Alguns filmes estão interessados
em propor um diálogo. Outros em passar a sua mensagem. Custe o que custar.
Bacurau é o mais novo representante desta lista. Sem um pingo de
condescendência, o longa dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
busca em símbolos tipicamente brasileiros a força motriz para tirar do papel um
sonoro e agressivo grito de resistência em prol dos esquecidos. Com um pé no
Western e outro no Horror Social, o filme usa a violência como um inclemente
instrumento de reflexão, indo além do choque pelo choque ao tratar o banho de
sangue como uma resposta à altura dos oprimidos. Daqueles que, após anos
lutando por dignidade e igualdade, resolvem se insurgir contra alguns velhos e
reconhecíveis fantasmas. A morte, aqui, sugere defesa, mas também revolta,
raiva, dor... Bacurau, concorde ou não com a sua mensagem final, responde na
mesma moeda a fim de reequilibrar uma ingrata balança desnivelada pela ausência do
estado, pela desigualdade, pela falta de oportunidades e pela repressão.
Mais do que simplesmente apontar
a mira para o outro lado, para a elite e\ou o Estado, Bacurau testa as
expectativas do público ao propor a sua áspera crítica social sem se render a velhos estereótipos. Com uma visão pessimista de futuro, Kleber Mendonça Filho
e Juliano Dornelles traduzem o retrocesso sob uma óptica moderna, flertando com
elementos do cinema distópico ao sugerir um cenário ainda pior do que já
estamos enfrentando. Embora o foco esteja no micro, na realidade dos moradores
de uma pequena cidade “fora do mapa”, os cineastas esbanjam astúcia ao insinuar
mais do que contextualizar. As respostas, em muitos momentos, estão implícitas,
escondidas nas entrelinhas. Num noticiário da TV, numa ação espontânea de um
político, num desesperado grito de clamor. O que só torna a experiência mais
interessante. Ao não reduzir o escopo da trama, o argumento permite que a
violência possa ser ressignificada. É legal ver, para começar, como logo de
cara Bacurau subverte uma das mais tradicionais convenções do clássico gênero
Faroeste: o arquétipo do estranho sem nome. Tratado frequentemente como um
“agente da justiça”, como aquele que trará paz e desafiará os repressores, os
forasteiros aqui assumem uma nova face. Estamos diante de um Nordeste que não
precisa ser salvo. Apesar dos óbvios obstáculos, estabelecidos com paixão e
dinamismo no imersivo primeiro ato, Bacurau (o município) funciona graças ao
esforço da comunidade. Um resquício de um Brasil mais justo. Mendonça e
Dornelles dedicam o tempo necessário para que possamos enxergar o melhor e o
pior daquele lugar. O forte senso de camaradagem supre a falta de recursos. A
insegurança leva a autoproteção. A comunicação interna compensa o
isolamento dos grandes centros urbanos.
Por mais que o cenário em questão
possa soar um tanto quanto utópico aos olhos do mais “descrentes”, Bacurau (o
filme) nos leva a um Brasil que deu certo. Que luta para fazer a sua própria
sorte. E que não está disposto a abrir mão da sua dignidade. O retrocesso não é uma opção. Ao longo da
primeira metade da película, na verdade, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles se
orgulham das tradições brasileiras\nordestinas ao capturar não só a rotina
destas pequenas cidades do interior, como também ao resgatar alguns dos seus
mais marcantes símbolos. O professor Plínio (Wilson Rabelo), por exemplo, traz
um senso de liderança\empoderamento extremamente atual. O fora da lei Lunga
(Silverio Pereira) surge quase como que um Lampião do século XXI. O pistoleiro
Pacote (Thomas Aquino) remete ao típico criminoso com consciência social. O
político que só aparece na época de eleição (Thardelly Lima) segue uma figura
indiscutivelmente atual. Levar o set para uma cidade real, o povoado de Barra
(RN), tornou tudo muito habitável e reconhecível. Algo que ajuda até mesmo
na composição dos personagens e dos afirmativos diálogos. Por mais que o longa
peque em alguns momentos no desenvolvimento dos seus
protagonistas\antagonistas, graças a esta característica a dupla de diretores
não precisa se aprofundar tanto neles para que possamos compreendê-los. Figuras
como a ressecada Domingas (Sônia Braga), por sinal, é a que melhor sintetiza
isso. Estamos diante de uma mulher valente, uma médica desbravadora, impetuosa,
que conheceu\viveu o melhor e o pior daquela região. O tempo cobra o seu preço.
O passado aflige. O presente já não é tão esperançoso assim. Mas os obstáculos
não se revelam grandes o bastante para derrubá-la. Nem quando eles assumem a
sua fase mais banal\brutal.
É aqui, a meu ver, que chegamos
no tema central de Bacurau: a ascensão da mentalidade fascista em solo
brasileiro. Uma crítica que chega em tempo oportuno. Um produto de importação que tem "contaminado" o mundo. Como disse acima, o
forasteiro aqui não representa a salvação, mas uma ameaça. Mais do que refutar o complexo de vira-lata tão popular em algumas camadas da
nossa sociedade, a sequência em que os estrangeiros discutem a etnia dos seus
parceiros brasileiros, por sinal, é sintomática, Kleber Mendonça Filho e Juliano
Dornelles vão além ao traduzir o impacto da repressão\desigualdade na rotina
deste humilde vilarejo. O enigmático grupo de assassinos liderados por Michael
(Udo Kier) surge para dar eco em tons propositalmente exagerados a raiz de tudo
isso. Ao não esclarecer as motivações do bando, a dupla de realizadores abre
espaço para as mais variadas interpretações. Sadismo? Gentrificação? Opressão
estatal? Genocídio? Eles podem representar a fome que mata, o policial que mata, o estado que
mata, a inércia que meta, as ideias que matam. A violência, aos olhos de Mendonça e Dornelles,
segue como a pior das mazelas sociais. Algo que ganha ainda mais sentido no
momento em que percebemos o quão preparados estavam os moradores de Bacurau
para encarar estes “obstáculos”. A morte, indigesta aos olhos de muitos do
Brasil do Sul, faz\fez parte da rotina de gerações. Se tornou o problema e
também a única saída. Um círculo vicioso selvagem que, de forma gráfica e
inclemente, os diretores fazem questão de escancarar. Ou talvez expugnar.
E isso, é bom frisar, sem nunca
glamourizar a violência e\ou glorificar os seus anti-heróis. À medida que a trama avança, Bacurau vai direto ao
ponto ao transitar do Western para o Horror Social. Por trás do banho de sangue
existem camadas a serem preenchidas. Por trás da aparente banalidade existe
muita realidade. Por trás da resistência existe desconforto, vergonha e mais violência. A tensão anda sempre de mãos dadas com a reflexão. Não existe espaço para heroísmo aqui. Toda a
sequência dentro do museu, por exemplo, mostra a capacidade do longa em olhar
para o futuro tomando o passado como parâmetro. Mais uma vez, a sugestão se
torna uma arma poderosa nas mãos (e não na parede) dos cineastas. O choque,
aqui, além de natural é uma necessidade. No fim, por mais que a abordagem possa
soar um tanto quanto incomoda aos olhos dos mais sensíveis (emocionalmente e
ideologicamente), Bacurau é impetuoso ao não só cobrar uma reação do seu
público, como também ao nos deixar uma inquietante pergunta. É esse o Brasil
que queremos? O país que esquece, que abandona, que fere, que involui? Não,
Bacurau não é um exagero. É um alerta.
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