Finalmente, Shyamalan
Com o selo Rua Cloverfield, 10 de qualidade, Fragmentado marca a tão esperada volta por cima do inventivo M. Night Shyamalan. Reconhecido pelos seus corajosos 'plot twists', vide os excelentes O Sexto Sentido (1999), Sinais (2002) e A Vila (2004), o realizador perdeu grande parte do prestígio ao assinar uma série de filmes de gosto duvidoso, entre eles os detonados Fim dos Tempos (2008), O Último Mestre do Ar (2010) e Depois da Terra (2013). Uma fase negativa que, finalmente, parece ter chegado ao seu fim. Em Fragmentado, Shyamalan reencontra o vigor e a ousadia narrativa do início da sua carreira ao construir um faprovocativo suspense psicológico. Com uma premissa original em mãos, ele reaquece um saturado gênero ao investir em personagens complexos e bem desenhados, testando as expectativas do público ao permitir que o real e o sobrenatural coexistam harmoniosamente dentro da história. Embora o claustrofóbico clima de tensão seja por vezes sacrificado, o que pode se tornar um problema junto aos fãs mais intransigentes, Shyamalan acredita na força dos seus protagonistas, na multidimensionalidade deles, realçando o forte elemento humano ao construir um longa que não se prende aos limites do gênero. O resultado, ainda que não seja propriamente inovador, é surpreendente, principalmente pela capacidade do diretor ao enxergar na sua própria filmografia os elementos necessários para a construção desta envolvente película.
Por mais que a conexão com o intrigante Corpo Fechado (2000) salte aos olhos, Fragmentado reproduz o melhor do cinema de M. Night Shyamalan. Assim como em O Sexto Sentido, Sinais e A Vila, o realizador adiciona peso ao longa ao abraçar questões essencialmente humanas, equilibrando drama, suspense e o sempre presente viés fantástico ao transitar por temas naturalmente espinhosos. Fazendo um inspirado uso do subtexto, ele, aqui, aponta para o lado mais covarde da violência urbana, indo além dos velhos dualismos ao construir personagens moldados pelo meio em que vivem, figuras com nuances próprias e um estofo emocional que se torna o fator diferencial desta película. Também responsável pelo roteiro, Shyamalan narra os passos do instável Kevin (James McAvoy), um homem com impressionantes vinte e três personalidades, entre elas o talentoso Berry, o pequeno Hedwig, a controladora Patricia e o misterioso Dennis. Objeto de estudo da dedicada Dr. Karen (Betty Buckley), uma psicóloga veterana que acreditava que o seu exótico paciente pudesse ser uma espécie de evolução humana, ele mostra a sua faceta hostil ao raptar três jovens, a popular Claire (Haley Lu Richardson), a corajosa Marcia (Jessica Sula) e a deslocada Casey (Anya Taylor-Joy). Isoladas e assustadas, as três decidem tentar utilizar o desequilíbrio de Kevin para encontrar uma maneira de sair do cativeiro, sem sequer compreender os verdadeiros perigos por trás desta multifacetada ameaça.
Mestre na arte de tornar o absurdo "possível", M. Night Shyamalan mostra inspiração ao introduzir este enigmático personagem. Com explicações lógicas e teorias bem aceitáveis, ele exibe a sua reconhecida criatividade ao trazer o elemento fantástico para o centro da trama, utilizando o Transtorno Dissociativo de Identidade de maneira original e realmente instigante. Além de explorar as questões científicas em torno desta complexa doença, o roteiro é perspicaz ao estabelecer as principais personalidades do sequestrador, ao diferencia-las perante os olhos do público, investigando os seus anseios mais íntimos com objetividade e uma enorme presença de espírito. Mais do que extrair a tensão por trás do rapto, Shyamalan provoca o espectador ao realçar a repentina variação comportamental do antagonista, ao duvidar constantemente do seu discurso, criando momentos ora genuinamente ameaçadores, ora inesperadamente engraçados. Neste meio tempo, ele é igualmente habilidoso ao apresentar a desoladora situação das jovens raptadas. Com contundência e um afiado senso de simultaneidade, o diretor brinca com os clichês do gênero ao expor a (estúpida) reação delas neste angustiante cenário, evidenciando as consequências por trás de cada decisão mal tomada. Como de costume na sua filmografia, aliás, Shyamalan é categórico ao compor a atmosfera de suspense, apostando em expressivos planos subjetivos, em estilosos movimentos de câmera e em sufocantes enquadramentos fechados ao acompanhar o desespero do trio. Ao longo da trama, inclusive, ele é virtuoso ao explorar as mudanças de personalidade do vilão, alterando sutilmente a angulação da câmera ao traduzir a sua imponência\fragilidade diante das garotas. Ponto para a sombria fotografia amarelada de Mike Gioulakis (Corrente do Mal), impecável ao potencializar a sensação de perigo iminente nas enérgicas sequências internas.
