sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Crítica | High Flying Bird

Uma destemida busca pela valorização

Em 2011, a NBA, a liga de basquete norte-americana, enfrentou o seu último grande locaute, uma espécie de paralisação em que as franquias, por alguma desavença financeira com os atletas, impedem que eles joguem\treinem\usem as instalações do clube que representam. Ou seja, os jogadores não só eram impedidos de trabalhar, mas também viam os seus vencimentos serem sumariamente bloqueados pelos donos dos clubes. Na época, os craques da bola laranja lutavam para receber uma fatia maior dos lucros conseguidos pela liga, uma reclamação que urgia havia algum tempo e que fez o sistema se tornar ao menos um pouco mais justo para os atletas nos últimos anos. Inspirado por este tema, digamos, nada cinematográfico, Steven Soderbergh volta a mostrar a sua particular visão sobre fatos relevantes na instigante comédia esportiva High Flying Bird. No melhor estilo A Grande Aposta (2015), o aclamado realizador enxerga neste aparentemente burocrático ‘plot’ a chance de refletir sobre questões bem mais complexas acerca da posição do atleta num esporte majoritariamente negro, reinterpretando os bastidores de uma tênue negociação sob uma perspectiva ágil, inteligente e saborosamente crítica. 



Não espere, porém, um acessível drama esportivo do tipo Jerry Maguire: A Grande Virada (1997) e A Grande Escolha (2014). High Flying Bird é um filme difícil, que troca o frisson das quadras por uma truncada negociação envolvendo o destino de um jovem atleta profissional dentro da NBA. Como se não bastasse o viés extremamente verborrágico do afinado texto do roteirista Tarell Alvin McCraney, Steven Soderbergh não parece minimamente interessado em oferecer aquilo que o espectador esperava assistir. Numa opção narrativa ousada, o realizador praticamente rompe com a estrutura de atos ao investir numa trama linear e objetiva. Um retrato revelador sobre os destemidos atos de um empresário pouco ortodoxo, o audacioso Ray (André Holland), disposto a desafiar o sistema na tentativa de colocar o ponto final num locaute que insistia em não terminar. Embora o arco central seja em sua maioria ficcional, Soderbergh esbanja sagacidade ao trazer o documental para o centro da trama, se distanciando por diversas vezes da negociação em si ao escancarar os pormenores em torno de um ‘status quo’ injusto e desigual.


Na verdade, a impressão que fica é que o locaute em si é tratado como uma desculpa para que High Flying Bird investigue a delicada posição dos tantos jovens (e geniais) atletas negros numa indústria dominada por uma minoria branca. Por mais que a intrépida jornada do astuto empresário sustente com ironia e desenvoltura a trama até o comedido desfecho, ponto para a enérgica performance de André Holland (Moonlight), Steven Soderbergh eleva o nível da sua obra ao tentar entender o paradoxal jogo de interesses dentro da indústria. Com propriedade e uma visão realística sobre o tema, o realizador volta a raiz dos problemas ao escancarar como um esporte formado\consagrado por negros passou a ser quase que completamente comandado por empresários ‘yankees’. Sem medo de soar pretensioso, uma coragem bem comum na sua filmografia, Soderbergh evita ao máximo interferir na complexidade do texto de Tarell Alvin McCraney, deixando se levar pela verborragia verdadeira do script enquanto, através da descolada figura de Ray, toca em feridas bem mais incômodas. Fazendo um primoroso uso dos planos sequenciais, dos engenhosos movimentos de câmera e dos seus intimistas enquadramentos, o diretor é cuidadoso ao olhar para o futuro sem esquecer do passado, dando voz aos cativantes personagens de apoio na tentativa pintar um retrato mais fiel possível sobre a dinâmica dentro da indústria.


A partir da relação entre Ray e o seu tutor, o rígido Spence (Bill Duke, extraordinário), Steven Soderbergh olha para trás ao expor como pouca coisa mudou durante muito tempo, tecendo alguns brilhantes comentários acerca da perda de poder dos atletas negros dentro de uma modalidade que eles ajudaram a formar. Um subplot afetuoso e genuinamente cômico que dialoga perfeitamente com a situação de Erick Scott (Melvin Gregg), um genial jovem atleta draftado que, diante do locaute, se vê em apuros ao ficar preso num limbo entre a NBA e o total desamparo. Através do arco da promissora revelação, que se torna o gatilho para o ousado plano de Ray na busca pela renegociação salarial, o realizador esbanja perspicácia ao explorar este choque de realidades, ao escancarar o misto de despreparo, deslumbre e vulnerabilidade de mais um rosto em busca da sua chance de brilhar. É legal ver como, ao longo do filme, o diretor abraça o tom documental ao preencher a trama com alguns preciosos depoimentos de novas estrelas da NBA, entre eles Karl-Anthony Towns e Donovan Mitchell, que, além de embasarem os conflitos do co-protagonista, expõem detalhes das suas próprias experiências que só reforçam o viés crítico da obra como um todo. Somado a isso, nas entrelinhas, o diretor é sutil ao tecer um denso comentário sobre a perda do encanto\identidade dentro desta milionária franquia, revigorando o tema ao discorrer sobre a dura a realidade de um jogador obrigado a reprimir os seus sentimentos. Um arco urgente que, me arrisco a dizer, poderia (e deveria) ser desenvolvido com maior profundidade. A cereja do bolo de High Flying Bird, entretanto, fica pela maneira com que Soderbergh trata as suas duas empoderadas personagens femininas. Mais do que evidenciar a óbvia desigualdade de gênero dentro de uma grande "máquina" deste porte, a impetuosa assistente vivida pela magnética Zazie Beetz e a cascuda representante dos atletas interpretada por Sonja Sohn ajudam a modernizar esta visão sobre o hostil mundo corporativo, deixando claro que elas estão completamente preparadas para desafiar o pretenso poder masculino de tipos como o ardiloso porta-voz dos clubes vivido por Kyle Maclachlan.


Conduzido com pulso narrativo e elegância, High Flying Bird é o tipo de obra desafiadora que merece ser apreciada com atenção. Ao não se sentir obrigado a entregar aquilo que o público talvez quisesse ver, o que fica bem claro, em especial, dentro do refinado terço final, Steven Soderbergh encontra nesta produção original Netflix a liberdade para expor as idiossincrasias de uma liga do porte da NBA, indo a fundo em temas espinhosos sem a intenção de simplificar as coisas em prol da construção cinematográfica. Mais um singular capítulo da filmografia de um realizador (gostem ou não) imprevisível.

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