True Lies é um dos filmes mais divertidos que Hollywood produziu nas últimas décadas. Com uma generosa carta branca após a sequência de sucessos O Exterminador do Futuro (1984), Aliens: O Resgate (1986), O Segredo do Abismo (1989) e O Exterminador do Futuro 2 (1991), James Cameron resolveu tirar do papel algo até então sem precedentes dentro do cinemão norte-americano. Um thriller de ação maiúsculo, absurdo, irônico e caro. Muito caro. O primeiro filme hollywoodiano a custar mais de US$ 100 milhões, True Lies de certa forma ajudou a redimensionar o universo dos filmes pipocas. Novamente ao lado de Arnold Schwarzenegger, Cameron transitou entre a Ação, a Comédia e o Suspense com rara desenvoltura, criando o tipo de produção em que praticamente tudo funcionou brilhantemente. Um filme que permanece vivo no imaginário dos fãs graças a uma combinação explosiva de adrenalina, humor e charme.
Disposto a atualizar o formato “exército
de um homem só”, James Cameron resolveu brincar com a visão de masculinidade
idealizada pelo gênero. Uma imagem que, verdade seja dita, já havia sido
renovada anos antes com o herói humano John McLane (Bruce Willis) em Duro de
Matar (1988). Talvez pela primeira vez dentro do segmento víamos um
protagonista falível, decadente, largado pela esposa, vulnerável fisicamente.
Cameron, porém, queria ir além. Queria invadir a intimidade deste tipo de
personagem sob uma perspectiva mais cômica. Mais irreverente. A ideia era bem
simples. Como seria a vida matrimonial\familiar de um atarefado espião nos seus
dias de “folga”? Ele seria um bom pai? Um marido presente? Um homem capaz de
manter uma relação aquecida? Uma perspectiva indiscutivelmente inédita que só
foi reforçada com a escalação de Arnold Schwarzenegger para o papel de Harry Tasker.
Após se tornar um dos maiores nomes do cinema de ação brucutu, o astro de
Conan, Comando para Matar e Terminator resolveu se “desarmar” perante o
público. Por trás dos músculos e da imponência existia um ator engraçado,
extremamente carismático, capaz de não se levar a sério quando preciso. A
escolha perfeita para protagonizar True Lies.
Também responsável pelo roteiro,
James Cameron decidiu testar os limites do cinema de ação da época ao injetar
na trama elementos típicos das comédias familiares. Reconhecíveis aos olhos de
qualquer espectador. O homenzarrão que, à noite, era um agente secreto ‘bad-ass’,
capaz de dançar tango, chutar o traseiro dos vilões e salvar o dia, de dia era
um pai\marido comum, frustrante aos olhos da sua cabisbaixa esposa Helen (Jamie
Lee Curtis). Para esconder a sua verdadeira função, Harry criou uma fachada “decepcionante”,
um casamento morno, uma rotina desinteressante. O que levou a sua esposa a
cogitar até mesmo a infidelidade. Sem medo de decepcionar àqueles que esperavam
“tiro, pancada e bombas”, Cameron subverteu as nossas expectativas ao se
concentrar na crise matrimonial de um homem preste a levar um chifre da sua
querida parceira. Sim, estamos diante de um herói corno. Ou quase isso. E muito
por culpa dele. Incapaz de enxergar a tristeza de Helen, a sua baixa-estima e a
decepção dela com o rumo da relação, Harry decide correr atrás do tempo perdido
ao descobrir que um garçom se passando por agente secreto (o saudoso Bill
Paxton) está próximo de fisga-la. Após finalmente perceber o tamanho do
estrago, o espião decide dar sequência ao jogo de “faz de conta” e envolve-la
numa pegadinha envolvendo uma perigosa (e fictícia) transação. O que eles não
esperavam, porém, era que a brincadeira fosse ganhar ares bem mais sérios
quando um grupo de terroristas tira proveito da desatenção deles para colocar
em prática um ataque aos Estados Unidos.
Com base nesta inusitada
premissa, adaptada do longa francês La Totale! (1991), James Cameron conseguiu extrair
o máximo da comédia e da ação numa mistura poucas vezes replicada desde então. Se
Arnold Schwarzenegger foi a escolha perfeita para viver Harry, Jamie Lee Curtis
arrancou sucessivas risadas ao tirar do papel uma mulher reprimida obrigada a
liberar tudo aquilo que a amargurava. De uma hora para a outra a esposa
prendada se transforma numa aspirante à espiã. Um arco, guardada as devidas
proporções, outra vez extremamente reconhecível. True Lies tentou dialogar não
só com os homens, mas também com as mulheres. Quantas esposas, assim como
Helen, sacrificam os seus próprios anseios em prol do bem-estar da sua família? Do seu casamento? Numa das grandes performances da sua carreira, Curtis
absorveu com rara energia o estado emocional da sua personagem, nos
presenteando com sequências impagáveis. A disfuncionalidade aqui é a alma do
negócio. Sem querer revelar muito, a sequência em que finalmente enxergamos a
fera adormecida em Helen é brilhante. Uma cena empoderadora, sensual e
engraçadíssima. Mesmo sob uma perspectiva obviamente masculina, a esposa nunca
é diminuída, nunca é estereotipada. Muito em função da perspicácia de Jamie Lee
Curtis em tornar crível a jornada de descobertas e autoafirmação da sua Helen.
