Muito mais do que um relato realista sobre a face mais árdua e desgastante da maternidade, Tully encanta ao
dar uma honesta voz a mulher por trás deste rótulo. Sob a perspicaz batuta de
Jason Reitman, que repete a parceria do ‘cult’ Jovens Adultos com a inventiva
roteirista Diablo Cody (Juno) e a eclética atriz Charlize Theron (Mad Max:
Estrada da Fúria), o longa causa um indescritível fascínio ao invadir uma
realidade tão reconhecível aos olhos do público com inesperada originalidade,
refletindo sobre as amarguras de uma progenitora às avessas com as suas
múltiplas tarefas diárias numa crônica atual, envolvente e genuinamente
feminina. Um retrato dinâmico e revelador sobre a mulher escondida no “avental”
materno, aquela que já foi jovem um dia, independente, que já viveu inúmeras
experiências, mas que se viu obrigada a adormecer o seu velho “eu” em busca de
responsabilidade, de estabilidade e do bem maior da sua família. Alguns dos
mais enraizados clichês da vida adulta.
Sem medo de errar, Tully é talvez um dos mais preciosos retratos sobre a nova mulher de meia idade. Com base na inquietude feminina contida no texto da talentosa Diablo Cody, de volta a sua melhor forma após uma curta entressafra, Jason Reitman é incisivo ao tecer um brilhante comentário sobre o impacto das renovadas (e cada vez mais disfuncionais) estruturas familiares modernas na rotina de uma mãe de quarenta anos obrigada a encarar as sequelas de uma gravidez inesperada. O alvo em questão é a saturada Marlo (Theron), uma destas muitas e corajosas mulheres multitarefas que, antes mesmo do nascimento da sua filha, já estava sofrendo com o que estava por vir. Mãe de outros dos filhos, o complicado Jonah (Asher Miles Fallica) e a inteligente Sarah (Lia Frankland), ela já tinha largado os pontos, se descuidado por completo da sua vida íntima na tentativa de dar o máximo de atenção aos seus herdeiros. E isso enquanto o seu relapso marido, o boa praça desligado Drew (Ron Livingston), se via acomodado na função de provedor durante esta fase. Um cenário que muda quando ela conhece Tully (Mackenzie Davis), uma babá da noite contrata pelo irmão ricaço de Marlo (Mark Duplass) para ajudar nos primeiros meses pós-parto. O que era para ser uma relação estritamente profissional, entretanto, logo ganha contornos mais pessoais no momento em que as duas passam a trocar as suas experiências de vida, iniciando assim uma amizade capaz de reacender em Marlo a chama adormecida pela maternidade.
Por mais que, numa leitura superficial, a sinopse de Tully soe até um
pouco genérica, o argumento assinado por Diablo Cody testa as nossas
expectativas ao pintar um retrato multifacetado sobre uma mulher às turras com
a sua própria identidade. Num primeiro momento, Jason Reitman é enfático ao
estabelecer a cansativa vida da mãe Marlo, uma mulher reprimida, nada vaidosa,
que parecia não ter um pingo de vontade de socializar, de se vestir melhor, de deixar
o (des)conforto do seu lar. Toda a sua energia nos últimos dias de gravidez era
devotada aos seus filhos, em especial o “peculiar” Jonah, um elo estreito e
aparentemente estável desequilibrado pelo iminente nascimento de uma terceira
criança. Se você está pensando em colocar um herdeiro no mundo, em entender os
obstáculos impostos por uma disfuncional rotina familiar, Reitman faz um
inquestionável favor ao mostrar a realidade como ela é. Sem filtros, fotinhos
bonitas no Instagram e qualquer tipo de glamour. Impulsionado pela fantástica
montagem, o realizador mostra os primeiros dias de um recém-nascido na vida de
uma mãe num ‘looping’ temporal enérgico e absurdamente criativo. Uma abordagem
daquelas que cansam só de ver. Somado a isso, graças a inacreditável
metamorfose da talentosa Charlize Theron, que surge em cena muito acima do peso
e visualmente acabada, Reitman se esforça na tentativa de imprimir nas feições
da protagonista o misto de estresse e saturação causado por esta asfixiante
rotina, nos brindando com pelo menos duas sequências extremamente enervantes em
que podemos quase que compartilhar do sentimento de choque de Marlo. A
intenção, entretanto, não é assustar. Não é tratar a maternidade como um erro.
