Que grata surpresa eu tive ao
assistir o excelente Melanie: A Última Esperança (The Girl With All The Gifts,
no original), uma daquelas produções subestimadas que, diante da concorrência
imposta pelo mercado blockbuster, sequer foi lançada nos cinemas brasileiros. Um
filme de zumbi original, com um roteiro instigante, personagens
multidimensionais e uma abordagem criativa sobre a contaminação em si. Tudo
funciona muito bem. O roteiro é criativo ao explorar o viés pós-apocalíptico.
Poucas vezes eu vi o elemento da consciência num "contaminado" ser tão bem
explorado. Ao buscar referências nos clássicos Mortos que Matam (1964), estrelado
pelo legendário Vincent Price, e O Dia dos Mortos (1985), do mestre George
Romero, o promissor diretor Colm McCarthy é astuto avançar em alguns conceitos
já estabelecidos dentro do segmento, transitando com surpreendente propriedade
entre o Horror, o Suspense e o Drama Familiar num argumento imprevisível. Uma
simples mudança de perspectiva e tudo ganha uma (corajosa) nova conotação.
Mais do que usar uma inteligente
e carismática zumbi Melanie (Sennia Nanua, numa performance fenomenal) como
protagonista, o longa confere a ela motivações sólidas. Dividida entre ajudar
os humanos que a mantém como um objeto de estudo e a sua própria sobrevivência enquanto um zumbi com consciência,
a pequena cresce assustadoramente até o último ato, se tornando uma personagem
rara dentro do gênero. Ao contrário do “mascote” Bubba de O Dia dos Mortos, a
eloquente criança vê o seu status ser gradativamente alterado à medida que a
envolvente trama avança. Tratada incialmente como uma prisioneira, uma
subespécie, Melanie (aos poucos) conquista a confiança dos militares, o afeto,
o respeito. Mais do que isso, apesar do seu “apetite” peculiar, não demora muito
para ela se tornar o escudo deles, o cão de guarda em território inóspito. Uma
posição singular explorada com habilidade pelo roteiro de Mike Carey,
principalmente quando o longa decide se aprofundar nas explicações biológicas por trás da
origem da personagem, das motivações daqueles que a mantinham e do seu “revolucionário”
novo papel numa realidade pós-apocalíptica. Sem querer revelar muito, a origem
da pequena Melanie e o seu crescente empoderamento são muito bem justificados,
mostrando a perspicácia do argumento em criar a partir das lacunas
subaproveitadas pelo gênero.
Além disso, apesar do viés
aparentemente lúdico, o diretor Colm McCarthy faz jus ao gênero ao investir no
clima perigo iminente. O 'gore' é explorado sem grandes pudores. A direção de
arte é fantástica. Os imponentes cenários refletem a parcial destruição da raça
humana. Tudo soa realmente abandonado. Sucateado. Os efeitos práticos conferem
um indiscutível peso a história. Um predicado, primeiro, potencializado pela
desconstruída trilha sonora de Cristobal Tapia de Veer, que só ajuda a enervar
as angustiantes sequências de ação. E depois valorizado pela maquiagem
"clássica", simples, mas positivamente repugnante. Sem querer revelar muito, o vírus
aqui é substituído por fungos, o que dá visual mais original para os
"mordedores". Uma opção que, aliás, prepara o terreno para
inquietante clímax, quando o elemento biológico\científico surge para inverter
o ‘status quo’ dos personagens, para justificar a perigosa busca por uma cura.
Com um elenco muito talentoso,
Glenn Close, Paddy Considine e Gemma Artenton exploram as nuances dos seus
personagens com desenvoltura, um argumento capaz de oxigenar o gênero com
inspiradas questões pertinentes à evolução humana e um cenário pós-apocalíptico
brilhantemente estabelecido, Melanie: A Última Esperança se revela um filme de
zumbi com pedigree. Conveniências narrativas a parte, que pontuam a trama sem
grandes consequências, Colm McCarthy entrega uma obra com apetite para a renovação,
uma película imersiva e inventiva capaz de refletir sobre a vulnerabilidade da
raça humana sem esquecer de oferecer aquilo que os fãs do subgênero se
acostumaram a ver nas obras do mestre George Romero. O que, por si só, já é um
baita elogio.
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