Steven Soderbergh é um dos
diretores mais autorais de Hollywood na atualidade. Um cineasta inquieto, com
uma visão de mundo própria, capaz de transitar entre gênero contrastantes
sempre com algo a dizer sobre um tema efervescente dentro da sociedade
norte-americana. O seu pior filme é melhor (e mais ousado) do que a grande
maioria dos longas lançados no circuito comercial. Algo que fica bem claro com
A Lavanderia. Seu mais novo projeto em parceria com a Netflix, o anterior foi o
ótimo High Flying Bird, Soderbergh arquiteta um manifesto em formato fílmico. Uma
obra irregular, por vezes dispersa, montada numa estrutura genérica, mas de
natureza crítica e genuinamente ferina. O tipo de longa que pode ser acusado de
tudo, menos de covardia. Talvez o predicado mais importante num filme denúncia
deste porte.
Em 2016, num furo jornalístico de
proporções globais, mais de 11 milhões de documentos relacionados a grandes
empresas e a criação de ‘offshores’ foram vazados por uma fonte conhecida como
John Doe. O caso ficou conhecido como Panama Papers. Através da denúncia, o
mundo tomou conhecimento de um esquema de sonegação de impostos\desvio de
dinheiro para paraísos fiscais que abalou as estruturas de diversos países.
Entre os citados no vazamento estavam pessoas e empresas ligadas a grandes
figuras do poder em nações como o Reino Unido, a China, os EUA e (claro!) o
Brasil. Por aqui, o Panama Papers, por exemplo, ajudou a expor o esquema de corrupção
da Oderbretch em toda a América Latina. Embora sustentada pela lei, uma firma
de advogados localizada no Panamá ajudou a criar\administrar centenas de
milhares de empresas de fachada ao redor do mundo (as tais ‘offshores’),
servindo como cortina de fumaça não só para negócios de aparência legal, mas
principalmente para esquemas de corrupção, tráfico de drogas, evasão fiscal e
todo tipo de fraude.
Enquanto manifesto, A Lavanderia
impressiona pela coragem com que enxerga além do caso em questão. Com base no
livro Secrecy World: Inside the Panama Papers Investigation of Illicit Money
Networks and the Global Elite, do jornalista investigativo Jake Bernstein,
Steven Soderbergh usa o Panama Papers como o ponto de partida para uma denúncia
mais atual e impactante. Fazendo um perspicaz uso da metalinguagem e da
constante quebra da quarta parede, os narradores da história são Jurgen (Gary
Oldman) e Rámon (Antonio Banderas), os fundadores da Mossack Fonseca, o
cineasta se apropria do ponto de vista dos corruptores para refletir sobre um ‘modus
oprandi’ muito mais ordinário do que parecia ser. Soderbergh não se contenta
somente em reproduzir os fatos. Em investigar o drama humano. Em revelar as
consequências da denúncia. Com uma estrutura narrativa quase episódica, o
argumento assinado pelo seu velho colaborador Scott Z. Burns enxerga o macro a
partir do micro, tecendo os seus mais ferinos comentários sobre a verdade “camuflada”
neste escândalo a partir de quatro pequenos (e desconexos) arcos. Os
personagens sequer habitam na mesma realidade. Embora fiel aos fatos,
Soderbergh é astuto ao imprimir em tela as suas interpretações sobre os mesmos.
Jurgen e Rámon não só contextualizam todo o esquema aos olhos do público, como
também levantam algumas provocantes questões envolvendo a responsabilidade
individual, a conveniência do sistema bancário, as brechas da lei no que diz
respeito ao sistema financeiro e a inércia do governo norte-americano quanto a
tudo isso. É impossível ser mais claro. Soderbergh usa o seu talentoso elenco,
em especial a engajada Meryl Steep, como porta voz de um recado enfático e
inflamado para a sociedade norte-americana. O problema é bem mais complexo e
perigoso do que muitos pensam. Enquanto os pequenos pagam muito ao governo, os
gigantes “surfam na onda” da isenção. Quando preciso, aliás, Soderbergh chega a
cortar na própria carne para defender o seu ponto, num exercício que quebra da
quarta parede realmente genial.
Na ânsia de defender esta
mensagem, porém, A Lavanderia falha enquanto filme. Num dos projetos mais
derivativos da sua prolífera carreira, Steven Soderbergh bebe demais na fonte
de títulos como A Grande Aposta (2014), o que explica a clara sensação de já vi
isso antes. A comparação é inevitável. Em sua estrutura, o longa não titubeia
em reciclar soluções exploradas anteriormente por Adam McKay, entre elas a
constante quebra da quarta parede, os diálogos propositalmente didáticos, os ‘insights’
irônicos, a distribuição de personagens por segmentos, o flerte com a linguagem
documental. O problema não está na similaridade entre os projetos, mas na
ineficácia de Soderbergh em usar estes elementos para contar a sua história. Ao
contrário de A Grande Aposta, um dos meus filmes favoritos na década, A
Lavanderia se revela um drama frouxo, narrativamente irregular, com um falho
senso de unicidade e nítidos problemas de ritmo. Além de não dialogarem diretamente
entre si, os quatro subplots são construídos\desenvolvidos de maneira abrupta. Soderbergh
sacrifica demais tanto o drama humano proposto pelo argumento, quanto o clima
de tensão em torno de algumas passagens. Em diversos momentos parece que o
roteiro não está levando os seus personagens (e os atos deles) tão a sério. E o humor, involuntário ou não, não funciona tão bem aqui. Tipos
como a vítima do sistema interpretada por Meryl Streep, o marido infiel vivido
por Nonso Anozie e a ricaça chantageada representada por Rosalind Chao surgem
(e desaparecem) da tela com inexplicável aleatoriedade. Os seus arcos podem até funcionar de
forma isolada, embasar a crítica política proposta pelo realizador, mas, diante da superficialidade
com que o roteiro os trata, não conseguem ir além disso. O que ajuda a explicar
o ritmo inconstante do filme e a crescente sensação de falta de foco por parte
de Soderbergh. Menos mal que, nos momentos em que o longa decide situar o
público quanto aos meandros do esquema, o cineasta compensa ao usar o viés
expositivo com inteligência e poder de síntese.
Com um elenco de primeira em
mãos, Meryl Streep e Gary Oldman estão soberbos como de costume, Steven
Soderbergh faz de A Lavanderia um filme cada vez mais raro. Mesmo com
grosseiros problemas narrativos, o longa cresce assustadoramente no último ato,
quando, sem papas na língua, decide colocar o dedo na ferida como rara
objetividade. Coisas de um realizador acostumado a desafiar o sistema, a
refletir sobre o meio em que vivemos, a se posicionar através da sua arte. Essa
também pode ser a função do cinema.
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