O foco, aqui, está nas perigosas concessões feitas pela personagem dentro de
uma relação nitidamente desigual.
O que fica bem claro, em especial, com a entrada da revigorante Tully em
cena. Com espírito livre, uma visão de mundo aberta e uma forte influência
sobre Marlo, a jovem babá surge como um espelho involuntário do que a
protagonista já havia sido. Aos poucos, a tensão dá lugar a reflexão, a troca
de experiências, a uma densa jornada de redescobertas. Embora o ritmo do longa
nunca caia, muito em função do intimismo sucinto proposto por Jason Reitman e
do insinuante texto de Diablo Cody, é legal ver como o argumento explora a
questão do amadurecimento dentro de um contexto bem mais adulto. Mais do que
simplesmente apontar\julgar os erros de Marlo, Tully traz juventude para a
rotina da protagonista, tenta resgatar a voz do “eu” mulher dela, lembrar que
nem só de regras e rotina vive uma família. Por mais que a figura paterna
vivida pela carismático Ron Livingston se revele imatura e um tanto quanto cega
para os anseios femininos de Marlo, o roteiro é inteligente ao abraçar a
disfuncionalidade, ao defender que problemas familiares acontecem e que cabem
aos dois resolvê-los. Sem grandes complicações ou dramalhões desnecessários. Ao
deixar de lado este requentado subplot, Reitman encontra tempo para se
aprofundar nas nuances sentimentais em torno do repentino vínculo entre babá e
patroa, em dar um revelador espaço a Marlo sexualizada, a Marlo inconsequente,
a Marlo capaz de tirar o “avental” materno por algumas horas e se divertir. Num
processo gradativo e convincente, o diretor é astuto ao reconstruir a sua
personagem perante o público, escancarando as adormecidas múltiplas facetas dela
sob uma perspectiva pessoal, honesta e totalmente inesperada. Sem querer
revelar muito, quando o argumento parecia desenhar uma solução (por si só) muito
bem trabalhada nas entrelinhas, Cody apronta das suas ao entregar um clímax
genuinamente impactante, um desfecho condizente com o tema proposto e
indiscutivelmente surpreendente.
Por fim, embora a presença de Tully cause um efeito quase “Mary Poppins”
quando o assunto é o restabelecimento da ordem, um excesso perdoado diante do
desfecho do longa, Jason Reitman contorna astutamente os obstáculos ao estender
o seu tapete vermelho para a soberba performance de Charlize Theron. E ela não
deixa a energia desta inventiva ‘dramédia’ cair por um segundo sequer. Acima do
peso, desleixada e sem um pingo de vaidade, a atriz sul-africana cria uma
persona real, crível, daquelas que a gente poderia cruzar num elevador desses
da vida. Com total domínio sobre essa complexa personagem, ela interioriza os
conflitos da sua Marlo com intensidade única, entregando uma mulher ora caótica
e sem forças, ora elétrica e radiante. Uma mãe de quarenta e poucos anos que,
numa retomada de curso, se vê convidada por uma “estranha” a dialogar consigo
mesma, a reagir, a lutar contra a rotina. Uma atuação indiscutivelmente
valorizada pela sua parceira de cena, a igualmente expressiva Mackenzie Davis.
Um dos subaproveitados novos rostos da nova geração, a magnética atriz
canadense captura a aura desconstruída da sua Tully com um entusiasmo
contagiante, nos permitindo compreender o seu efeito na realidade da
protagonista.
No embalo da simpática trilha sonora de Rob Simonsen, que só ajuda a reforçar a aura ‘indie’ da película, Tully é graciosamente enfático ao mostrar as sequelas da maternidade na identidade de uma figura cansada demais para enxergar que estava "presa" única e exclusivamente a um arcaico arquétipo materno. De volta a um tema recorrente nas suas respectivas
filmografias, a dobradinha Cody\Reitman é astuta ao refletir sobre o lapso de
imaturidade em torno dos novos adultos, avançando as discussões propostas por
Juno (2007) e Jovens Adultos (2011) ao finalmente relaxar e entender que a graça
pode estar na disfuncionalidade, no completo rompimento com o rótulo da
perfeição paterna\materna. Uma obra que, embora pareça dialogar melhor com as
mulheres, se revela imprescindível também para os homens, principalmente por
lembrar que as responsabilidades parentais precisam ser divididas igualmente.
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