quarta-feira, 8 de julho de 2020

Crítica | Aberrações (Freaks)

De fazer inveja a qualquer blockbuster

Lançado sem grande alarde nas principais plataformas de VOD, Aberrações (2018) é o tipo de obra que vou sempre exaltar. É muito feito com pouco. Um thriller instigante com desdobramentos surpreendentes que transita entre gêneros com desenvoltura sem nunca sacrificar a sua natureza reflexiva. Sob a criativa batuta da dupla Zack Lipovski e Adam B. Stein, o longa estrelado pela expressiva Lexy Kolker é intuitivo ao investigar os segredos em torno da trama, fisgar através deles e explodir a partir deles. 

No papel, Aberrações acompanha os passos da pequena Chloe (Kolker), uma garotinha afetuosa criada isolada do mundo pelo seu pai superprotetor (Emilie Hirsch, de volta aos ótimos filmes).­ Mais do que focar nos mistérios em torno da postura reclusa da figura paterna, Zack Lipovski e Adam Stein esbanjam perspicácia ao, num primeiro momento, utilizar o contexto para desenvolver os seus personagens, entender pouco a pouco as suas motivações. A dupla é inteligente ao, a partir de medos reais, refletir sobre reconhecíveis dilemas parentais na formação de uma criança. O mundo é um lugar naturalmente ameaçador. Aqui, porém, a ameaça ganha um novo sentido diante da obsessão do pai. O que lhe causava tanto medo? Alienígenas? Zumbis? Um vírus mortal? Ou tudo não passa da criação de uma mente perturbada? Mesmo enquanto não oferecem respostas definitivas, Zack Lipovski e Adam Stein conseguem alimentar a imaginação do público. As pistas surgem para acrescentar e não para enganar. Aos poucos, naturalmente, a verdadeira natureza da obra é exposta. E Freaks (no original) só cresce com isso.

No momento em que se “liberta” do cenário central, a dupla consegue não só potencializar o drama da protagonista, como também desenvolver com maestria os desdobramentos das suas descobertas. O dúbio vendedor de sorvetes vivido por um inesgotável Bruce Dern ajuda a escancarar os questionamentos em torno da vulnerabilidade infantil. O roteiro redimensiona o conceito de perigo ao focar na ameaça que vem de dentro. Embora não seja uma abordagem nova, Aberrações surpreende ao usar a virada narrativa em prol do estudo sobre a natureza infantil. Exposta e confusa, Chloe é obrigada a enxergar a verdade, a criar uma casca, a reagir. Nas entrelinhas, os cineastas catalisam a precoce jornada de amadurecimento da garotinha ao falar sobre preconceito, sobre segregação, sobre desigualdade. E isso sem nunca sacrificar a ação. Sem querer revelar muito, além de bem estabelecidos, os segredos em torno da protagonista são explorados com entusiasmo ao longo da segunda metade da obra.

Os diretores Zack Lipovski e Adam Stein potencializam a tensão\frisson à medida que percebemos a real posição de Chloe. Os efeitos visuais são dignos de nota. A direção de arte capricha ao traduzir o seu deslocamento. O argumento amarra o clímax com soluções inteligentes. A dupla de diretores conduz tudo com muito pulso e estilo. Por mais que, na transição para o clímax, o longa flerte com as conveniências narrativas em pequenos (grandes!) momentos, Aberrações impacta ao se apropriar de elementos já explorados dentro do cinemão comercial num contexto muito próprio. O frescor ‘indie’ torna tudo mais empolgante, virtuoso e especial. Uma obra de fazer inveja a filmes de centenas de milhões de dólares.


Nenhum comentário: