Os fãs da animação estão muitos
gratos a Netflix. Após anos de dificuldades, de falta de acesso, o catálogo do
Studio Ghibli desembarcou na gigante do streaming. Nos últimos dois meses a
companhia tem lançado gradualmente os seus principais títulos. Muitos já possuíam
crítica aqui no Cinemaniac. Alguns outros não. Aproveitando a chegada da
segunda “leva” de produções da preciosa companhia de produções nipônicas, neste
Cinco Filmes escrevo sobre O Castelo do Céu, Meu Vizinho Totoro, O Serviço de
Entregas de Kiki, Porco Rosso e Memórias de Ontem.
- O Castelo no Céu (1986)
O cinema de Hayao Miyazaki me
fascina de diversas formas. Os seus traços são expressivos. A construção de
mundo das suas obras é rica e criativa. Os seus personagens são tão
carismáticos e profundos que é impossível não se afeiçoar por eles. O vigor
visual dos seus longas é inigualável. O que mais me encanta nos trabalhos do
mestre da animação nipônica, no entanto, é a sua capacidade de preencher as
suas geralmente lúdicas produções com temas reais. Ele faz do subtexto a alma
do seu negócio. Algo que fica bem claro quando vemos O Castelo no Céu. No
papel, estamos diante de uma clássica jornada do herói. Sheeta é a menina
“escolhida”. Ela tem o poder de fazer a diferença. Ao longo do seu arco de
descobertas junto do corajoso Pazu, um jovem minerador empolgado com a
oportunidade de encontrar um reino perdido, Sheeta encontra a sua real força, a
sua real missão. Nada, a priori, de muito novo. Por mais que, em 1986, fosse
quase impossível ver um título do gênero protagonizado por uma mulher (e com
consciência da responsabilidade em torno disso), O Castelo no Céu poderia ser
facilmente tratado como uma aventura escapista. A ação é por si só empolgante.
O antagonista instiga. Os personagens totalmente cativantes. Miyazaki é
habilidoso ao construir a tensão em torno da mitologia proposta pela trama. Por
trás da busca pelo misterioso castelo, no entanto, o cineasta eleva o nível da
película ao propor uma poderosa mensagem antibélica. Mais do que isso, o
clássico do Studio Ghibli traz consigo uma implacável crítica as megapotências
mundiais. Nas entrelinhas, Miyazaki se insurge contra o capitalismo predatório,
contra a cultura armamentista, contra a inconsequência dos “líderes” desta
nação. A luta pelo poder total e absoluto, aos olhos do diretor japonês, pode
custar muito caro. O “paraíso”, neste contexto, é para poucos. O que fica bem
claro dentro do enfático clímax. No fim, a bonança pode nascer do mesmo lugar
da destruição. E, infelizmente, tal qual na década de 1980, é no caminho desta que
o mundo insiste em caminhar. Enquanto isso, o oásis no céu fica cada vez mais
inatingível.
- Meu Vizinho Totoro (1988)
Se A Viagem de Chiriro, por
méritos próprios, se tornou o “rosto” do Studio Ghibli, Meu Vizinho Totoro é o
coração desta companhia. Vou além. Esse talvez sela o longa que melhor define o
cinema de Hayao Miyazaki. A Fantasia, aos seus olhos, surge como uma válvula de
escape da realidade. Seus filmes tratam o lúdico como uma ponte para algo mais
profundo. Um estudo íntimo dos seus humanos personagens. As irmãs Satsuki e
Mei, logo cedo, se acostumaram a enfrentar um problema devastador. Diante da
doença da mãe, elas tiveram que amadurecer precocemente. Ajudar mais. Encontrar
maneiras para lidar com as incertezas sem sacrificar a sua própria infância. A
partir de uma premissa tão reconhecível, Miyazaki causa um encantamento natural
ao enxergar além da “brincadeira de criança”. Totoro e os seus amigos surgem
como um companheiro em tempos difíceis. Uma luz em meio à turbulência. O
cineasta nipônico é habilidoso ao, a partir da relação das duas com esta
criatura, entender melhor os seus sentimentos. Enxergar aquilo que elas não
queriam expor. A fragilidade das irmãs é o combustível que move esta tocante
amizade. Por mais fofo e simpático que fosse Totoro, Miyazaki é cuidadoso ao
não se prender demais a mitológica criatura. O filme é mais sobre as adoráveis meninas
e menos sobre o caminho encontrado por elas para lidar com a sua dor. A
aventura fantasiosa nunca invade o drama. O clímax, por sinal, causa uma
aflição natural. Esse talvez seja um dos títulos mais “contidos” do realizador
nipônico. Em suma, numa realidade em que o final feliz nem sempre é possível,
Miyazaki faz de Meu Amigo Totoro um consciente símbolo de esperança. Um filme
sobre o poder da amizade em tempos de turbulência.
- O Serviço de Entregas de Kiki (1989)
Amadurecer é difícil. Poucas
fases da vida são tão complicadas quando a transição da infância para a
adolescência. As responsabilidades mudam. Os interesses mudam. O mundo ganha um
novo tamanho. Tudo se torna mais complexo, intenso e desafiador. Um processo
delicado traduzido com sensibilidade ímpar no primoroso O Serviço de Entregas
de Kiki. Reconhecido pela força das suas humanas personagens femininas, Hayao
Miyazaki investiga este choque de realidade ao narrar a jornada de uma
carismática bruxinha obrigada a encarar a emancipação para cumprir uma
tradição. Por mais que o viés lúdico salte aos olhos, Kiki é engraçadíssima,
tem um ranzinza gato falante e habita num universo em que a fantasia é aceita
por todos, o realizador nipônico mais uma vez mostra a inteligência do seu
texto ao enxergar nela um arco reconhecível. Num ‘coming of age movie’
comovente, Miyazaki mergulha nas emoções desta garotinha obrigada a
experimentar a vida adulta precocemente. A sua magia se “esvai” diante do
cansaço do trabalho, da solidão, das pressões do dia a dia, da falta de tempo
livre, do deslocamento social. Kiki é uma bruxinha, mas poderia ser uma
estudante num novo colégio, uma adolescente de uma família humilde, uma filha da
disfuncionalidade. Um relato por si só comovente, mas que ganha um novo sentido
graças a opção do diretor em invadir o universo feminino. Kiki é uma das
personagens mais mundanas do ‘hall’ de Miyazaki. Ela é independente, ela é
resiliente, ela é vaidosa. Ela sabe o que quer até descobrir que nem tudo se
reduzia a sua magia. É legal ver como o cineasta, sem nunca renegar o contexto
fantástico, consegue traduzir as inseguranças delas. As incertezas quanto ao
seu futuro neste desgastante ambiente urbano. A rigor, estamos diante de uma
jornada de empoderamento. Ainda que cedo demais, Kiki teve que aprender a lutar
pelo seu dom. Teve que sacrificar coisas por ele. Teve que buscar a sua
verdade. Com um olhar profundo sobre uma história de amadurecimento genuinamente
feminina, O Serviço de Entregas de Kiki faz da representatividade o seu grande
diferencial ao dar voz a uma personagem capaz de espelhar os anseios e
inseguranças de tantas outras meninas (e porque não meninos) ao redor do mundo.
Uma verdadeira pérola do Studio Ghibli.
- Porco Rosso (1992)
É fácil entender porque Porco
Rosso: O Último Herói Romântico é um dos filmes menos lembrados do mestre Hayao
Miyazaki. Estamos diante da obra mais rasa dentro da filmografia do realizador
japonês. Um entusiasta da aviação, ele pareceu entender que só a aventura seria
bastante. Visualmente, Porco Rosso é um deleite. As cenas aéreas são
divertidas. Os personagens esbanjam carisma. O vermelho do avião do caçador de
recompensas é realçado pela vívida fotografia. Nos momentos em que a
“adrenalina” baixa, no entanto, o longa não tem tanto a oferecer quanto
deveria. O arco do piloto amargurado preso ao seu passado não casa com o tom
leve proposto por Miyazaki. É clara a influência do clássico Casablanca (1942)
aqui. Faltou ao realizador, porém, absorver (à peculiar maneira do Studio
Ghibli) o clima de romance\tensão do clássico de Michael Curtis. O humor lúdico
impede que Miyazaki consiga investigar com maior profundidade os conflitos do
protagonista. A sua posição de vulnerabilidade. Além disso, embora nas
entrelinhas o argumento toque com propriedade em questões mais densas, entre
elas os efeitos da quebra da bolsa de valores nos EUA, a ascensão do fascismo
na Itália e as dolorosas sequelas da Primeira Guerra Mundial, o realizador o faz
com uma dose de despretensão incompatível com os seus principais trabalhos.
Tanto que a icônica frase “antes ser um porco do que um fascista” surge como o
estopim de uma crítica que nunca se concretiza. Em suma, empolgante nos seus
minutos iniciais, Porco Rosso perde ritmo à medida que se deixa levar pela
diversão escapista.
- Memórias de Ontem (1991)
Um belo estudo sobre o nocivo
impacto da cultura patriarcal na identidade de uma jovem, Memórias de Ontem
transita entre o lúdico e o melancólico com inteligência. Por mais que exista
um claro desnível entre as duas linhas propostas, o longa dirigido por Isao
Takahata reflete o presente a partir do passado numa “viagem” nostálgica,
íntima e profunda. Por mais que as duas horas de película se revelem um tanto
cansativas, em especial quando invade a realidade da adulta Taeko, o realizador
é habilidoso ao investigar as feridas não cicatrizadas. Ao refletir sobre o
destino da solitária protagonista a partir da sua infância. O melhor de
Memórias de Ontem, indiscutivelmente, está no passado. Na jornada de
amadurecimento de uma garotinha sonhadora e insegura envolvida pela chegada da
puberdade, pelo primeiro amor, pela rixa com as irmãs mais velhas, pela a
dificuldade de aprendizado e pela falta de diálogo com os pais. Um processo
delicado traduzido com leveza, bom humor e muita objetividade. Uma realidade
reconhecível resgatada pela adulta Taeko na viagem que nunca pôde fazer
enquanto criança. É interessante ver como o argumento, a partir desta óptica
mais madura, enxerga as sequelas de um período aparentemente inofensivo.
Influenciado por clássicos do quilate de Morangos Silvestres, de Ingmar
Bergman, o texto assume uma forma até pretensiosa em alguns momentos. Confesso
que a discussão sobre estilos de vida e o choque entre o rural e o urbano soou
um tanto deslocada. Algo que, felizmente, não acontece quando o argumento
decide estabelecer o estrago causado pelo cerceamento na infância. Como aquela
mulher independente, quase vinte anos depois, ainda sofria com as portas
fechadas. A impositiva cultura nipônica moldou as suas fragilidades, devastou
os seus sonhos, afetou o seu futuro. Sem nunca reduzir tudo ao puro
maniqueísmo, o frio pai, por exemplo, é apenas um produto do meio em que vive,
Takahata traduz a realidade sem filtros ou dispersões. Taeko era diferente,
queria algo diferente, mas isso era um problema no rígido mundo em que ela
crescia. Enfim, com traços expressivos (um predicado redundante para o Studio Ghibili)
e um desfecho poderoso (a ponto de me fazer lembrar da sequência de abertura de
Up: Altas Aventuras), Memórias de Ontem é uma animação sóbria e sensível sobre
como o processo de amadurecimento pode ser ainda mais difícil (ou talvez
espinhoso) para as mulheres.
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