Uma esposa cansada de viver à sombra do marido. Um trabalho merecidamente
premiado com o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Comédia e Musical.
Nem só de humor, porém, vive True
Lies. Com o padrão James Cameron de qualidade, o longa nos brindou com algumas
das sequências mais insanas do gênero nos anos 1990. Disposto a fazer um grande
uso do robusto orçamento, volto a frisar, sem precedentes dentro da indústria
do cinema até então, o realizador conseguiu ampliar gradativamente o escopo da trama
ao colocar Harry e Helen na mira de um perigoso grupo de terroristas. Mesmo sem
nunca abdicar do viés cômico, Cameron ligou um (hoje infelizmente reconhecível)
sinal de alerta ao trazer a ameaça para o seu quintal. A ação desta vez não
estava em um prédio, em uma ilha, ou em um pequeno país asiático. O cenário
urbano norte-americano conferiu um peso maior a obra. E deu ao cineasta a
possibilidade de criar momentos singulares. O que falar, por exemplo, da
fantástica perseguição a cavalo em Miami. Uma cena empolgante e vertiginosa que
Arnold Schwarzenegger teve que abrir mão de fazer. No ápice da sequência,
quando ela chega ao topo de um prédio, a equipe de produção teve sérios
problemas com o animal. Segundo consta, durante a corrida, o equino foi
atingido pelo microfone boom e ficou “louco, girando e saltando”. Isso perto de
uma queda de quase 30 metros. Schwarzenegger, óbvio, largou o cavalo o mais
rápido que pôde e decidiu não rodar mais a cena sem dublê. Um senso de perigo
que não impediu Jamie Lee Curtis de realizar a sequência mais perigosa da
produção. Num momento chave da obra, uma perseguição numa ponte prestes a cair,
a atriz recusou a equipe de ‘stunts’ ao aceitar ser “guinchada” por um helicóptero
enquanto o carro despencava. Acostumado a exigir demais do seu elenco, vide as
péssimas experiências relatadas por membros do ‘casting’ de O Segredo do Abismo
e Titanic, até o próprio James Cameron foi contra a ideia, mas acatou o pedido
ao perceber a convicção de Curtis. O resultado fala por si só. Graças as
marcantes performances, aliás, o realizador conseguiu tirar do papel cenas de
ação ao mesmo tempo tensas e engraçadas, elevando o nível do entretenimento a
um patamar poucas vezes visto dentro do gênero. Um filme capaz de agradar a uma
camada diversificada do público e não só a um nicho.
O que, obviamente, se reverteu
nas bilheterias. Recebido com entusiasmo pelo público e pela crítica, True Lies
se tornou a terceira maior bilheteria dos EUA em 1994 com US$ 146 milhões.
Embora classificado como Rated (o popular para maiores), o longa só faturou menos
que os estrondosos Forrest Gump (US$ 329 mi) e O Rei Leão (US$ 312 mi). Diante
do pesado orçamento de US$ 100 mi, no entanto, o retorno não foi considerado espetacular,
o que acabou por frear o investimento no gênero nos anos seguintes. Até hoje,
na verdade, é bem difícil ver um filme de ação original com um custo de
produção tão alto. Ainda assim, os planos para uma sequência nunca foram
descartados. O longa, de fato, fez também um grande sucesso no mercado ‘home-video’.
Na segunda metade da década de 1990, após se dedicar por um grande tempo ao
épico Titanic (1997), Cameron chegou a idealizar o lançamento da continuação para
o início dos anos 2000. Um projeto que encontrou o seu fim com atentado ao
World Trade Center em 2001. O terrorismo, agora, era uma ameaça real. True Lies,
de alguma forma, antecipou sob uma perspectiva irônica um cenário que anos mais
tarde se tornaria reconhecível. Não existia mais clima para um novo filme. Durante
a produção do longa, no entanto, outro fato lamentável aconteceu. E foi mantido
em segredo por mais de duas décadas. Responsável por viver a jovem filha de
Helen e Harry, Eliza Dushku usou o seu Facebook para revelar em 2018 que foi
vítima de abuso sexual. O autor, segundo o relato dela, foi o coordenador da
equipe de dublês Joel Kramer. Com apenas doze anos, a atriz não conseguiu
reagir a situação e se manteve focada na produção mesmo após o traumático
episódio. Na época, inclusive, Dushku chegou a temer pela sua vida, já que ele
era o responsável pela sua segurança no set e pela operação dos dispositivos
usados pelo elenco nas cenas mais perigosas. Ao tomarem conhecimento da
denúncia, James Cameron, Arnold Schwarzenegger e Tom Arnold manifestaram o seu
repúdio, elogiaram a coragem da atriz e afirmaram que teriam feito algo para
impedir se soubessem.
Uma chaga que de maneira alguma
deve apagar o êxito de True Lies. Um raro filme internacional que não ganhou um
título aportuguesado por aqui. Com algo de novo a trazer para o gênero, James
Cameron nos brindou com uma obra escapista e ao mesmo tempo ambiciosa. Um filme
narrativamente peculiar e visualmente espetacular que imprimiu em tela cada um
dos centavos dos cem milhões de dólares do orçamento. Um dos meus filmes
favoritos da década de 1990 e que parece não ter envelhecido um ano sequer
desde então.
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