quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Tully

As múltiplas facetas de uma mãe moderna

Muito mais do que um relato realista sobre a face mais árdua e desgastante da maternidade, Tully encanta ao dar uma honesta voz a mulher por trás deste rótulo. Sob a perspicaz batuta de Jason Reitman, que repete a parceria do ‘cult’ Jovens Adultos com a inventiva roteirista Diablo Cody (Juno) e a eclética atriz Charlize Theron (Mad Max: Estrada da Fúria), o longa causa um indescritível fascínio ao invadir uma realidade tão reconhecível aos olhos do público com inesperada originalidade, refletindo sobre as amarguras de uma progenitora às avessas com as suas múltiplas tarefas diárias numa crônica atual, envolvente e genuinamente feminina. Um retrato dinâmico e revelador sobre a mulher escondida no “avental” materno, aquela que já foi jovem um dia, independente, que já viveu inúmeras experiências, mas que se viu obrigada a adormecer o seu velho “eu” em busca de responsabilidade, de estabilidade e do bem maior da sua família. Alguns dos mais enraizados clichês da vida adulta.

Sem medo de errar, Tully é talvez um dos mais preciosos retratos sobre a nova mulher de meia idade. Com base na inquietude feminina contida no texto da talentosa Diablo Cody, de volta a sua melhor forma após uma curta entressafra, Jason Reitman é incisivo ao tecer um brilhante comentário sobre o impacto das renovadas (e cada vez mais disfuncionais) estruturas familiares modernas na rotina de uma mãe de quarenta anos obrigada a encarar as sequelas de uma gravidez inesperada. O alvo em questão é a saturada Marlo (Theron), uma destas muitas e corajosas mulheres multitarefas que, antes mesmo do nascimento da sua filha, já estava sofrendo com o que estava por vir. Mãe de outros dos filhos, o complicado Jonah (Asher Miles Fallica) e a inteligente Sarah (Lia Frankland), ela já tinha largado os pontos, se descuidado por completo da sua vida íntima na tentativa de dar o máximo de atenção aos seus herdeiros. E isso enquanto o seu relapso marido, o boa praça desligado Drew (Ron Livingston), se via acomodado na função de provedor durante esta fase. Um cenário que muda quando ela conhece Tully (Mackenzie Davis), uma babá da noite contrata pelo irmão ricaço de Marlo (Mark Duplass) para ajudar nos primeiros meses pós-parto. O que era para ser uma relação estritamente profissional, entretanto, logo ganha contornos mais pessoais no momento em que as duas passam a trocar as suas experiências de vida, iniciando assim uma amizade capaz de reacender em Marlo a chama adormecida pela maternidade.


Por mais que, numa leitura superficial, a sinopse de Tully soe até um pouco genérica, o argumento assinado por Diablo Cody testa as nossas expectativas ao pintar um retrato multifacetado sobre uma mulher às turras com a sua própria identidade. Num primeiro momento, Jason Reitman é enfático ao estabelecer a cansativa vida da mãe Marlo, uma mulher reprimida, nada vaidosa, que parecia não ter um pingo de vontade de socializar, de se vestir melhor, de deixar o (des)conforto do seu lar. Toda a sua energia nos últimos dias de gravidez era devotada aos seus filhos, em especial o “peculiar” Jonah, um elo estreito e aparentemente estável desequilibrado pelo iminente nascimento de uma terceira criança. Se você está pensando em colocar um herdeiro no mundo, em entender os obstáculos impostos por uma disfuncional rotina familiar, Reitman faz um inquestionável favor ao mostrar a realidade como ela é. Sem filtros, fotinhos bonitas no Instagram e qualquer tipo de glamour. Impulsionado pela fantástica montagem, o realizador mostra os primeiros dias de um recém-nascido na vida de uma mãe num ‘looping’ temporal enérgico e absurdamente criativo. Uma abordagem daquelas que cansam só de ver. Somado a isso, graças a inacreditável metamorfose da talentosa Charlize Theron, que surge em cena muito acima do peso e visualmente acabada, Reitman se esforça na tentativa de imprimir nas feições da protagonista o misto de estresse e saturação causado por esta asfixiante rotina, nos brindando com pelo menos duas sequências extremamente enervantes em que podemos quase que compartilhar do sentimento de choque de Marlo. A intenção, entretanto, não é assustar. Não é tratar a maternidade como um erro. O foco, aqui, está nas perigosas concessões feitas pela personagem dentro de uma relação nitidamente desigual.


O que fica bem claro, em especial, com a entrada da revigorante Tully em cena. Com espírito livre, uma visão de mundo aberta e uma forte influência sobre Marlo, a jovem babá surge como um espelho involuntário do que a protagonista já havia sido. Aos poucos, a tensão dá lugar a reflexão, a troca de experiências, a uma densa jornada de redescobertas. Embora o ritmo do longa nunca caia, muito em função do intimismo sucinto proposto por Jason Reitman e do insinuante texto de Diablo Cody, é legal ver como o argumento explora a questão do amadurecimento dentro de um contexto bem mais adulto. Mais do que simplesmente apontar\julgar os erros de Marlo, Tully traz juventude para a rotina da protagonista, tenta resgatar a voz do “eu” mulher dela, lembrar que nem só de regras e rotina vive uma família. Por mais que a figura paterna vivida pela carismático Ron Livingston se revele imatura e um tanto quanto cega para os anseios femininos de Marlo, o roteiro é inteligente ao abraçar a disfuncionalidade, ao defender que problemas familiares acontecem e que cabem aos dois resolvê-los. Sem grandes complicações ou dramalhões desnecessários. Ao deixar de lado este requentado subplot, Reitman encontra tempo para se aprofundar nas nuances sentimentais em torno do repentino vínculo entre babá e patroa, em dar um revelador espaço a Marlo sexualizada, a Marlo inconsequente, a Marlo capaz de tirar o “avental” materno por algumas horas e se divertir. Num processo gradativo e convincente, o diretor é astuto ao reconstruir a sua personagem perante o público, escancarando as adormecidas múltiplas facetas dela sob uma perspectiva pessoal, honesta e totalmente inesperada. Sem querer revelar muito, quando o argumento parecia desenhar uma solução (por si só) muito bem trabalhada nas entrelinhas, Cody apronta das suas ao entregar um clímax genuinamente impactante, um desfecho condizente com o tema proposto e indiscutivelmente surpreendente.


Por fim, embora a presença de Tully cause um efeito quase “Mary Poppins” quando o assunto é o restabelecimento da ordem, um excesso perdoado diante do desfecho do longa, Jason Reitman contorna astutamente os obstáculos ao estender o seu tapete vermelho para a soberba performance de Charlize Theron. E ela não deixa a energia desta inventiva ‘dramédia’ cair por um segundo sequer. Acima do peso, desleixada e sem um pingo de vaidade, a atriz sul-africana cria uma persona real, crível, daquelas que a gente poderia cruzar num elevador desses da vida. Com total domínio sobre essa complexa personagem, ela interioriza os conflitos da sua Marlo com intensidade única, entregando uma mulher ora caótica e sem forças, ora elétrica e radiante. Uma mãe de quarenta e poucos anos que, numa retomada de curso, se vê convidada por uma “estranha” a dialogar consigo mesma, a reagir, a lutar contra a rotina. Uma atuação indiscutivelmente valorizada pela sua parceira de cena, a igualmente expressiva Mackenzie Davis. Um dos subaproveitados novos rostos da nova geração, a magnética atriz canadense captura a aura desconstruída da sua Tully com um entusiasmo contagiante, nos permitindo compreender o seu efeito na realidade da protagonista.


No embalo da simpática trilha sonora de Rob Simonsen, que só ajuda a reforçar a aura ‘indie’ da película, Tully é graciosamente enfático ao mostrar as sequelas da maternidade na identidade de uma figura cansada demais para enxergar que estava "presa" única e exclusivamente a um arcaico arquétipo materno. De volta a um tema recorrente nas suas respectivas filmografias, a dobradinha Cody\Reitman é astuta ao refletir sobre o lapso de imaturidade em torno dos novos adultos, avançando as discussões propostas por Juno (2007) e Jovens Adultos (2011) ao finalmente relaxar e entender que a graça pode estar na disfuncionalidade, no completo rompimento com o rótulo da perfeição paterna\materna. Uma obra que, embora pareça dialogar melhor com as mulheres, se revela imprescindível também para os homens, principalmente por lembrar que as responsabilidades parentais precisam ser divididas igualmente.


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