sábado, 30 de novembro de 2019

Crítica | Atlantique (Atlantics)

Queremos Justiça!

Sensação no Festival de Cannes deste ano, onde ganhou o prêmio Grand Prix, Atlantique é o tipo de obra que merece o alcance dado por companhias como a Netflix. Adquirido pela gigante do streaming após o burburinho causado no respeitado evento francês, o longa independente dirigido por Mati Diop causa um impacto natural ao discutir as chagas causada pela desigualdade e pela injustiça social dentro de um contexto particularmente instigante. Mais do que refletir a realidade de um grupo de jovens senegaleses, a realizadora amplia o escopo da obra ao tocar em temas mundialmente reconhecíveis. Ao conseguir encontrar um inteligente meio termo entre o Drama, o Romance e (pasmem) o Horror, Diop dá voz àqueles que tiveram os seus sonhos ceifados na busca por condições melhores numa produção vistosa, poética e ao mesmo tempo contundente. Uma obra que, apesar do ritmo inconstante, compensa com autenticidade e uma assinatura visual impressionante.


Cansados de conviver com os atrasos de salários, um grupo de empreiteiros senegaleses decide se arriscar no mar na tentativa de encontrar sorte melhor na Espanha. Entre eles estava Souleiman (Traore), um jovem desolado por não conseguir viver o seu amor pela independente Ada (Mame Bineta Sane). Enquanto ele partia para uma perigosa viagem, ela lidava com a frustração de ter que casar com um ricaço da região à desejo dos seus pais. Quando uma devastadora notícia chega ao seu conhecimento, Ada se vê obrigada a embarcar nesta relação por conveniência. Tudo muda, no entanto, quando uma misteriosa presença passa a afetar Ada e suas amigas, iniciando uma revolta contra aqueles que os lançaram ao mar. Uma premissa por si só instigante, não¿ Num primeiro momento, porém, Atlantique pode afugentar o seu público devido a uma aparente falta de confiança no seu original ‘plot’. A impressão que fica é que Mati Diop, na ânsia de reproduzir a rotina dos seus personagens sob uma perspectiva naturalista, titubeia em abraçar o elemento fantástico. Ao longo do imersivo, mas lento primeiro ato, a cineasta escreve uma crônica sobre a falta de perspectivas de um grupo de jovens diante da desigualdade, do machismo e da insensibilidade daqueles que mais deviam. Tudo é muito real. Muito identificável. Muito trágico. A realizadora pinta a realidade como ela é, sem filtros, sem atenuantes, sem falsas expectativas. O problema é que, para isso, Diop arrasta o curso da trama durante a sua primeira metade. Se por um lado a diretora é cuidadosa ao estabelecer o intenso elo entre Ada e Souleiman, por outro ela pisa no freio ao se apegar demais à sua protagonista. Falta pulso narrativo, falta espaço para os personagens de apoio, falta profundidade aos antagonistas.


No momento em que Atlantique começava a dar indícios de que não entregaria aquilo que havia prometido, entretanto, Mati Diop faz jus as expectativas ao gradativamente trazer o horror para o centro da história. Embora sem o teor gráfico de títulos recentes como Corra! e Nós, a realizadora esbanja originalidade ao se insurgir contra a injustiça social através de um peculiar duelo de classes. Diop trata o elemento fantástico como um agente catalisador. Tanto para os seus personagens, quanto para a trama como um todo. Ao jogar limpo com o público, a cineasta aquece as coisas ao discutir a realidade destes jovens dentro contexto ora poético e romântico, ora sinistro e contundente. Uma reflexão potencializada pela criatividade com que Diop se apropria das convenções do gênero. Quando precisa ameaçar, a realizadora entrega ao caprichar na “presença” em transe das manifestações. Com alguns poucos recursos práticos ela consegue extrair o máximo do ‘plot’ em pelo menos duas sequências. É legal perceber, porém, como o longa nunca reduz tudo ao lugar comum. A intenção dela não é assustar, mas comover. Ou talvez indignar. Diop realça não só o sentimento de revolta contido no texto, como também a sensação de dor, tristeza, ausência e principalmente amor. Com uma solução visual simples e ao mesmo tempo genial, a realizadora permite que o público também enxergue o outro lado das manifestações, nos presenteando com um par de cenas de partir o coração.


Num todo, aliás, Atlantique é um verdadeiro deleite visual. Apesar da forte carga naturalista, Mati Diop extrai a beleza da realidade sempre que possível. Com enquadramentos estilosos, ela consegue capturar o tortuoso estado do espírito dos seus personagens com muito refinamento. Existe uma clara preocupação com a textura da imagem. Com o efeito da luz sobre os seus atores. Impressiona a habilidade da realizadora em explorar o brilho da pele negra de forma quase sempre majestosa. Além disso, a primorosa fotografia em tons frios\azulados de Claire Mathon cria uma série de composições expressivas. É nítido que as duas conseguem muito com tão pouco. A inventividade salta aos olhos. Um conjunto imagético valorizado pelo talentoso elenco jovem. Todos, sem exceções, convencem ao traduzir os urbanos conflitos dos seus personagens, com destaque para a forte presença de Nicole Sougou como a descomplicada Dior. Que personagem incrível. Embora custe a engrenar, Atlantique invade uma trágica realidade com peso e originalidade, explorando elementos do renovado horror social na construção de um romance com óbvias raízes dramáticas. Uma combinação ousada que funciona.

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