sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Bingo: O Rei das Manhãs

Senhoras e senhoras, que filme! E é Nacional


Indo de encontro ao tom protocolar que tomou conta das cinebiografias nacionais, vide os recentes Elis e João, O Maestro, Bingo: O Rei das Manhãs eleva o nível da brincadeira ao não se contentar em desvendar somente a trajetória do homem por trás de um fenômeno. Sob a estilosa batuta de Daniel Rezende, que estreia na direção de longas metragens após anos trabalhando na montagem\edição de títulos do porte de Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e A Árvore da Vida (2011), o filme equilibra ficção e realidade com extrema desenvoltura, absorvendo a aura politicamente incorreta dos anos 80 numa obra densa e irreverente. Embora inspirado na vida de Arlindo Barreto, o responsável por encarnar a versão mais popular do icônico palhaço Bozo, o realizador brilha ao encontrar as brechas necessárias para ampliar o escopo da trama, se aprofundando em temas bem mais complexos ao traduzir o impacto da fama na rotina de um ator movido pela luz dos holofotes. Impulsionado pela catártica performance de Vladmir Brichta, num trabalho capaz de redefinir uma carreira, Bingo se revela então uma película sobre os extremos da carreira artística, um relato íntimo, hilário e tecnicamente primoroso sobre um homem em busca de reconhecimento precisando conviver com as consequências da sua própria ambição.


Com roteiro assinado por Luis Bolognesi, dos ótimos Bicho de Sete Cabeças (2000) e As Melhores Coisas do Mundo (2011), O Rei das Manhãs acerta em cheio ao se encantar pela faceta mais excêntrica deste obstinado ator. Entre lendas dos bastidores dos programas matinais da década de 1980 e fatos realmente verídicos, Daniel Rezende enche a tela de energia ao transformar o transloucado Bingo numa espécie de símbolo daquele período, um personagem livre e indomável capaz de encarnar a incorretismo com absoluta naturalidade. Mesmo limitado pelas questões dos direitos autorais, o que explica, inclusive, a alteração no nome do palhaço, o diretor é sagaz ao dialogar com um passado ainda hoje tão presente, embalando a trama com uma enxurrada de espertas referências (Emanuelle Araújo dá um show como Gretchen), uma direção de arte preocupadíssima em recriar os visual da época e uma nostálgica trilha sonora de fazer inveja a qualquer uma destas descoladas produções Hollywoodianas. Magnifico ao estabelecer a eferverscência e o exotismo da TV brasileira na década de oitenta, Rezende é igualmente habilidoso ao introduzir a figura de Augusto Mendes (Brichta). Com um texto refinado e recheado de ritmo, o diretor transita entre a comédia e o drama ao dissecar a psique deste ator, um homem com sede de sucesso determinado a seguir o legado da sua mãe, a grande diva do teatro\televisão Martha Mendes (Ana Lúcia Torre, excelente). Contando sempre com o apoio do seu filho, o compreensivo Gabriel (Cauã Martins), seguia à procura do seu lugar ao sol, enquanto trabalhava nas populares pornochanchadas e em pequenos papéis nas novelas da TV Mundial (numa clara citação à TV Globo). Incomodado com o seu ridículo tempo de tela, Augusto resolve fazer um teste numa novela da concorrência, a TVP (numa clara alusão ao SBT). Lá, porém, ele descobre que os produtores estavam procurando um ator para apresentar o novo programa matinal da emissora, encontrando assim a oportunidade que iria mudar a sua vida de uma vez por todas.


