segunda-feira, 20 de abril de 2020

Artigo | Você voltaria ao cinema em 2020? Pandemia traz incertezas e alimenta novas perspectivas para a indústria


Talvez seja cedo demais para entrar neste assunto. O coronavírus segue dizimando milhares de pessoas ao redor do mundo todos os dias. A preocupação, neste momento, tem de ser a humanitária. Aos olhos da indústria do cinema, entretanto, a pandemia gerada pelo COVID-19 já é devastadora. Com as medidas de afastamento social, o lockdown e a paralisação de todas as grandes produções, Hollywood já estima perdas na casa dos US$ 20 bilhões em 2020. E esses são números embrionários. A cada dia que passa novas produções são paralisadas. Novos lançamentos são transferidos. Segundo o Hollywood Reporter, por exemplo, o abrupto adiamento de Um Lugar Silencioso 2 custou cerca de US$ 30 milhões aos cofres da Paramount. Um prejuízo crescente e imensurável, principalmente diante das (infelizmente) pessimistas perspectivas quanto ao fim da pandemia. Até aqui é sabido que o COVID-19 é um mal longe de ser vencido. Enquanto cientistas de todas as nações do mundo tentam criar uma vacina, os fatos indicam que estamos diante de um vírus resistente, altamente contagioso e letal. Tanto que, até o momento, a OMS (a Organização Mundial da Saúde) tem lutado para evitar a explosão de número de casos e a saturação da rede pública de hospitais. Países como a Itália, a Espanha e mais recentemente os EUA estão sentindo na pele as consequências da falta de leitos para todas as vítimas do coronavírus. Em resumo, enquanto não houver uma vacina estaremos expostos aos agressivos efeitos desta silenciosa ameaça. 



Eis então a pergunta que não quer calar. Neste cenário, mesmo com o “controle” da situação, você voltaria ao cinema em 2020? Você está ciente dos perigos em torno disso? Os mais otimistas estimam que em setembro a rotina das grandes capitais do mundo pode começar a voltar ao normal. Com a curva de contágio controlada, algumas cidades da China e da Alemanha já começam a tentar dar os primeiros passos rumo a abertura dos centros comerciais. No caso dos cinemas, porém, a questão é mais complexa. Sem a criação da vacina para o COVID-19, o fim do lockdown não necessariamente representará o encerramento dos códigos de distanciamento social. O vírus ainda estará entre nós. O contágio seguirá como uma ameaça. Diante disso, as herméticas salas de cinema seriam lugares altamente perigosos. Estaremos num dispositivo em que estranhos sentam a centímetros um do outro, em que todos respiram basicamente o mesmo ar, em que o contato com objetos não higienizados (copos, pacotes de pipocas, assentos) é inevitável. Várias das regras impostas pela OMS seriam desrespeitadas neste ambiente. Tanto que a China, uma das referências na luta contra o COVID-19, voltou rapidamente atrás ao decretar o fechamento de todas as salas de cinema após ensaiar uma tímida reabertura. O temor é um só. Uma segunda onda de contágio. Você se arriscaria? Eu não.


Ou seja, o desafio da indústria do cinema tende a ganhar contornos ainda mais drásticos nos próximos meses quando levarmos em questão a situação dos exibidores. Enquanto alguns estúdios ainda alimentam expectativas otimistas (eu diria utópicas) para a reabertura do circuito comercial, a Warner, por exemplo, ainda não adiou os lançamentos de Tenet (previsto para Julho) e Mulher-Maravilha 1984 (previsto para Agosto), os fatos indicam o contrário. Se quiserem abrir as salas de cinema o mais breve possível, as grandes redes de multiplex precisarão se adequar à uma série de normas que provavelmente custarão muito caro. O que só aumentaria o prejuízo causado pela pandemia. Para respeitar os dois metros de espaço entre indivíduos exigido pela OMS, por exemplo, a capacidade de qualquer sala de cinema deverá ser diminuída em pelo menos 50%. Nos EUA, estima-se que cada sala só terá 25% dos seus assentos disponíveis neste processo de retomada. O rígido processo de higienização entre uma exibição e outra, por sua vez, reduziria também o número de sessões por dia. Isso, combinado com o natural esvaziamento do público, influenciaria diretamente no potencial lucrativo de qualquer produção. Numa análise óbvia, se os grandes estúdios têm muito a perder com o adiamento, os grandes exibidores irão sofrer tanto fechados, quanto “parcialmente” abertos. O que só torna tudo mais incerto. Um futuro nebuloso para o cinema.


