Talvez seja cedo demais para
entrar neste assunto. O coronavírus segue dizimando milhares de pessoas ao
redor do mundo todos os dias. A preocupação, neste momento, tem de ser a humanitária.
Aos olhos da indústria do cinema, entretanto, a pandemia gerada pelo COVID-19
já é devastadora. Com as medidas de afastamento social, o lockdown e a
paralisação de todas as grandes produções, Hollywood já estima perdas na casa dos
US$ 20 bilhões em 2020. E esses são números embrionários. A cada dia que passa
novas produções são paralisadas. Novos lançamentos são transferidos. Segundo o
Hollywood Reporter, por exemplo, o abrupto adiamento de Um Lugar
Silencioso 2 custou cerca de US$ 30 milhões aos cofres da Paramount. Um prejuízo crescente
e imensurável, principalmente diante das (infelizmente) pessimistas perspectivas
quanto ao fim da pandemia. Até aqui é sabido que o COVID-19 é um mal longe de
ser vencido. Enquanto cientistas de todas as nações do mundo tentam criar uma
vacina, os fatos indicam que estamos diante de um vírus resistente, altamente
contagioso e letal. Tanto que, até o momento, a OMS (a Organização Mundial da
Saúde) tem lutado para evitar a explosão de número de casos e a saturação da
rede pública de hospitais. Países como a Itália, a Espanha e mais recentemente
os EUA estão sentindo na pele as consequências da falta de leitos para todas as
vítimas do coronavírus. Em resumo, enquanto não houver uma vacina estaremos
expostos aos agressivos efeitos desta silenciosa ameaça.
Eis então a pergunta que não quer
calar. Neste cenário, mesmo com o “controle” da situação, você voltaria ao
cinema em 2020? Você está ciente dos perigos em torno disso? Os mais otimistas estimam que em setembro a rotina das grandes
capitais do mundo pode começar a voltar ao normal. Com a curva de contágio controlada,
algumas cidades da China e da Alemanha já começam a tentar dar os primeiros
passos rumo a abertura dos centros comerciais. No caso dos cinemas, porém, a
questão é mais complexa. Sem a criação da vacina para o COVID-19, o fim do
lockdown não necessariamente representará o encerramento dos códigos de
distanciamento social. O vírus ainda estará entre nós. O contágio seguirá como
uma ameaça. Diante disso, as herméticas salas de cinema seriam lugares
altamente perigosos. Estaremos num dispositivo em que estranhos sentam a centímetros
um do outro, em que todos respiram basicamente o mesmo ar, em que o contato com
objetos não higienizados (copos, pacotes de pipocas, assentos) é inevitável.
Várias das regras impostas pela OMS seriam desrespeitadas neste ambiente. Tanto
que a China, uma das referências na luta contra o COVID-19, voltou rapidamente
atrás ao decretar o fechamento de todas as salas de cinema após ensaiar uma
tímida reabertura. O temor é um só. Uma segunda onda de contágio. Você se
arriscaria? Eu não.
Ou seja, o desafio da indústria
do cinema tende a ganhar contornos ainda mais drásticos nos próximos meses
quando levarmos em questão a situação dos exibidores. Enquanto alguns estúdios
ainda alimentam expectativas otimistas (eu diria utópicas) para a reabertura do
circuito comercial, a Warner, por exemplo, ainda não adiou os lançamentos de
Tenet (previsto para Julho) e Mulher-Maravilha 1984 (previsto para Agosto), os
fatos indicam o contrário. Se quiserem abrir as salas de cinema o mais breve possível,
as grandes redes de multiplex precisarão se adequar à uma série de normas que
provavelmente custarão muito caro. O que só aumentaria o prejuízo causado pela
pandemia. Para respeitar os dois metros de espaço entre indivíduos exigido pela
OMS, por exemplo, a capacidade de qualquer sala de cinema deverá ser diminuída em
pelo menos 50%. Nos EUA, estima-se que cada sala só terá 25% dos seus assentos disponíveis neste processo de retomada. O rígido processo de higienização entre uma exibição e outra,
por sua vez, reduziria também o número de sessões por dia. Isso, combinado com
o natural esvaziamento do público, influenciaria diretamente no potencial
lucrativo de qualquer produção. Numa análise óbvia, se os grandes estúdios têm
muito a perder com o adiamento, os grandes exibidores irão sofrer tanto
fechados, quanto “parcialmente” abertos. O que só torna tudo mais incerto. Um
futuro nebuloso para o cinema.
Diante desta falta de
perspectivas, algumas redes (em especiais as menores) já começam a sentir o
pesado ônus do COVID-19. Sócia-fundadora do Grupo Estação (foto na abertura do texto), resistência no que
diz respeito a tradição dos cinemas de rua no Rio de Janeiro, Adriana Rattes usou
o Twitter para manifestar as dificuldades de manter os funcionários com o
fechamento dos cinemas. Sem o apoio de órgãos estatais, como o BNDES e a ANCINE,
ela admitiu em tom de desabafo que se encontra “num processo kafkiano para
garantir os vínculos e os salários das 75 pessoas de nossa equipe". Ainda
assim, diante da crise e das limitações expostas acima, Rattes defende que a
paralisação das exibições é para um bem maior. “O Estação fechou por causa da
pandemia e acha que é isso mesmo. Todo mundo que pode deve ficar em casa, neste
momento. Acha também que, como sempre, vai resistir aos efeitos do gravíssimo baque
econômico que está vivendo”, sinalizou a executiva do Grupo Estação. (Atualização: a Folha de SP anunciou nesta quarta-feira (22) que a ANCINE aprovou a criação de uma linha de crédito para empréstimos para cinemas e empresas do ramo audiovisual. A verba disponível, oriunda do Fundo Setorial do Audiovisual, pode chegar na casa dos R$ 400 milhões). A critério de comparação, a rede Cinemark, nos primeiros dias pós-quarentena, anunciou um controverso processo de demissão voluntária e foi bastante criticada por isso. Nos EUA,
segundo dados recentes, mais de 120 mil funcionários do setor audiovisual foram
demitidos durante a pandemia do coronavírus. Hoje, somente um cine drive-in no estado da Flórida está em funcionamento e foi o responsável por toda a bilheteria somada no país neste fim de semana, cerca de US$ 4,5 mil. Na luta contra a ferocidade deste
vírus, estúdios e exibidores estão quase todos num mesmo barco. E precisarão
remar forte se quiserem superar a tormenta que está longe do fim.
Existe, porém, aqueles que
enxergam na crise uma grande oportunidade. Nos últimos anos o debate em torno
do futuro das tradicionais janelas de exibição tem ganhado força em Hollywood. Isso
não é novidade. Enquanto de um lado as gigantes do streaming lutam pela sua
independência junto aos grandes estúdios, os exibidores usam o seu forte poder de “influência”
para resistirem no controle da situação. Quem administra a janela, domina o
lucro. Algo que faz todo o sentido numa indústria que, só em 2019, faturou
estrondosos US$ 40 bilhões ao redor do mundo. Prova disso é que, mesmo num
momento de dificuldade, a Associação Nacional dos Proprietários de Cinema dos
EUA (a NATO) prometeu retaliar os estúdios que “quebrarem” a janela de
exibição. O que, claramente, freou iniciativas como a da Universal Pictures,
que, antecipando o tamanho da crise que estava por vir, não se intimidou ao
lançar antes do tempo previsto no mercado ‘on demand’ títulos do alcance de O
Homem-Invisível, Bloodshot e o inédito Trolls 2. Este último, por sinal, já faturou mais de US$ 100 milhões nos EUA com cerca de 5 milhões de locações digitais. Com lucro estimado em US$ 77 milhões, o longa já superou os US$ 30 milhões conseguidos com o original nos cinemas norte-americanos. Neste período de absoluta
fragilidade da indústria, no entanto, a Netflix comprovou a força streaming ao
superar o valor de mercado da poderosa Disney (US$ 158 bilhões contra US$ 154
bilhões). Com parques temáticos fechados, filmes adiados e grandes prejuízos, a
gigante do entretenimento viu o preço das suas ações despencar em mais de 40%. O
que, por sua vez, nada influi no êxito da Netflix. Muito pelo contrário. Mais do que uma simples
resposta à crise, são 16 milhões de novos assinantes no primeiro trimestre de 2020, a ascensão empresarial da produtora de conteúdo chega para
desafiar este sistema, para comprovar uma perspectiva até então apenas
sugerida. Se por um lado os grandes estúdios se veem obrigados a engavetar as
suas produções, a visionária companhia norte-americana segue distribuindo
conteúdo a todo vapor e dominando as ações do mercado.
Estrelado por Chris Hemsworth, Resgate estreia na Netflix no próximo dia 24 |
Talvez seja cedo para ser tão
taxativo. Talvez seja cedo para tratar este domínio como algo definitivo Talvez seja cedo para enxergar o retorno financeiro como uma certeza em qualquer lançamento via streaming. O
fato é que, mais uma vez, a coragem da Netflix vem sendo premiada. Enquanto a
Disney, mesmo com o seu recém-lançado o Disney + no ar, prefere amargar
prejuízo a lançar títulos finalizados como Mulan, Novos Mutantes e Viúva Negra
no streaming, a Netflix segue desafiando o sistema e faturando alto com isso.
Com quarentena ou sem quarentena, o cinema em casa é uma realidade. Os números
não mentem. E a força dos novos hábitos tende a acelerar uma transição que já
não parece tão distante assim.
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