Com uma impressionante coesão narrativa, Daniel Rezende consegue não só reproduzir a ascensão do protagonista enquanto apresentador infantil, como também preencher o longa com questões bem mais densas sobre o mundo da fama. Num primeiro momento, o realizador empolga ao narrar o surgimento do Bingo e a sua delirante relação com o sucesso. Sem medo de soar incorreto, ele é vigoroso ao retratar o magnetismo de Armando, a sua face mais extrema e genial, nos brindando com momentos estilosos e engraçadíssimos. Como não citar, por exemplo, a impagável cena do teste, um take memorável daqueles que nos conquistam em poucos segundos. Fazendo um primoroso uso dos planos sequências, Rezende exibe o seu virtuosismo técnico ao realçar a liberdade da TV ao vivo nos anos 80, ao capturar a performance do personagem enquanto Bingo, incrementando as apresentações do palhaço ao investir num 'mise en scene' ágil, vibrante e naturalmente cativante. Da dinâmica interação entre Armando, a rígida produtora Lucia (Leandra Leal) e o extrovertido câmera Vasconcelos (Augusto Madeira), inclusive, nascem algumas das sequências mais marcantes da película, muito em função do ritmo impresso pelo diretor e da fluida relação entre o texto e a imagem. Nesse meio tempo, entretanto, é interessante ver o cuidado de Rezende ao se concentrar também no aspecto mais destrutivo do personagem. Embora as drogas, o álcool e a atribulada vida noturna surjam, inicialmente, como um reflexo do eufórico estado de espírito do protagonista, o roteiro é maduro o bastante ao mostrar que o seu comportamento excessivo não estava necessariamente atrelado à fama. Já no fantástico primeiro ato é possível perceber a instabilidade de Armando, a sua obsessão pelos holofotes, a sua perigosa relação com o sucesso. Na verdade, Bingo: O Rei das Manhãs em nenhum momento recorre aos clichês e ao sentimentalismo barato. Apesar do pé na ficção, Rezende não reduz a jornada do apresentador ao típico arco moral. Nos piores e nos melhores momentos ele se revela o mesmo tipo, um pai zeloso, um filho amoroso, um homem falho dividido entre a família e o estrelato, entre a arte e o vício. Uma abordagem humana que, indiscutivelmente, se torna o grande diferencial da segunda metade da trama, principalmente quando o argumento decide se debruçar sobre as consequências desta vida sem limites. 


Com dilemas tão bem estabelecidos em mãos, Daniel Rezende foge do lugar comum ao não tentar aparar todas as arestas do longa. Esqueça, portanto, os abraços lacrimosos e os discursos de perdão. A conexão entre os personagens é tão estreita, tão convincente, que o realizador precisa de poucas cenas para desatar os nós, para restabelecer a harmonia entre eles. As justificativas são tão óbvias que não precisam ser ditas. Além disso, mesmo fiel à trajetória de Arlindo Barreto, Rezende é delicado ao traduzir a mudança de vida de Armando, ao não torna-la abrupta e nem tão pouco hipócrita, respeitando a devoção artística do personagem num desfecho singelo e totalmente coerente com os fatos. Sem a necessidade de perder tempo com redundâncias narrativas típicas do segmento, o diretor encontra aqui as brechas necessárias para transitar por temas bem mais recorrentes dentro do mundo do showbiz. Assim como Bingo, o argumento faz questão de abraçar os extremos, evidenciando os dualismos presentes na vida de um ator. "Uns nascem formigas, outros cigarras, nós nascemos mariposas, sempre à procura da luz de um holofote", com frases como esta Rezende investiga a voracidade do mundo da fama e o quão tênue é a linha entre o triunfo e o fracasso, entre o apogeu e a decadência, entre o sucesso e o reconhecimento. O argumento, aliás, é inteligente ao explorar a paradoxal situação de Armando, um fenômeno da TV "oprimido" pela identidade do seu alter-ego Bingo, um arco dramático que cresce gradativamente até o incisivo clímax. Sem querer revelar muito, o diretor é igualmente genial ao usar Martha, uma ex-estrela reduzida ao papel de jurada em um show de talentos, como a força motora de Armando, expondo tanto a sua devoção pela mãe, e consequentemente pelo mundo da atuação, quanto os seus mais enraizados medos. Indo de pontuais flashbacks à comoventes diálogos, a relação entre os dois escancara o melhor e o pior deste efêmero universo, permitindo que o público tenha uma visão completa sobre o assunto. Sem medo de errar, a cena em que o filho tenta consolar a sua genitora após uma dolorosa recusa é soberba, uma das sequências mais belas e profundas que tive a oportunidade de assistir neste ano. 


Um momento memorável impulsionado pela riqueza estética de Daniel Rezende. Num filme sobre a busca do sucesso, sobre o brilho da fama, ele usa a luz de maneira inventiva, refletindo o estado de espírito dos personagens com extrema originalidade. Na fase áurea do apresentador, a iluminação radiante dos holofotes reforça as cores, a ebulição cultural e o glamour que o cercava. Já na transição para o segundo ato, o realizador investe numa composição mais incidental, fazendo um inspirado uso da meia luz (e das sombras) ao realçar a decadência, a deterioração emocional do protagonista ou então alguns objetos cênicos. Um trabalho incrível capturado com maestria pela versátil fotografia de Lula Barreto, soberba tanto nas avermelhadas sequências mais intimistas, quanto ao traduzir a hipercolorida vida noturna de Armando. Após anos trabalhando com nomes como Fernando Meireles, José Padilha, Laís Bodanzky e Terrence Malick, Rezende estreia em grande estilo em longa metragens explorando o cinema em sua máxima potência. Com uma assinatura própria e um vasto repertório de enquadramentos, o diretor entrega uma película enérgica, um filme recheado de cenas engenhosas e visualmente impactantes.


Entre expansivos takes panorâmicos, expressivos planos fechados e ousados movimentos de câmera, Daniel Rezende não só acredita no poder das suas imagens, como também no magnetismo dos seus comandados, dando ao elenco a liberdade necessária para dar liga a esta apimentada película. Por mais paradoxal que possa parecer, no entanto, Rezende, um mestre na arte da edição\corte, surpreende ao investir também em imersivos planos sequências, um 'mise en scene' trabalhoso, envolvente e que só potencializa as performances do talentoso elenco. À começar pelo próprio Vladmir Brichta, extraordinário na pele de Armando\Bingo. Uma força da natureza em tela, o ator absorve o turbilhão de emoções do seu inconsequente personagem com gana e enorme densidade, indo do insano ao humano com maestria. Como não elogiar, por exemplo, a singela relação entre pai e filho, um arco lúdico valorizado pelo desempenho genuinamente infantil do jovem Cauã Martins. Diante de um tipo tão excêntrico, Leandra Leal se comprova como uma das grandes da sua geração ao encarnar a rígida Lucia. Na pele de uma mulher moderna e religiosa, ela cria uma diretora dura e ao mesmo tempo carismática, uma figura capaz de se seduzir pelo sucesso, mas não pelo homem. Por fim, o impagável Augusto Madeira rouba a cena na pele de uma câmera com uma risada maravilhosa, um personagem único dentro de um filme singular.


Embora peque pela falta de acabamento em alguns poucos momentos, a presença de um não ator numa sequência, em especial, reduz o impacto de um momento que poderia ecoar ainda mais alto, Bingo: O Rei das Manhãs é o melhor produto do nosso cinema desde o aclamado Tropa de Elite. Numa mistura revigorante, desafiadora e totalmente coerente com o cenário proposto, Daniel Rezende encontra na figura de Arlindo Barreto os ingredientes necessários para expor o aspecto mais corrosivo do mundo da fama sob um prisma extravagante, real e indiscutivelmente autoral. Na verdade, ao se libertar das amarras do universo da cinebiografia, o realizador consegue transitar entre os extremos com rara desenvoltura, exaltando a face politicamente incorreta da cultura pop dos anos 80 ao pintar um inusitado retrato sobre um vaidoso ator que abdicou da sua imagem para alcançar o sucesso. Há muito tempo não me sentia tão orgulhoso com uma produção nacional.


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