Diante desta falta de perspectivas, algumas redes (em especiais as menores) já começam a sentir o pesado ônus do COVID-19. Sócia-fundadora do Grupo Estação (foto na abertura do texto), resistência no que diz respeito a tradição dos cinemas de rua no Rio de Janeiro, Adriana Rattes usou o Twitter para manifestar as dificuldades de manter os funcionários com o fechamento dos cinemas. Sem o apoio de órgãos estatais, como o BNDES e a ANCINE, ela admitiu em tom de desabafo que se encontra “num processo kafkiano para garantir os vínculos e os salários das 75 pessoas de nossa equipe". Ainda assim, diante da crise e das limitações expostas acima, Rattes defende que a paralisação das exibições é para um bem maior. “O Estação fechou por causa da pandemia e acha que é isso mesmo. Todo mundo que pode deve ficar em casa, neste momento. Acha também que, como sempre, vai resistir aos efeitos do gravíssimo baque econômico que está vivendo”, sinalizou a executiva do Grupo Estação. (Atualização: a Folha de SP anunciou nesta quarta-feira (22) que a ANCINE aprovou a criação de uma linha de crédito para empréstimos para cinemas e empresas do ramo audiovisual. A verba disponível, oriunda do Fundo Setorial do Audiovisual, pode chegar na casa dos R$ 400 milhões). A critério de comparação, a rede Cinemark, nos primeiros dias pós-quarentena, anunciou um controverso processo de demissão voluntária e foi bastante criticada por isso. Nos EUA, segundo dados recentes, mais de 120 mil funcionários do setor audiovisual foram demitidos durante a pandemia do coronavírus. Hoje, somente um cine drive-in no estado da Flórida está em funcionamento e foi o responsável por toda a bilheteria somada no país neste fim de semana, cerca de US$ 4,5 mil. Na luta contra a ferocidade deste vírus, estúdios e exibidores estão quase todos num mesmo barco. E precisarão remar forte se quiserem superar a tormenta que está longe do fim.


Existe, porém, aqueles que enxergam na crise uma grande oportunidade. Nos últimos anos o debate em torno do futuro das tradicionais janelas de exibição tem ganhado força em Hollywood. Isso não é novidade. Enquanto de um lado as gigantes do streaming lutam pela sua independência junto aos grandes estúdios, os exibidores usam o seu forte poder de “influência” para resistirem no controle da situação. Quem administra a janela, domina o lucro. Algo que faz todo o sentido numa indústria que, só em 2019, faturou estrondosos US$ 40 bilhões ao redor do mundo. Prova disso é que, mesmo num momento de dificuldade, a Associação Nacional dos Proprietários de Cinema dos EUA (a NATO) prometeu retaliar os estúdios que “quebrarem” a janela de exibição. O que, claramente, freou iniciativas como a da Universal Pictures, que, antecipando o tamanho da crise que estava por vir, não se intimidou ao lançar antes do tempo previsto no mercado ‘on demand’ títulos do alcance de O Homem-Invisível, Bloodshot e o inédito Trolls 2. Este último, por sinal, já faturou mais de US$ 100 milhões nos EUA com cerca de 5 milhões de locações digitais. Com lucro estimado em US$ 77 milhões, o longa já superou os US$ 30 milhões conseguidos com o original nos cinemas norte-americanos. Neste período de absoluta fragilidade da indústria, no entanto, a Netflix comprovou a força streaming ao superar o valor de mercado da poderosa Disney (US$ 158 bilhões contra US$ 154 bilhões). Com parques temáticos fechados, filmes adiados e grandes prejuízos, a gigante do entretenimento viu o preço das suas ações despencar em mais de 40%. O que, por sua vez, nada influi no êxito da Netflix. Muito pelo contrário. Mais do que uma simples resposta à crise, são 16 milhões de novos assinantes no primeiro trimestre de 2020, a ascensão empresarial da produtora de conteúdo chega para desafiar este sistema, para comprovar uma perspectiva até então apenas sugerida. Se por um lado os grandes estúdios se veem obrigados a engavetar as suas produções, a visionária companhia norte-americana segue distribuindo conteúdo a todo vapor e dominando as ações do mercado.

Estrelado por Chris Hemsworth, Resgate estreia na Netflix no próximo dia 24

Talvez seja cedo para ser tão taxativo. Talvez seja cedo para tratar este domínio como algo definitivo Talvez seja cedo para enxergar o retorno financeiro como uma certeza em qualquer lançamento via streaming. O fato é que, mais uma vez, a coragem da Netflix vem sendo premiada. Enquanto a Disney, mesmo com o seu recém-lançado o Disney + no ar, prefere amargar prejuízo a lançar títulos finalizados como Mulan, Novos Mutantes e Viúva Negra no streaming, a Netflix segue desafiando o sistema e faturando alto com isso. Com quarentena ou sem quarentena, o cinema em casa é uma realidade. Os números não mentem. E a força dos novos hábitos tende a acelerar uma transição que já não parece tão distante assim. 

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