Cercado de expectativas, a
adaptação em ‘live-action’ da aclamada graphic-novel Laços se revelou desde a
sua gênese um projeto desafiador. Muito estava em jogo. Verdadeiros símbolos de
algumas gerações, Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali sempre trouxeram consigo o
agradável sabor da infância. E nunca é fácil trabalhar com personagens com
tamanho vínculo afetivo junto ao público. Pelo contrário. A responsabilidade
definitivamente era muito grande. O projeto, porém, não poderia estar em mãos
melhores. Trazendo no currículo o recente (e afiadíssimo) Bingo: O Rei das Manhãs (2017), Daniel Rezende mostra em Laços uma sensibilidade difícil de se
traduzir em palavras. Após devassar a década de 1980 sob uma perspectiva ácida
e adulta, o realizador usa o senso de nostalgia desta vez sob um filtro
genuinamente lúdico numa obra sapeca, comovente e acima de tudo encantadora. Um
filme recheado de sentimento que, dentre os seus inúmeros predicados estéticos
e narrativos, encontra na energia juvenil do seu cativante elenco infantil os
ingredientes necessários para capturar a essência do material fonte.
É fácil entender porque as
histórias em quadrinhos da Turma da Mônica se mantiveram tão em alta nas últimas
seis décadas. Tão presentes no imaginário do público brasileiro. Como se não
bastasse a vasta gama de personagens absolutamente cativantes, a atemporalidade
da criação de Maurício de Souza sempre foi muito perceptível. Poucos criadores
conseguiram entender tão bem a essência de uma fase mágica das nossas vidas. Ainda
hoje, Turma da Mônica é capaz de nos teletransportar para um momento em que a
traquinagem imperava, em que baixinha(o) e gordinha(o) eram ofensas
pesadíssimas, em que a nossa grande preocupação era atazanar a vida daquela
amiga(o) mais marrenta. Uma fase que, primeiro, a graphic novel Laços soube
capturar tão bem. Embora sob uma perspectiva mais infanto-juvenil, sentimentos
antes apenas sugeridos entre os personagens aqui ficaram mais fortes, a vistosa
releitura dos irmãos Vitor e Lu Cafaggi conseguiu atualizar a dinâmica entre os
protagonistas sem nunca descaracteriza-los. Um acerto que se repete na
fascinante adaptação proposta por Daniel Rezende. Cebolinha (Kevin Vechiatto)
segue um rebelde incurável, Mônica (Giulia Benitte) segue irritável e mandona,
Magali (Laura Rauseo) segue peralta e comilona e Cascão (Gabriel Moreira) segue
ressabiado e com medo de água. O bairro do Limoeiro nunca esteve tão vivo. Tão
colorido. Tão imersivo. Mesmo com as suas diferenças, a maioria delas causada
pela clássica rixa entre Mônica e Cebolinha, o grupo se vê obrigado a entrar
numa grande aventura quando Floquinho é roubado por um estranho misterioso.
Unidos nesta causa, o quarteto não demora muito para perceber a importância do
elo entre eles e o valor imensurável de uma amizade em dias difíceis.
Embora sob uma perspectiva lúdica
e infantil, Turma da Mônica: Laços é o tipo de projeto que facilmente transpõe
as barreiras da idade. É praticamente impossível não se encantar com a dinâmica
entre os personagens, a rica construção de mundo e a leveza cômica do redondo argumento
assinado por Thiago Dottori. A aventura ganha forma de maneira natural. Daniel
Rezende sabe bem definir a diferença entre o simples e o simplório. Buscando
referência no universo dos games, em especial do RPG, o argumento é sagaz ao
construir a ‘quest’ dos personagens, ao valorizar o senso de jornada, ao
permitir que os enxerguemos melhor ao longo desta escapista missão de resgate.
