciência crítica do texto quando a empoderada personagem vivida pela magnética Florence Pugh zomba das “poses” da sua irmã em combate . O filme trabalha com a certeza de que Natasha era negligenciada por seus amigos e também por seus “criadores”. A diretora sugere uma ruptura neste senso de plasticidade masculinizado. Yelena é o futuro. Ela não tolera ser usada. Natasha, por outro lado, é o passado. A passagem de bastão, aqui, deixa o sabor amargo da oportunidade perdida. Este filme deveria ter sido em lançado em outro contexto... 

No momento em que coloca a jornada de libertação das demais agentes em segundo plano, Viúva Negra se torna um filme frustrantemente comum. Uma obra com diversos subplots repletos de potencial que, devido a abordagem tardia, são diluídos num roteiro obrigado a condensar o estudo de uma complexa personagem em 130 minutos. Natasha merecia mais. Limitada pela falta de tempo e espaço, Cate Shortland nunca mergulha de fato na intimidade da heroína. A cineasta simplifica tudo ao tratar a dinâmica familiar como um instrumento de humanização da protagonista. Como se só ao lado dos seus velhos pares nós pudéssemos acessar a verdade dela. Apesar da dedicação do talentoso elenco, o processo de reconexão familiar pensado pelo texto confunde drama com sentimentalismo. Tudo é muito superficial. Os diálogos expositivos e o inchaço gerado pela necessidade de se introduzir três novos personagens impedem que o longa torne o viés intimista convincente. Não à toa, é através da figura do vilão Treinador (numa surpreendente releitura) que o roteiro consegue tratar com propriedade os fantasmas de Natasha e o estrago causado por este processo de manipulação na sua formação. Antes de ser heroína, a Viúva Negra era uma assassina. 

Um fato que Cate Shortland, convenientemente, se recusa a abordar. O que, de certa forma, ajuda a explicar a falta de peso do filme enquanto um thriller de espionagem e o frouxo senso de ironia da obra enquanto comédia sobre uma disfuncional prole de espiões. O Guardião Vermelho, em especial, é uma piada que não emplaca. E a culpa não é do carismático David Harbour. O roteiro nunca se compromete com a decadência do Capitão América da URSS. A composição do idealista personagem é melhor que o seu desenvolvimento. Um problema que, aliás, respinga também na ação. Viúva Negra carece de momentos de genuína empolgação. Shortland é competente ao conduzir as lutas num ambiente micro. A fotografia em gélidos tons de branco e vermelho de Gabriel Berinstain (Blade 2) emoldura o funcional jogo de câmera com vigor. As sequências vertiginosas são dignas de nota. Radiante como de costume, Scarlett Johansson sustenta o protagonismo neste filme solo com uma naturalidade revigorante. A química entre ela e Florence Pugh é incendiária.

Quando resolve expandir a ação, contudo, a cineasta peca pela artificialidade. O senso de geografia é um problema. Os personagens somem e ressurgem ao bel prazer do roteiro. A realizadora parece podada em vários momentos. Nada é muito definitivo. Nada é muito profundo. Nada é muito memorável. Tudo, no fim, segue sendo parte de uma engrenagem maior. Viúva Negra, entretanto, defende uma transformação. O longa impacta enquanto instrumento de emancipação feminina dentro do MCU. A mudança está acontecendo. Dentro da ficção e fora dela. Uma pena que a “libertação” tenha chegado tardiamente para Natasha Romanoff. 

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