quinta-feira, 5 de março de 2020

Cinco Filmes (Studio Ghibli)


Os fãs da animação estão muitos gratos a Netflix. Após anos de dificuldades, de falta de acesso, o catálogo do Studio Ghibli desembarcou na gigante do streaming. Nos últimos dois meses a companhia tem lançado gradualmente os seus principais títulos. Muitos já possuíam crítica aqui no Cinemaniac. Alguns outros não. Aproveitando a chegada da segunda “leva” de produções da preciosa companhia de produções nipônicas, neste Cinco Filmes escrevo sobre O Castelo do Céu, Meu Vizinho Totoro, O Serviço de Entregas de Kiki, Porco Rosso e Memórias de Ontem. 


- O Castelo no Céu (1986)


O cinema de Hayao Miyazaki me fascina de diversas formas. Os seus traços são expressivos. A construção de mundo das suas obras é rica e criativa. Os seus personagens são tão carismáticos e profundos que é impossível não se afeiçoar por eles. O vigor visual dos seus longas é inigualável. O que mais me encanta nos trabalhos do mestre da animação nipônica, no entanto, é a sua capacidade de preencher as suas geralmente lúdicas produções com temas reais. Ele faz do subtexto a alma do seu negócio. Algo que fica bem claro quando vemos O Castelo no Céu. No papel, estamos diante de uma clássica jornada do herói. Sheeta é a menina “escolhida”. Ela tem o poder de fazer a diferença. Ao longo do seu arco de descobertas junto do corajoso Pazu, um jovem minerador empolgado com a oportunidade de encontrar um reino perdido, Sheeta encontra a sua real força, a sua real missão. Nada, a priori, de muito novo. Por mais que, em 1986, fosse quase impossível ver um título do gênero protagonizado por uma mulher (e com consciência da responsabilidade em torno disso), O Castelo no Céu poderia ser facilmente tratado como uma aventura escapista. A ação é por si só empolgante. O antagonista instiga. Os personagens totalmente cativantes. Miyazaki é habilidoso ao construir a tensão em torno da mitologia proposta pela trama. Por trás da busca pelo misterioso castelo, no entanto, o cineasta eleva o nível da película ao propor uma poderosa mensagem antibélica. Mais do que isso, o clássico do Studio Ghibli traz consigo uma implacável crítica as megapotências mundiais. Nas entrelinhas, Miyazaki se insurge contra o capitalismo predatório, contra a cultura armamentista, contra a inconsequência dos “líderes” desta nação. A luta pelo poder total e absoluto, aos olhos do diretor japonês, pode custar muito caro. O “paraíso”, neste contexto, é para poucos. O que fica bem claro dentro do enfático clímax. No fim, a bonança pode nascer do mesmo lugar da destruição. E, infelizmente, tal qual na década de 1980, é no caminho desta que o mundo insiste em caminhar. Enquanto isso, o oásis no céu fica cada vez mais inatingível.

- Meu Vizinho Totoro (1988)


Se A Viagem de Chiriro, por méritos próprios, se tornou o “rosto” do Studio Ghibli, Meu Vizinho Totoro é o coração desta companhia. Vou além. Esse talvez sela o longa que melhor define o cinema de Hayao Miyazaki. A Fantasia, aos seus olhos, surge como uma válvula de escape da realidade. Seus filmes tratam o lúdico como uma ponte para algo mais profundo. Um estudo íntimo dos seus humanos personagens. As irmãs Satsuki e Mei, logo cedo, se acostumaram a enfrentar um problema devastador. Diante da doença da mãe, elas tiveram que amadurecer precocemente. Ajudar mais. Encontrar maneiras para lidar com as incertezas sem sacrificar a sua própria infância. A partir de uma premissa tão reconhecível, Miyazaki causa um encantamento natural ao enxergar além da “brincadeira de criança”. Totoro e os seus amigos surgem como um companheiro em tempos difíceis. Uma luz em meio à turbulência. O cineasta nipônico é habilidoso ao, a partir da relação das duas com esta criatura, entender melhor os seus sentimentos. Enxergar aquilo que elas não queriam expor. A fragilidade das irmãs é o combustível que move esta tocante amizade. Por mais fofo e simpático que fosse Totoro, Miyazaki é cuidadoso ao não se prender demais a mitológica criatura. O filme é mais sobre as adoráveis meninas e menos sobre o caminho encontrado por elas para lidar com a sua dor. A aventura fantasiosa nunca invade o drama. O clímax, por sinal, causa uma aflição natural. Esse talvez seja um dos títulos mais “contidos” do realizador nipônico. Em suma, numa realidade em que o final feliz nem sempre é possível, Miyazaki faz de Meu Amigo Totoro um consciente símbolo de esperança. Um filme sobre o poder da amizade em tempos de turbulência.

- O Serviço de Entregas de Kiki (1989)


Amadurecer é difícil. Poucas fases da vida são tão complicadas quando a transição da infância para a adolescência. As responsabilidades mudam. Os interesses mudam. O mundo ganha um novo tamanho. Tudo se torna mais complexo, intenso e desafiador. Um processo delicado traduzido com sensibilidade ímpar no primoroso O Serviço de Entregas de Kiki. Reconhecido pela força das suas humanas personagens femininas, Hayao Miyazaki investiga este choque de realidade ao narrar a jornada de uma carismática bruxinha obrigada a encarar a emancipação para cumprir uma tradição. Por mais que o viés lúdico salte aos olhos, Kiki é engraçadíssima, tem um ranzinza gato falante e habita num universo em que a fantasia é aceita por todos, o realizador nipônico mais uma vez mostra a inteligência do seu texto ao enxergar nela um arco reconhecível. Num ‘coming of age movie’ comovente, Miyazaki mergulha nas emoções desta garotinha obrigada a experimentar a vida adulta precocemente. A sua magia se “esvai” diante do cansaço do trabalho, da solidão, das pressões do dia a dia, da falta de tempo livre, do deslocamento social. Kiki é uma bruxinha, mas poderia ser uma estudante num novo colégio, uma adolescente de uma família humilde, uma filha da disfuncionalidade. Um relato por si só comovente, mas que ganha um novo sentido graças a opção do diretor em invadir o universo feminino. Kiki é uma das personagens mais mundanas do ‘hall’ de Miyazaki. Ela é independente, ela é resiliente, ela é vaidosa. Ela sabe o que quer até descobrir que nem tudo se reduzia a sua magia. É legal ver como o cineasta, sem nunca renegar o contexto fantástico, consegue traduzir as inseguranças delas. As incertezas quanto ao seu futuro neste desgastante ambiente urbano. A rigor, estamos diante de uma jornada de empoderamento. Ainda que cedo demais, Kiki teve que aprender a lutar pelo seu dom. Teve que sacrificar coisas por ele. Teve que buscar a sua verdade. Com um olhar profundo sobre uma história de amadurecimento genuinamente feminina, O Serviço de Entregas de Kiki faz da representatividade o seu grande diferencial ao dar voz a uma personagem capaz de espelhar os anseios e inseguranças de tantas outras meninas (e porque não meninos) ao redor do mundo. Uma verdadeira pérola do Studio Ghibli.

- Porco Rosso (1992)


É fácil entender porque Porco Rosso: O Último Herói Romântico é um dos filmes menos lembrados do mestre Hayao Miyazaki. Estamos diante da obra mais rasa dentro da filmografia do realizador japonês. Um entusiasta da aviação, ele pareceu entender que só a aventura seria bastante. Visualmente, Porco Rosso é um deleite. As cenas aéreas são divertidas. Os personagens esbanjam carisma. O vermelho do avião do caçador de recompensas é realçado pela vívida fotografia. Nos momentos em que a “adrenalina” baixa, no entanto, o longa não tem tanto a oferecer quanto deveria. O arco do piloto amargurado preso ao seu passado não casa com o tom leve proposto por Miyazaki. É clara a influência do clássico Casablanca (1942) aqui. Faltou ao realizador, porém, absorver (à peculiar maneira do Studio Ghibli) o clima de romance\tensão do clássico de Michael Curtis. O humor lúdico impede que Miyazaki consiga investigar com maior profundidade os conflitos do protagonista. A sua posição de vulnerabilidade. Além disso, embora nas entrelinhas o argumento toque com propriedade em questões mais densas, entre elas os efeitos da quebra da bolsa de valores nos EUA, a ascensão do fascismo na Itália e as dolorosas sequelas da Primeira Guerra Mundial, o realizador o faz com uma dose de despretensão incompatível com os seus principais trabalhos. Tanto que a icônica frase “antes ser um porco do que um fascista” surge como o estopim de uma crítica que nunca se concretiza. Em suma, empolgante nos seus minutos iniciais, Porco Rosso perde ritmo à medida que se deixa levar pela diversão escapista.

- Memórias de Ontem (1991)


Um belo estudo sobre o nocivo impacto da cultura patriarcal na identidade de uma jovem, Memórias de Ontem transita entre o lúdico e o melancólico com inteligência. Por mais que exista um claro desnível entre as duas linhas propostas, o longa dirigido por Isao Takahata reflete o presente a partir do passado numa “viagem” nostálgica, íntima e profunda. Por mais que as duas horas de película se revelem um tanto cansativas, em especial quando invade a realidade da adulta Taeko, o realizador é habilidoso ao investigar as feridas não cicatrizadas. Ao refletir sobre o destino da solitária protagonista a partir da sua infância. O melhor de Memórias de Ontem, indiscutivelmente, está no passado. Na jornada de amadurecimento de uma garotinha sonhadora e insegura envolvida pela chegada da puberdade, pelo primeiro amor, pela rixa com as irmãs mais velhas, pela a dificuldade de aprendizado e pela falta de diálogo com os pais. Um processo delicado traduzido com leveza, bom humor e muita objetividade. Uma realidade reconhecível resgatada pela adulta Taeko na viagem que nunca pôde fazer enquanto criança. É interessante ver como o argumento, a partir desta óptica mais madura, enxerga as sequelas de um período aparentemente inofensivo. Influenciado por clássicos do quilate de Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, o texto assume uma forma até pretensiosa em alguns momentos. Confesso que a discussão sobre estilos de vida e o choque entre o rural e o urbano soou um tanto deslocada. Algo que, felizmente, não acontece quando o argumento decide estabelecer o estrago causado pelo cerceamento na infância. Como aquela mulher independente, quase vinte anos depois, ainda sofria com as portas fechadas. A impositiva cultura nipônica moldou as suas fragilidades, devastou os seus sonhos, afetou o seu futuro. Sem nunca reduzir tudo ao puro maniqueísmo, o frio pai, por exemplo, é apenas um produto do meio em que vive, Takahata traduz a realidade sem filtros ou dispersões. Taeko era diferente, queria algo diferente, mas isso era um problema no rígido mundo em que ela crescia. Enfim, com traços expressivos (um predicado redundante para o Studio Ghibili) e um desfecho poderoso (a ponto de me fazer lembrar da sequência de abertura de Up: Altas Aventuras), Memórias de Ontem é uma animação sóbria e sensível sobre como o processo de amadurecimento pode ser ainda mais difícil (ou talvez espinhoso) para as mulheres.

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