quarta-feira, 10 de junho de 2020

Crítica | A Grande Mentira

Um golpe perigoso

O típico jogo de gato e rato cinematográfico que sempre funciona, A Grande Mentira contorna a aparente previsibilidade da premissa com um ‘plot’ bem mais complexo do que parecia sugerir. Sob a elegante batuta de Bill Condon, o longa reúne dois dos mais talentosos astros do cinema britânico, Helen Mirren e Ian McKellen, numa trama repleta de desdobramentos instigantes, dilemas profundos e uma forte carga passional capaz de tornar qualquer golpe perigoso. O resultado, apesar das indiscutíveis conveniências narrativas, é uma obra tensa, crescente e impactante. 

Vamos ser bem francos. Qualquer texto interpretado por atores do quilate de Helen Mirren e Ian McKellen soa melhor. Isso é inquestionável. Com um invejável vigor físico, a dupla absorve as nuances do script com maestria. O misto de charme, vulnerabilidade, afeto, mistério e desconforto torna a tênue relação entre um vigarista experiente e a sua mais nova presa naturalmente inquietante. O grande mérito de A Grande Mentira, no entanto, está na sagacidade de Bill Condon em, desde a sequência de abertura, colocar os dois em condição de igualdade. Enquanto Roy (McKellen) surge como o clássico golpista, Betty (Mirren) não parece ser o animal indefeso que o seu algoz gostaria de enfrentar. O roteiro assinado por Jeffrey Hatcher (A Duquesa) é inteligente ao, a partir deste senso de equilíbrio, fazer da dissimulação o seu grande diferencial. Não demora muito para percebermos que ambos estão interpretando personagens dentro desta relação. A autossuficiência dos dois só ajuda a potencializar o clima de mistério.

Um predicado trabalhado com esmero pelo argumento baseado no livro homônimo de Nicholas Searle. O jogo de gato e rato ganha novos contornos à medida que suspeitamos das reais intenções do protagonista. Será mesmo Roy um monstro perverso? Ou um golpista cego demais para perceber a armadilha em que estava se metendo? Será mesmo Betty uma idosa carente? Ou uma mulher com segredos tão impactantes quanto o do seu novo “pretendente”? No momento em que a afeição se transforma em afeto, Bill Condon é habilidoso ao mergulhar nos conflitos do casal de veteranos. Somente nas brechas abertas pelos dois personagens começamos a enxergar o todo. Um problema sério para qualquer vigarista, a paixão surge para aquecer as coisas. A terceira idade, aos olhos do diretor, não é um impeditivo. A experiência dos personagens torna os sentimentos mais confusos, as decisões mais ambíguas, as vontades mais urgentes. Sustentando pelo afiado texto, Condon foge do lugar comum ao levar o elemento passional para um outro lugar. Bem mais obscuro, trágico e traumático. Os segredos que movem esta complexa relação são expostos à medida que o verdadeiro sentimento entre os dois já não poderia mais ser contido. Uma janela perfeita para a construção do antecipável, mas ainda assim surpreendente ‘plot twist’. Sem querer revelar muito, as motivações de ambos os personagens são desenvolvidas com a devida propriedade, assim como a reação deles à luz das descobertas. 

Uma virtude narrativa, verdade seja dita, incrementada pela elegante condução de Bill Condon. Embora consciente do magnetismo da sua dupla de estrelas, o realizador eleva o nível do material com uma direção capaz de capturar o misto de tensão e fragilidade com enorme sofisticação. Os inspirados planos detalhes, em especial, transformam as pequenas reações de Ian McKellen e Helen Mirren em grandes momentos de insinuação. Ponto para a intimista fotografia de Tobias A. Schliessler e para a imersão propositalmente impessoal pensada pela direção de arte. Tudo parece trabalhado para que o foco esteja nos atores e na dinâmica relação entre eles. O minimalismo, aqui, aproxima o longa da linguagem teatral, o que ajuda a catalisar este jogo de gato e rato. Nem as nítidas conveniências narrativas no terço final são capazes de diminuir o brilho destas pequenas passagens. Instigante e subvalorizado, A Grande Mentira é um thriller sobre feridas nunca cicatrizadas e o impacto delas na nossa identidade. Quem disse que o tempo é capaz de curar todas elas?

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