Rezende nos presenteia com um ‘mise en scene’ criativo e intuitivo. Uma pista
leva a outra com esperteza. O senso de desafio e também de escala aumenta com o
avançar da história. Repare como pouco a pouco os exuberantes planos vão
ficando mais abertos. Mais imponentes. Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali vão
sendo “engolidos” pelo cenário. Quando coloca os quatro num mesmo quadro,
aliás, o diretor nos brinda com enquadramentos dignos de moldura. A trama, que
começa num cenário bem reconhecível aos olhos dos fãs das clássicas histórias
em quadrinhos, logo ganha ares imageticamente cinematográficos. Fiel aos traços
e a vibrante palheta de cores da graphic novel, Rezende nos deixa com os olhos
marejados por diversos momentos enquanto solidifica o comovente vínculo entre
os personagens. Por mais que o clima de constante brincadeira renda uma série
de situações pueris, é legal ver como, sempre que necessário, o cineasta
encontra as brechas para tocar o coração do público sem apelar para o
sentimentalismo ou para o senso de nostalgia barato. Fora da sua zona de
conforto os personagens passam a responder de forma mais humana, passam a
reagir aos seus sentimentos. Toda a criativa passagem envolvendo o Louco
(Rodrigo Santoro), por exemplo, é a prova viva disso. O que era para ser um
‘fan-service’ ganha uma função narrativa muito importante. Tal qual nos
quadrinhos, o transloucado amigo imaginário do Cebolinha surge para zoar e
também para esclarecer.
O melhor de Turma da Mônica:
Laços, na verdade, está nestes momentos mais afetuosos. Com delicadeza e esmero
ao extrair dos jovens atores as emoções pedidas pelas cenas, Daniel Rezende vai
bem além dos arquétipos ao olhar para dentro dos seus personagens. Em especial
na conturbada dinâmica entre Mônica e Cebolinha. Impecável ao construir a rixa
pueril entre os dois, aos poucos, sempre com muito cuidado, Rezende traz
elementos do ‘coming of age movie’ para a sua trama. Existe uma jornada de
descobertas infanto-juvenil. Nas entrelinhas, o roteiro é sutil ao trabalhar o
sentimento entre os dois, o misto de cumplicidade, admiração e irritação entre
eles. E isso sem sacrificar a atmosfera atemporal da hq. Não é porque vivem num
universo “analógico” que a turma deixaria de ser reconhecível aos olhos dos
mais jovens. Os personagens agem e reagem como crianças. Quando não conseguem o
que querem, ou não estão preparados para lidar com isso, distorcem ingenuamente
as suas próprias emoções na busca por uma espécie de compensação. No fim, a
fofíssima troca de olhares entre Mônica e Cebolinha deixa claro qual a razão
por trás da incessante busca dele pelo coelhinho Sansão. Um senso de verdade
valorizado pelo carisma do elenco infantil. Embora todos estejam bem, mesmo com
a esperada inexperiência, a expansiva Giulia Benitte impressiona ao entender
perfeitamente o estado de espírito da sua reativa Mônica. Como se não bastasse
a sua fantástica caracterização, a promissora jovem atriz quando necessário
traz à tona sentimentos mais íntimos da sua personagem, fazendo jus a releitura
levemente ‘teen’ proposta pela graphic novel. Uma pena que, ao contrário da
Mônica e do Cebolinha, a faminta Magali e o ágil Cascão não possuam um arco tão
denso, ficando mais próximos da estética cartunesca. O que talvez mais incomode
em Laços, entretanto, é a ausência de um vilão marcante. Ao contrário de
clássicos como Os Goonies (1985) e Deu a Louca nos Monstros (1987), a ameaça é
frágil e tratada com extrema inofensividade pelo argumento, o que, em parte,
ajuda a diminuir o peso do clímax.
Pequenos deslizes narrativos que,
verdade seja dita, praticamente desparecem diante dos inúmeros predicados
estéticos. O que falar, por exemplo, do detalhista design de produção, cuidadoso
ao capturar a simplicidade cênica dos quadrinhos. Ou então da expressiva
fotografia em tons vivos de Azul Serra (Aos Teus Olhos), vigorosa ao extrair o
máximo da lúdica palheta multicolorida pensada por Daniel Rezende. E, por fim,
como não se arrepiar com os acordes orquestrais doces e virtuosos da trilha
sonora de Fábio Goes (Carrossel: O Filme). Uma composição que casa
perfeitamente com a aura lúdica\afetiva pensada por Rezende. O tipo de filme
que você assiste com sorriso de canto de rosto do começo ao fim, Turma da Mônica: Laços faz
jus as expectativas ao nos presentear com uma experiência cada vez mais rara no
concorrido mercado dos blockbusters. Uma obra para a garotada, para os adultos
que não cresceram e também para àqueles dispostos a dar voz (e a ouvir) a sua
criança interior. Uma janela com vista para a infância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário