O subgênero ‘zombie’ costuma ser
um território fértil para a construção de interessantes alegorias sociais.
Obras com múltiplas camadas que, quando bem realizadas, conseguem ir além do
horror pelo horror ao pincelar comentários inteligentes sobre problemas
inerentes aos grandes centros urbanos. Neste aspecto, Os Curados instiga ao
discutir o duro processo de ressocialização sob uma óptica genuinamente “George
Romeriana”. Com uma premissa promissora em mãos, o diretor e roteirista David
Freyne fisga ao colocar os seus zumbis num contexto reconhecível, refletindo
sobre a realidade por trás das pretensas segundas chances num ambiente
preconceituoso, hostil e ignorante. É fácil criar paralelos aqui. No momento em
que deveria se aprofundar nesta engenhosa crítica social, entretanto, o
cineasta se mostra incapaz de manter a trama num cenário cinza\ambíguo, se
rendendo a soluções fáceis na tentativa de construir uma pálida história de
redenção.
Em sua primeira meia hora, Os
Curados é um filme surpreendente. A começar pela forma com que constrói o seu
marcante ‘plot’. Com uma narrativa envolvente, David Freyne fisga os fãs do
gênero ao trabalhar com um conceito inovador. E se a cura para a contaminação
realmente existisse? E se indivíduos sedentos por sangue recuperassem a sua
consciência? Qual seria o efeito desta experiência na identidade dos “curados”? Qual seria o cenário que eles encontrariam para se restabelecer? Com base
nestas e em outras indagações, o realizador é habilidoso ao nos levar para uma
realidade pouco explorada dentro do subgênero. Objetivo ao estabelecer a sua revigorada
mitologia, Freyne é igualmente habilidoso desenvolver os tabus que os
ex-contaminados são obrigados a enfrentar. Sob a óptica do introspectivo Senan
(Sam Keeley), um dos poucos recebidos sem mágoas pela sua família, no caso a
independente cunhada Abbie (Ellen Page), o longa toca indiretamente em
problemas sociais reconhecíveis ao escancarar o quão falacioso pode ser o
discurso do “todos merecem uma segunda chance”. Como disse acima, Freyne é
perspicaz ao usar o universo ‘zombie’ como uma ponte para questões bem mais
realísticas. Troque os zumbis por ex-presidiários e você verá que a lógica não
é tão diferente assim. Ou por imigrantes ilegais. A xenofobia é hoje um grande problema na Europa. Ou então por indivíduos portadores de vírus contagiosos.
Nos anos 1980 e 1990 era basicamente assim que muitos portadores do HIV eram
tratados. Marginalizados. Excluídos. O medo levava a ignorância e
posteriormente ao preconceito. Uma dinâmica distorcida, mas infelizmente atual.
Uma alegoria que só faz mais
sentido quando descobrimos que os curados nunca perderam a consciência. O vírus
pode até ter sido dominado, mas as brutais experiências seguiam bem vivas. E
para ambos os lados desta equação. Por mais que, sob a perspectiva estrangeira,
seja mais simples traçar um paralelo com os problemas citados acima, David
Freyne vai além ao tocar em conflitos inerentes à sociedade irlandesa. Nas
entrelinhas, Os Curados é inteligente ao refletir sobre um país que até bem
pouco tempo era dividido entre a minoria Católica e a maioria Protestante. Entre
os anos 1960 e 1990, a Irlanda conviveu com um pesado conflito civil,
culminando numa escalada de violência, ataques terroristas e muitas mortes. Uma
ferida ainda hoje não cicatrizada para muitos que, indiscutivelmente, serve
como o pano de fundo para a construção do promissor duelo de classes proposto por
Freyne. Sem querer revelar muito, tal qual movimentos como o IRA (o Exército
Republicano Irlandês), os curados se veem obrigado a se organizar e se rebelar
contra a repressão. Enquanto Senan reluta em aceitar os fatos, o seu influente
parceiro de quarentena Conor (Tom Vaughan-Lawlor) não titubeia em reagir. Uma
rixa intrigante que, dentro do até então turbulento cenário, poderia (ou
deveria) ganhar nuances cada vez mais complexas. Afinal ambos tinham algo a
perder. O problema é que, da metade do segundo ato em diante, o realizador
decide se render cada vez mais ao maniqueísmo barato. O que fica bem claro, em
especial, no problemático arco de Conor. Inicialmente um dos personagens mais
promissores do longa, o reacionário logo pende para um lugar comum um tanto
quanto frustrante. Como se, de certa forma, Feryne tivesse escolhido um lado
neste confronto e optasse por vilanizar o outro. Toda a lógica animalesca defendida pelo script, por exemplo, surge como uma forçada de barra sem
tamanho. A impressão que fica é que o diretor se viu obrigado a encontrar uma
motivação plausível para tamanha mudança de rumo. Só não precisava ser tão
esdrúxula.
Um problema que não só esvazia o peso da criativa alegoria social proposta por Os Curados, mas principalmente o impacto do filme como um todo. Isso porque, no momento em que decide focar no aspecto micro, David Freyne se sustenta em soluções previsíveis e sentimentalistas. Por mais que a tênue relação entre Senan e Abbie seja até bem trabalhada, incrementada pelas intensas performances de Keeley e Page, o argumento desperdiça uma série de oportunidades ao reduzir tudo ao clichê da redenção. O medo\desconfiança se esvai rápido demais. O cineasta opta por trocar a tensão em torno desta repentina “volta para casa” por alguns isolados ‘jump scares’. Uma opção frustrante que poderia ser atenuada caso Freyer fizesse jus ao horror proposto no último ato. O que não acontece. Embora as ofegantes criaturas causem por si só uma angústia natural e que o realizador consiga imprimir em cena o clima de voracidade exigido pelo subgênero, Os Curados opta por ser “limpinho” demais. A insinuação da violência ajuda a enfraquecer os traumas enfrentados pelos personagens, a dor de cada um deles. A ação, na verdade, está longe de ser criativa e por muitas vezes é errática, tal qual os seus agressivos zumbis. Em suma, com uma premissa promissora, uma primeira metade instigante e um desenvolvimento um tanto quanto burocrático, Os Curados ainda assim funciona, principalmente quando decide usar as suas criaturas como um instrumento para uma reflexão de cunho social inteligente e reconhecível.
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