terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Crítica | O Relatório

Em busca da verdade

O Relatório não é um filme fácil. Num momento em que os EUA (e o mundo como um todo) lidam com uma nova gama de problemas, os devastadores atentados de 11\09 já não causam tanta repercussão assim. Ainda mais quando o assunto é o ‘modus operandi’ da CIA (a Central de Inteligência Americana) contra aqueles que pretensamente ameaçavam a segurança nacional do país. Deveriam, mas não causam. Com dinamismo narrativo e grandes atuações, porém, o longa dirigido por Scott Z. Burns coloca o dedo na ferida ao descortinar os fatos envolvendo uma das mais infames armas dos EUA na luta contra a Al Qaeda: a tortura. Principal colaborador de Steven Soderbergh nos últimos anos, o cineasta constrói um drama intenso e crítico sobre os bastidores da investigação do Senado dos Estados Unidos que revelou aos olhos do mundo práticas anticonstitucionais usadas pela CIA na busca pelo paradeiro de Osama Bin Laden.



Indo de encontro a título aclamados como A Hora mais Escura (2012), thriller dirigido por Kathryn Bigelow que, embora questionasse a violência dos agentes na busca por informação, abraçou o velho “os fins justificam os meios”, O Relatório é categórico ao usar o estudo assinado por Daniel Jones (Adam Driver) para refutar a eficácia da tortura nos violentos interrogatórios supervisionados pela CIA. Com uma moderada visão política, Scott Z. Burns é assertivo ao refutar o senso comum, ao desqualificar as ações da agência que ganhou carta branca para agir no pós 11\09. Mais do que questionar o óbvio, o diretor é corajoso ao, seguindo os passos do seu protagonista, levantar dúvidas sobre a negligência daqueles que deveriam se antecipar aos fatos. A sensação de que tudo era evitável é reforçada com clareza. Ainda que o argumento peque pela unidimensionalidade quanto a representação dos agentes, o realizador compensa ao traduzir os atos de tortura, ao tornar tudo gráfico o bastante. Só assim entendemos bem a indignação que move o protagonista em busca da verdade. Somado a isso, o argumento é habilidoso ao, gradativamente, analisar também o jogo político em torno da investigação. Sem a intenção de apontar culpados, Burns encontra bem-vindas brechas para explorar o “Fla x Flu” entre Democratas e Republicanos, realçando o pesado impacto da burocracia num processo que deveria ser tratado com urgência. A verdade, em alguns casos, cobra um preço muito caro e nem todo mundo está disposto a arcar com ele.


Nas entrelinhas, inclusive, O Relatório é imparcial ao tecer comentários sobre a inércia do republicano George W. Bush e do democrata Barack Obama durante os fatos\investigação, escancarando o quão pesada poderia ser esta chaga para a imagem dos Estados Unidos. Os dois lados, de certa forma, possuem culpa no cartório e Scott Z. Burns evidencia isso. Por mais que o contestador Daniel Jones de Adam Driver conduza o ritmo da obra com intensidade e um convincente olhar de incredulidade diante dos fatos, é o “apaziguador” Denis McDonough de Jon Hamm que melhor traduz o espírito da coisa. Sem querer revelar muito, a sequência em que ele estabelece com franqueza o eventual preço da verdade só comprova o desafio que é fazer política num ambiente de extrema sensibilidade moral. Faltou a Burns, porém, a perspicácia em enxergar que esse talvez devesse ser o mote da sua obra. Personagens como a moderada senadora Feinstein vivida por Annette Bening merecia mais tempo de tela, assim como os “sumidos” representantes do lado republicano. No fim, embora escorregue no terreno do idealismo patriótico no terço final, algo que, além de enfraquecer o teor crítico da obra, revela certa dose de ingenuidade de Burns, O Relatório surge como um inteligente contraponto a muito do que foi dito\exposto nos últimos anos sobre a guerra contra o terror.

Nenhum comentário: