quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Fugindo do Hype | Bacurau

Um grito de resistência

Alguns filmes estão interessados em propor um diálogo. Outros em passar a sua mensagem. Custe o que custar. Bacurau é o mais novo representante desta lista. Sem um pingo de condescendência, o longa dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles busca em símbolos tipicamente brasileiros a força motriz para tirar do papel um sonoro e agressivo grito de resistência em prol dos esquecidos. Com um pé no Western e outro no Horror Social, o filme usa a violência como um inclemente instrumento de reflexão, indo além do choque pelo choque ao tratar o banho de sangue como uma resposta à altura dos oprimidos. Daqueles que, após anos lutando por dignidade e igualdade, resolvem se insurgir contra alguns velhos e reconhecíveis fantasmas. A morte, aqui, sugere defesa, mas também revolta, raiva, dor... Bacurau, concorde ou não com a sua mensagem final, responde na mesma moeda a fim de reequilibrar uma ingrata balança desnivelada pela ausência do estado, pela desigualdade, pela falta de oportunidades e pela repressão.



Mais do que simplesmente apontar a mira para o outro lado, para a elite e\ou o Estado, Bacurau testa as expectativas do público ao propor a sua áspera crítica social sem se render a velhos estereótipos. Com uma visão pessimista de futuro, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles traduzem o retrocesso sob uma óptica moderna, flertando com elementos do cinema distópico ao sugerir um cenário ainda pior do que já estamos enfrentando. Embora o foco esteja no micro, na realidade dos moradores de uma pequena cidade “fora do mapa”, os cineastas esbanjam astúcia ao insinuar mais do que contextualizar. As respostas, em muitos momentos, estão implícitas, escondidas nas entrelinhas. Num noticiário da TV, numa ação espontânea de um político, num desesperado grito de clamor. O que só torna a experiência mais interessante. Ao não reduzir o escopo da trama, o argumento permite que a violência possa ser ressignificada. É legal ver, para começar, como logo de cara Bacurau subverte uma das mais tradicionais convenções do clássico gênero Faroeste: o arquétipo do estranho sem nome. Tratado frequentemente como um “agente da justiça”, como aquele que trará paz e desafiará os repressores, os forasteiros aqui assumem uma nova face. Estamos diante de um Nordeste que não precisa ser salvo. Apesar dos óbvios obstáculos, estabelecidos com paixão e dinamismo no imersivo primeiro ato, Bacurau (o município) funciona graças ao esforço da comunidade. Um resquício de um Brasil mais justo. Mendonça e Dornelles dedicam o tempo necessário para que possamos enxergar o melhor e o pior daquele lugar. O forte senso de camaradagem supre a falta de recursos. A insegurança leva a autoproteção. A comunicação interna compensa o isolamento dos grandes centros urbanos.


Por mais que o cenário em questão possa soar um tanto quanto utópico aos olhos do mais “descrentes”, Bacurau (o filme) nos leva a um Brasil que deu certo. Que luta para fazer a sua própria sorte. E que não está disposto a abrir mão da sua dignidade. O retrocesso não é uma opção. Ao longo da primeira metade da película, na verdade, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles se orgulham das tradições brasileiras\nordestinas ao capturar não só a rotina destas pequenas cidades do interior, como também ao resgatar alguns dos seus mais marcantes símbolos. O professor Plínio (Wilson Rabelo), por exemplo, traz um senso de liderança\empoderamento extremamente atual. O fora da lei Lunga (Silverio Pereira) surge quase como que um Lampião do século XXI. O pistoleiro Pacote (Thomas Aquino) remete ao típico criminoso com consciência social. O político que só aparece na época de eleição (Thardelly Lima) segue uma figura indiscutivelmente atual. Levar o set para uma cidade real, o povoado de Barra (RN), tornou tudo muito habitável e reconhecível. Algo que ajuda até mesmo na composição dos personagens e dos afirmativos diálogos. Por mais que o longa peque em alguns momentos no desenvolvimento dos seus protagonistas\antagonistas, graças a esta característica a dupla de diretores não precisa se aprofundar tanto neles para que possamos compreendê-los. Figuras como a ressecada Domingas (Sônia Braga), por sinal, é a que melhor sintetiza isso. Estamos diante de uma mulher valente, uma médica desbravadora, impetuosa, que conheceu\viveu o melhor e o pior daquela região. O tempo cobra o seu preço. O passado aflige. O presente já não é tão esperançoso assim. Mas os obstáculos não se revelam grandes o bastante para derrubá-la. Nem quando eles assumem a sua fase mais banal\brutal.


É aqui, a meu ver, que chegamos no tema central de Bacurau: a ascensão da mentalidade fascista em solo brasileiro. Uma crítica que chega em tempo oportuno. Um produto de importação que tem "contaminado" o mundo. Como disse acima, o forasteiro aqui não representa a salvação, mas uma ameaça. Mais do que refutar o complexo de vira-lata tão popular em algumas camadas da nossa sociedade, a sequência em que os estrangeiros discutem a etnia dos seus parceiros brasileiros, por sinal, é sintomática, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles vão além ao traduzir o impacto da repressão\desigualdade na rotina deste humilde vilarejo. O enigmático grupo de assassinos liderados por Michael (Udo Kier) surge para dar eco em tons propositalmente exagerados a raiz de tudo isso. Ao não esclarecer as motivações do bando, a dupla de realizadores abre espaço para as mais variadas interpretações. Sadismo? Gentrificação? Opressão estatal? Genocídio? Eles podem representar a fome que mata, o policial que mata, o estado que mata, a inércia que meta, as ideias que matam. A violência, aos olhos de Mendonça e Dornelles, segue como a pior das mazelas sociais. Algo que ganha ainda mais sentido no momento em que percebemos o quão preparados estavam os moradores de Bacurau para encarar estes “obstáculos”. A morte, indigesta aos olhos de muitos do Brasil do Sul, faz\fez parte da rotina de gerações. Se tornou o problema e também a única saída. Um círculo vicioso selvagem que, de forma gráfica e inclemente, os diretores fazem questão de escancarar. Ou talvez expugnar. 


E isso, é bom frisar, sem nunca glamourizar a violência e\ou glorificar os seus anti-heróis. À medida que a trama avança, Bacurau vai direto ao ponto ao transitar do Western para o Horror Social. Por trás do banho de sangue existem camadas a serem preenchidas. Por trás da aparente banalidade existe muita realidade. Por trás da resistência existe desconforto, vergonha e mais violência. A tensão anda sempre de mãos dadas com a reflexão. Não existe espaço para heroísmo aqui. Toda a sequência dentro do museu, por exemplo, mostra a capacidade do longa em olhar para o futuro tomando o passado como parâmetro. Mais uma vez, a sugestão se torna uma arma poderosa nas mãos (e não na parede) dos cineastas. O choque, aqui, além de natural é uma necessidade. No fim, por mais que a abordagem possa soar um tanto quanto incomoda aos olhos dos mais sensíveis (emocionalmente e ideologicamente), Bacurau é impetuoso ao não só cobrar uma reação do seu público, como também ao nos deixar uma inquietante pergunta. É esse o Brasil que queremos? O país que esquece, que abandona, que fere, que involui? Não, Bacurau não é um exagero. É um alerta.

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