terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Crítica | Sementes Podres

Os franceses e as suas agradáveis dramédias

Desde que o 'feel good movie' Intocáveis (2011) se tornou um estrondoso sucesso ao redor do mundo, o cinema pipoca francês se viu “tentado” a investir pesado neste agridoce subgênero. Nos últimos anos, como esperado, a produção de títulos do segmento cresceu exponencialmente por lá, mas poucos, bem poucos, conseguiram alcançar um status semelhante ao redor do mundo. Por aqui, de fato, os mais comentados recentemente foram A Família Belier (2014) e Bem-Vindo à Marly-Gomont (2016), dois cativantes dramas familiares de fácil identificação com o grande público. Com potencial para repetir o impacto das produções citadas acima, Sementes Podres esbanja bom-humor ao escancarar os problemas sociais enfrentados por muitos jovens em território francês. Dirigido, roteirizado e estrelado pelo carismático Kheiron, a mais nova produção original Netflix causa um misto de sensações ao invadir uma realidade reconhecível aos olhos de muitos ao redor do mundo, transitando com sensibilidade entre a comédia e o drama ao mostrar como a resiliência pode ser facilmente transformada em aprendizado. 



Num momento em que o drama dos imigrantes ilegais tem causado uma grande comoção em solo Europeu, Sementes Podres é enfático ao mostrar a importância de uma segunda chance. Claramente inspirado por títulos como Meu Mestre, Minha Vida (1989), Mudança de Hábito 2 (1993) e Mentes Perigosas (1995), Kheiron investe numa abordagem revigorante ao acompanhar os passos do malandro Wael, um trambiqueiro de segunda que, com a ajuda da sua compreensiva mãe adotiva, interpretada pela sempre magnética Catherine Deneuve, vivia de pequenos (e inofensivos) golpes no estacionamento de um supermercado. Quando um velho conhecido descobre as artimanhas dos dois, no entanto, ele é obrigado a dar uma de professor substituto para uma turma de desajustados alunos, cobrindo uma lacuna enquanto o novo tutor era selecionado. Com a missão de convencê-los a voltar para uma segunda aula, Wael decide usar os seus truques para buscar um sincero diálogo com eles, sem sequer desconfiar que tinha muito a oferecer a eles.


Sejamos bem claros, Sementes Podres não é um filme impecável. Por trás da sua aura inspiradora existem algumas evidentes conveniências narrativas. A começar, por exemplo, pelo ‘plot’ da trama, a ideia de um homem sem qualquer tipo de formação assumir uma turma com tantos problemas. Por mais que o argumento passe bem a ideia de abandono dos jovens, a sensação de que eles eram quase irrecuperáveis, toda a trama se sustenta numa solução que soa naturalmente forçada. Para piorar, como num passe de mágica, Wael parece preparado demais para lidar com os jovens. Confesso que, neste primeiro momento, cheguei a duvidar do potencial dramático do script, da capacidade de Kheiron em tratar com a devida seriedade um tema tão real. A impactante sequência de abertura, porém, me fez dar um voto de confiança a obra. E, para a minha surpresa, não demorou muito para o realizador me convencer que havia verdade em tudo aquilo. Com um afiadíssimo senso de humor e dinamismo, ele é astuto ao trazer a experiência nas ruas do comunicativo Wael para o centro da trama. Embora a sua falta de formação fosse óbvia, existia uma lógica no modo de agir do improvisado tutor, um processo de conquista de confiança (me arrisco a dizer) brilhantemente construído pelo roteiro. Sem querer revelar muito, o longa encanta ao valorizar o poder do diálogo, a empatia e a capacidade de compreender\ser compreendido, uma troca de experiências cativante que rende sequências ora engraçadíssimas, ora reflexivas. E isso sem um pingo de moralismo, o que torna tudo mais singular\refrescante.


O grande trunfo de Sementes Podres, entretanto, fica pela sagacidade de Kheiron em investigar a infância de Wael e como ela ajudou a moldar o homem por trás de lições tão sabias. Transitando entre o presente o passado do protagonista com desenvoltura, ele surpreende ao investir numa bem montada narrativa não linear, resgatando algumas das suas memórias mais íntimas\reprimidas à medida que ele se depara com os conflitos dos seus “protegidos”. Mesmo sem nunca abrir mão do humor, sempre que necessário o diretor encontra as brechas necessárias para tocar em temas pesados, buscando se aprofundar ao falar sobre violência urbana, abusos sexuais, precocidade juvenil e outros males que muitos adolescentes se vem expostos ao redor do mundo. Embora pese a mão aqui ou ali, um dos flashbacks mais impactantes da obra me soou um tanto quanto improvável, Kheiron compensa ao tirar do papel cenas genuinamente desconcertantes, a maior parte delas filmadas com inegável maturidade. Como não citar, em especial, a cena que uma das suas alunas faz uma dolorosa confissão, um take fortíssimo em que mesmo sem expor a face da personagem em questão ele consegue capturar o misto de medo, vergonha e desespero dela. O mesmo, aliás, podemos dizer das passagens envolvendo o pequeno Wael. Com planos abertos e alguns virtuosos movimentos de câmera, Kheiron exibe recursos ao traduzir a vulnerabilidade do garotinho num cenário de caos, capturando as crueldades enfrentadas\vistas por ele sempre sob a sua perspectiva. Um predicado valorizado pela emocionante performance de Aymane Wardane, que, graças a delicadeza do realizador em extrair a dor dos olhos infantis, ajuda a reforçar o potencial dramático da obra.


Por trás do amargor destas passagens mais duras, porém, Sementes Podres também revigora ao estreitar os laços entre os agradáveis personagens. Embora o longa se prenda demais a figura de Wael, o que explica a pressa do argumento em arrematar os (densos) arcos de alguns dos alunos, Kheiron é cuidadoso ao dar uma reconhecível voz a cada um dos “desajustados”. Através de diálogos ágeis e em sua maioria engraçados, o diretor consegue pouco a pouco entendê-los melhor, expondo as suas respectivas realidades com propriedade. Estamos diante de jovens comuns, com anseios e frustrações universais. Enquanto uns tinham problemas mais sérios para encarar, como o caladão Ludo (Youssouf Wague, intenso) e a irritadiça Shana (Louison Blivet, numa atuação complexa), outros só queriam se fazer entender, como a inteligente Nadia (Louison Blivet, expansiva) e o galanteador Fabrice (Adil Dehbi, puro carisma). Um grupo diversificado que, graças a sagacidade do roteiro em exaltar a disfuncional relação entre eles, tem muito a dizer sobre a realidade da juventude num cada vez mais miscigenado solo francês. Por fim, a cereja do bolo da película fica pela descomplicada relação entre Wael e a sua zelosa figura materna, a compreensiva Monique. Impulsionado pela soberba performance de Catherine Deneuve, Kheiron acerta ao confiar plenamente na evidente química entre os dois, arrancando sucessivas gargalhadas ao revelar o inusitado esforço dela para manter o filho longe dos problemas.


Mesmo flertando com o melodrama ali, com uma solução formulaica aqui, Sementes Podres emociona ao defender que nenhum jovem merece ser tratado como irrecuperável. Com plena convicção na mensagem por trás da sua obra, o que – obviamente – se reflete na sua persuasiva performance, Kheiron se esforça para ir além da casca, conseguindo pintar em tela um cenário infelizmente reconhecível ao redor do mundo. E isso sob uma agridoce perspectiva esperançosa, um bem-vindo sopro de luz num momento em que as pessoas parecem muito mais preocupadas em julgar do que tentar compreender.


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11 comentários:

Antonio disse...

Muito bom, captou a essência do filme.

thicarvalho disse...

Obrigado pela visita e pelo comentário.

Unknown disse...

Uma delicia de filme! Catherine Deneuve em atuação fabulosa

thicarvalho disse...

Realmente. Vi sem grandes pretensões e curti muito. Como é bom ver nomes como os de Catherine Deneuve ainda brilhando em bons papéis. Valeu pelo comentário.

Romes Silva disse...

Muito boa análise. Só achei a nota baixa, merece 4 estrelas.

thicarvalho disse...

Romes 3 estrelas e meia é muito bom. HAHAHAHA Senti que faltou um pouquinho para ser quatro estrelas. Um pouco mais de sutileza em alguns momentos talvez. Mas é um drama muito competente e inspirador. Valeu pela visita e pelo comentário Romes.

Yoshiaki Junior disse...

Bom comentário. Achei um excelente filme, simples e cativante. Me faz pensar em esperança na humanidade. Na minha nota, daria 5 estrelas

Yoshiaki Junior disse...

Bom comentário. Achei um excelente filme, simples e cativante. Me faz pensar em esperança na humanidade. Na minha nota, daria 5 estrelas

thicarvalho disse...

Valeu Yoshiaki. Que bom que você gostou. Realmente é um filme com uma aura muito positiva, esperançosa mesmo. Obrigado pela visita.

Unknown disse...

Apaixonada assisto muito com meus filhos adolecentes.

Unknown disse...

Alguém sabe min dizer,quais São...COMUNICAÇÃO, ETICA, RESILIÊNCIA,