É da crescente interação entre Casey e Kevin, entretanto, que nasce o arco mais interessante de Fragmentado. Inteligente e pragmática, a jovem surge como uma oponente à altura, uma adolescente rebelde com passado nebuloso que parece ser a única capaz de encontrar uma saída. Além de tensos, os diálogos dos dois são sempre elucidativos, permitindo que o espectador compreenda não só os motivos por trás do comportamento da protagonista, como também as reais intenções do(s) sequestrador(es). Nas entrelinhas, inclusive, M. Night Shyamalan é sutil ao criar um paralelo humano entre os dois personagens, transitando por questões delicadas ao investir pontualmente em relevantes flashbacks. Na hora de elevar o patamar do longa, porém, o realizador esbarra em algumas soluções mais convencionais. Por mais que o clímax seja intenso, o tão esperado 'plot twist', por exemplo, é bem discreto. Na verdade, a reviravolta, aqui, está ligada a uma simples mudança de perspectiva, uma sacada ousada, mas que já foi utilizada previamente na filmografia de Shyamalan. Somado a isso, o diretor peca ao se distanciar do cativeiro durante o segundo ato, sacrificando o clima de suspense ao entregar sequências expositivas e redundantes explicações envolvendo os conflitos psicológicos de Kevin. Nenhum destes problemas, no entanto, supera o desleixo do roteiro quanto o desenvolvimento das jovens Claire e Marcia. Rasas e descartáveis, as duas são meras peças no tabuleiro de Shyamalan e pouco acrescentam ao andamento da trama. Sem querer revelar muito, o argumento até tenta explora-las dentro do distorcido contexto moral defendido pelo antagonista, uma lógica que, diga-se de passagem, sempre foi comum aos filmes do gênero, mas nem isso é o bastante para torna-las interessantes aos olhos do público.
É da crescente interação entre Casey e Kevin, entretanto, que nasce o arco mais interessante de Fragmentado. Inteligente e pragmática, a jovem surge como uma oponente à altura, uma adolescente rebelde com passado nebuloso que parece ser a única capaz de encontrar uma saída. Além de tensos, os diálogos dos dois são sempre elucidativos, permitindo que o espectador compreenda não só os motivos por trás do comportamento da protagonista, como também as reais intenções do(s) sequestrador(es). Nas entrelinhas, inclusive, M. Night Shyamalan é sutil ao criar um paralelo humano entre os dois personagens, transitando por questões delicadas ao investir pontualmente em relevantes flashbacks. Na hora de elevar o patamar do longa, porém, o realizador esbarra em algumas soluções mais convencionais. Por mais que o clímax seja intenso, o tão esperado 'plot twist', por exemplo, é bem discreto. Na verdade, a reviravolta, aqui, está ligada a uma simples mudança de perspectiva, uma sacada ousada, mas que já foi utilizada previamente na filmografia de Shyamalan. Somado a isso, o diretor peca ao se distanciar do cativeiro durante o segundo ato, sacrificando o clima de suspense ao entregar sequências expositivas e redundantes explicações envolvendo os conflitos psicológicos de Kevin. Nenhum destes problemas, no entanto, supera o desleixo do roteiro quanto o desenvolvimento das jovens Claire e Marcia. Rasas e descartáveis, as duas são meras peças no tabuleiro de Shyamalan e pouco acrescentam ao andamento da trama. Sem querer revelar muito, o argumento até tenta explora-las dentro do distorcido contexto moral defendido pelo antagonista, uma lógica que, diga-se de passagem, sempre foi comum aos filmes do gênero, mas nem isso é o bastante para torna-las interessantes aos olhos do público.
Em contrapartida, as extraordinárias atuações da dupla James McAvoy e Anya-Taylor Joy se tornam decisivas para o resultado final de Fragmentado. Na performance mais desafiadora da sua carreira, o astro escocês brilha ao capturar as nuances e os trejeitos de cada uma das personalidades de Kevin, os tornando naturalmente distintos aos olhos do público. Com um pleno domínio sobre as emoções dos seus personagens, McAvoy realmente "brinca" ao interiorizar o misto de inocência, frieza e instabilidade dos principais alter-egos, nos brindando com sequências naturalmente impressionantes. Na melhor delas, ele praticamente se transforma durante uma sessão de terapia, uma cena potencializada pelo zelo de Shyamalan em capturar a expressão dos seus comandados. Dona de feições extremamente marcantes, a promissora Anya-Taylor Joy acompanha o nível do seu parceiro de set ao construir uma protagonista forte e prática. Carregando no olhar o peso da sua Casey, a jovem esbanja humanidade ao absorver os traumas, a resiliência e a inteligência dela, entregando uma personagem robusta e carregada de sentimentos. Mesmo com um menor tempo de cena, a veterana Betty Buckley também mostra categoria ao traduzir o misto de distanciamento e encantamento da Drª Karen. Por mais que a sua personagem ganhe alguns dos diálogos mais didáticos, a relação entre ela e Kevin rende momentos marcantes, justamente pela capacidade da psicóloga em extrair as respostas do seu paciente. Além dela, a pequena Izzie Coffey rouba cena como a versão 'kid' de Casey, comprovando a sensibilidade de Shyamalan ao preencher a trama com questões significativas.
O melhor trabalho de M. Night Shyamalan desde A Vila, Fragmentado marca a redenção de um realizador que não parece ter medo de arriscar. Impulsionado pelas memoráveis atuações da dupla James McAvoy e Anya-Taylor Joy, ele constrói um suspense psicológico realmente instigante, um filme sobre os monstros da vida real. Embora não seja o trabalho mais surpreendente da sua carreira, Shyamalan compensa ao investir num maduro estudo de personagem, entregando uma obra que não depende "apenas" do seu 'plot twist'.
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