sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Um Lugar Silencioso

Shhhh!!!!!!

Poucos gêneros se reinventaram tanto e tão bem nos últimos anos quanto o Suspense. Após flertar com a saturação e com ideias repetidas no final da última década, vide o desgastado uso do ‘found foutage’, o segmento ganhou uma reoxigenada nas mãos de diretores como James Wan, Guillermo Del Toro, J.J Abrams e M. Night Shyamalan, das visionárias produtoras A24 e Blumhouse, além óbvio da gigante Warner Bros. De 2010 para cá o que temos visto é o resgate de uma fórmula que havia dado muito certo no cinema de Horror entre os anos 1970 e 1980. Uma aposta em filmes pequenos, com premissas originais, um baixo investimento, efeitos práticos e tramas (geralmente) com um forte subtexto. O resultado é uma “safra” de grandes filmes ao redor do mundo, encabeçada por títulos do quilate de Corra! (2017), Ao Cair da Noite (2017), Fragmentado (2016), Rua Cloverfield, 10 (2016), O Homem nas Trevas (2016), Sob as Sombra (2016), A Visita (2015), O Babadook (2014), Invocação do Mal (2013) dentre outros. Nenhum dos filmes acima, entretanto, nos brindou com uma experiência cinematográfica tão singular quanto o extraordinário Um Lugar Silencioso. Magnífico ao se apropriar da liberdade artística possibilitada pelo gênero, o ator e diretor John Krasinski mostra espantosa maturidade ao entregar uma obra única, um filme capaz de explorar o dispositivo cinema em sua máxima potência. Com personagens cativantes, um argumento recheado de tensão e uma linguagem narrativa extremamente ousada, o realizador norte-americano fascina ao valorizar o senso de imersão, fazendo um extraordinário uso da vistosa fotografia e do primoroso design de som na construção de uma película enérgica, enervante e absolutamente sensorial. E isso sem esquecer de tecer um inteligente comentário envolvendo a renovação da velha estrutura familiar.



Embora parta de uma premissa indiscutivelmente simples, Um Lugar Silencioso supera todas as expectativas ao dar uma roupagem original a uma trama nem tão inédita assim. Por mais que o longa se concentre basicamente no fator sobrevivência e no elemento humano diante do caótico cenário proposto, o argumento assinado pelo trio Bryan Woods, Scott Beck e pelo próprio John Krasinski é astuto ao revigorar a narrativa a partir das particularidades da sua história. Sem tempo a perder com o didatismo barato, logo nas primeiras cenas percebemos que estamos diante de um mundo devastado por criaturas atraídas pelo som. Os sobreviventes tiveram que mudar o seu modo de comunicação, substituindo a linguagem verbal pela visual. Qualquer pequeno ruído poderia ser fatal. Diante deste contexto, Krasinski rompe com a cada vez mais barulhenta e explicativa estrutura dos blockbusters atuais ao investir numa obra silenciosa e introspectiva. Um filme em sua maioria mudo, com pouquíssimos diálogos, pontual trilha sonora e uma construção de mundo praticamente contemplativa. Uma abordagem aparentemente pouco convidativa para o público atual, certo? Errado! Pelo menos para aqueles que ainda “acreditam” na experiência cinematográfica. Com um impressionante pulso narrativo, Krasinski enche a tela de tensão ao narrar as desventuras da família Abbott, encabeçados pelo intenso Lee (John Krasinski) e pela resiliente Evelyn (Emily Blunt). Ainda convivendo com um doloroso trauma familiar, o casal, ao lado dos seus pequenos filhos, o inseguro Marcus (Noah Jupe) e destemida deficiente auditiva Regan (Millicent Simmonds), se veem obrigados a se preparar para o pior quando se aproxima a hora da matriarca dá à luz a um novo (e ruidoso) filho.

 
A partir deste episódico ‘plot’, Um Lugar Silencioso encontra as brechas necessárias para solidificar o elo entre os personagens e estabelecer os seus respectivos dramas diante de um algoz tão opressivo. Ao longo das hipnóticas 1 h e 30 de projeção, John Krasinski é cuidadoso ao criar a conexão entre público e personagens, indo além do puro fator humano ao realçar as suas sólidas camadas. O que fica bem claro logo na primorosa sequência de abertura, quando, em pouco menos de cinco minutos, o realizador introduz não só a particular dinâmica familiar dos Abbott, como também a voracidade daqueles que o cercam. Por mais que a ação e o suspense guiem as rédeas da trama nos dois terços finais, sempre que possível Krasinski é delicado ao dar uma silenciosa voz aos protagonistas. Ao mostrar a preocupação da zelosa Evelyn para com a segurança dos seus despreparados filhos. O medo do inocente Marcus diante da tentativa do sereno Lee em torna-lo o segundo em comando. E principalmente o desconforto da corajosa Regan diante do “desdém” paterno. É da tocante relação entre pai e filha, aliás, que Krasinski sabiamente potencializa o elemento dramático da película. Indo além da questão da deficiência em si, que, felizmente, de maneira alguma fragiliza a protagonista, o argumento envolve ao explorar a falha de comunicação entre os dois personagens, refletindo tanto sobre os traumas da dupla, quanto sobre o distanciamento dentro do núcleo familiar. Através deste arco, o realizador é sutil ao se insurgir contra o velho (e aqui involuntário) olhar paternalista, rompendo gradativamente com os arquétipos previamente estabelecidos ao exaltar a tenacidade feminina e o viés igualitário sugerido pela trama. Um predicado, aliás, valorizado pelas marcantes atuações, em especial de Emily Blunt e da promissora Millicent Simmonds. Reconhecida por interpretar mulheres fortes, a primeira é categórica ao traduzir o misto de medo e ternura da sua Evelyn. Responsável pelas sequências mais tensas da película, Blunt esbanja expressividade ao interiorizar a dor, a raiva, a angústia de uma mãe prestes a dar luz diante do perigo iminente, nos presenteando com pelo menos três sufocantes sequências e uma performance memorável. Já a novata Millicent Simmonds, surda desde os seus primeiros meses de vida, surpreende ao entregar a personagem mais complexa da película. Uma adolescente com um ar rebelde que, além de enfrentar remorsos passados, se vê obrigada a convencer o seu pai que estava preparada para ajudá-lo. Por mais que a sua deficiência seja sim explorada pelo roteiro, é legal ver como Krasinski a trata como uma jovem comum, com anseios bem típicos da sua idade, a transformando num dos grandes diferenciais da sua obra.


Apesar dos inegáveis méritos narrativos, entretanto, Um Lugar Silencioso alcança um patamar único dentro do gênero graças ao seu raro aspecto sensorial. Numa experiência audaciosa, John Krasinski entrega uma obra que não só exige a completa atenção do espectador, mas também a percepção, a imersão num mundo brilhantemente criado em menos de 90 minutos de película. Assim como as campanhas de marketing prometiam, o primeiro grande trunfo da película está na maneira com que o realizador explora os minuciosos efeitos sonoros. Diante do silêncio proposto, qualquer simples ruído salta “aos ouvidos”. Consciente disso, Krasinski é particularmente cuidadoso ao realçar os sons banais, ao valorizar através deles a sensação de perigo iminente, alimentando o clima de tensão no embalo do refinado design de som. Desde Gravidade (2013) não me deparava com uma obra tão preocupada com a ambientação sonora, com a capacidade de tornar o som (ou a ausência dele) parte integrante da ação. Um predicado que, porém, perderia parte da sua força se o aspecto visual não acompanhasse. E isso está longe de acontecer aqui. Apesar da fotografia em luminosos tons pasteis sugerir um clima bucólico de paz, Krasinski, quando necessário, injeta adrenalina na trama ao extrair as cores quentes dos objetos cênicos. Fazendo um excelente uso do habitável\explorável cenário, vide a maneira com que a família usa as luzes como uma ferramenta de alerta, o realizador é astuto ao potencializar o clima de ameaça, pintando a tela de vermelho com elegância e engenhosidade num virtuoso ‘mise en scene’. Além disso, por mais que o visual digitalizado das criaturas soe um tanto quanto artificial em algumas cenas, evidenciando o peso do baixo orçamento, Krasinski mostra sagacidade ao valorizar a furtividade das criaturas, ao trata-las como uma ameaça sempre à espreita, buscando referência nos clássicos Alien: O Oitavo Passageiro e Jurassic Park ao extrair o horror da expressão de pavor dos seus comandados. Daquilo que não é visto pelo público. O resultado é uma experiência de tirar o fôlego.


Uma daquelas produções cada vez mais raras em Hollywood, Um Lugar Silencioso é cinema em sua mais pura essência. Embora entregue uma performance comovente com um pai disposto a tudo para manter a sua família unida num cenário pós-apocalíptico, John Krasinski alcança um patamar realmente inédito na sua carreira atrás das câmeras, homenageando os mestres do suspense numa obra capaz de se antecipar os fatos. O desconforto, aqui, é um sentimento constante, minuciosamente trabalhado, a antítese dos tão populares ‘jump scares’. Ao nos colocar no olho do furacão, o realizador joga limpo com o público ao permitir que participemos da obra, que pressintamos o perigo, que experimentemos a vulnerabilidade dos personagens, um nível de interação singular que só uma obra genuinamente sensorial poderia oferecer.

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