sexta-feira, 17 de abril de 2020

Crítica | Sérgio

Diplomacia contra o Terror

Com o seu olhar humano, independente e pacifista sobre as mazelas do mundo moderno, Sérgio Viera de Mello se tornou uma das vozes mais proeminentes da ONU (a Organização das Nações Unidas) nos anos 1990. Seu nome se tornou sinônimo de resolução de crises humanitárias espinhosas. O que o levou a alguns dos epicentros mundiais mais instáveis deste período. Kosovo, Líbano, Timor-Leste, Ruanda, Camboja e Bósnia foram alguns dos países em que o diplomata brasileiro intercedeu a favor da paz. Uma trajetória notável que o levou a ser escolhido para representar a ONU num dos conflitos mais drásticos do século XXI, a Guerra do Iraque. Responsável por atuar em prol dos direitos humanos do cidadão iraquiano na transição de poder pós-Saddam Hussein, Mello se viu preso a um barril de pólvora sem precedentes na sua história. E é da explosão dele que nasce o melhor de Sérgio, produção original Netflix estrelada por Wagner Moura e Ana De Armas. Impecável ao capturar a forte veia humanitária do diplomata, o longa dirigido por Greg Barker extrai a tensão da realidade ao escancarar a vulnerabilidade do diplomata nesta “guerra” pacifista contra o terror. Nos (inúmeros) momentos em que se distancia do drama político, entretanto, o realizador enfraquece a narrativa da obra ao investir num clima de romance incompatível com o senso de urgência exigido pela trama. 



Enquanto foca na figura do diplomata, Sérgio é enfático ao expor a instável posição do representante da ONU em território de guerra. Por mais que o vai e vem temporal quebre por diversas vezes o ritmo do filme, o roteiro assinado por Craig Borten (Clube de Compras Dallas) é denso o bastante ao traduzir os meandros de algumas das mais complexas missões de Mello. O argumento nos permite entender a desconfiança do olhar estrangeiro para com a Organização das Nações Unidas, o preço da inércia deste tipo de órgão regulador ao longo dos tempos e principalmente a falta de autonomia da entidade diante dos interesses das grandes nações. Numa sacada inteligente, Greg Barker é astuto ao traçar um paralelo entre a ação de Mello no Timor-Leste e no Iraque, contrastando assim a autonomia adquirida na primeira incursão com a pressão imposta na segunda. Ao mesmo tempo, Barker é igualmente cuidadoso ao investigar os obstáculos impostos ao brasileiro por aqueles que queriam uma diplomacia a seu favor. Uma ONU interessada em proteger os poderosos. Nas entrelinhas, o longa mostra contundência ao questionar o papel dos EUA no destino de Mello e na sua frustrada tentativa de tornar o processo de transição política no Iraque o menos nocivo para a população. É na relação entre Mello e a figura do representante da Casa Branca Paul Bremer (Bradley Whitford), por sinal, que residem as passagens mais críticas da película. Uma abordagem potente  e insinuante que, infelizmente, se esvai perante as confusas intenções do script.


Falta a Sérgio, na verdade, a verve indômita do personagem título. O misto de foco e obstinação naquilo que realmente importava. À medida que se afasta do terreno da diplomacia, Greg Barker frustra ao esvaziar o peso da obra em prol da construção de um clima de romance destoante. Carolina Larriera (Ana de Armas) é uma figura importante na vida de Mello. Isso não está em discussão aqui. É sob a perspectiva dela, aliás, que o roteiro encontra a ponte perfeita para que conheçamos o homem Sérgio Vieira de Mello, para que descubramos o preço que ele teve que pagar para defender aquilo que acreditava. O sacrifício pessoal. A solidão. O afastamento dos filhos. Para chegar a este ponto, no entanto, Barker transforma o longa numa espécie de Encontros e Desencontros (2003) em território de guerra. Por mais que a química entre Ana de Armas e Wagner Moura seja excelente, as interações entre os dois se revelam quase sempre deslocadas do tempo e do espaço em que os personagens estão inseridos. Temos beijo na chuva. Temos passeios por zona de guerra. Temos manifestações de amor com direito a uma decoração romântica. Temos uma mulher empoderada sem uma voz ativa dentro da trama. Uma enxurrada de clichês que escancaram os problemas de tom da obra. Falta ao roteiro (e por consequência a direção) a maturidade para encontrar um caminho mais realista para atrelar o drama político ao romance e depois a tragédia. Na indecisão nascem os maiores problemas da cinebiografia. Ao menos ver\ouvir Cartola na trilha sonora foi recompensador. 


Uma série de deslizes narrativos, de certa forma, atenuados pela robusta performance de Wagner Moura. Tudo que falta ao longa, sobra ao ator brasileiro. O astro do cinema baiano captura com naturalidade a independência, a energia, a coragem e a vulnerabilidade de Sérgio Viera de Mello. Com o seu usual carisma, Moura contribuiu para a construção do recorte tridimensional pensado pelo filme. Um trabalho que eleva o nível do sólido estudo de personagem pensado por Greg Barker. Não estamos diante do tipo de obra que se esforça para criar um mito ou um símbolo. Sérgio acerta ao se encantar pela face humana do diplomata. A sua emoção e também a racionalidade. A sua ambição e também humildade. O cineasta mostra sensibilidade ao entender as motivações do seu personagem seja nos seus grandes acertos, seja nas suas grandes falhas. Equívocos, diga-se de passagem, apontados pelo roteiro sem grande culpa. Um predicado que merece ser destacado. Sobra a Barker também pulso nas passagens mais tensas. Tanto nos momentos mais intimistas, quanto nas passagens mais angustiantes. Visualmente, por sinal, Sérgio traz consigo o pedigree recém-adquirido pelas produções Netflix. Com uma direção de arte expressiva, fotografia calorosa e um enervante flerte com o cinema catástrofe, o longa consegue ir além do drama sempre que preciso com total competência. Uma pena que a intrusiva montagem, volto a frisar, reduza o impacto destas passagens ao nunca dedicar o tempo ideal ao presente de Mello.


O tipo de filme internacional que a Netflix tanto gosta, Sérgio faz jus a memória do respeitado diplomata brasileiro enquanto estudo de personagem, principalmente por exaltar o poder do diálogo em tempos tão instáveis e polarizados. Mesmo elevado pelas carismáticas presenças de Wagner Moura e Ana de Armas, porém, o longa deixa no fim aquela sensação de potencial subaproveitado ao fugir sempre que possível da realidade complexa que o personagem título tentou combater ao longo da sua vida.

Um comentário:

Vânia Furtado de Araújo disse...

Vou assistir esse! Obrigada pela dica.